Luís Miguel Nava, em 1974, com 17 anos |
CONTRA OS
FLASHES
É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite
amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o
poço da alegria.
As paisagens os miúdos reúnem-nas à mão,
a miniatura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as páginas.
Um deles, força macia, ensanguentado e
verde inquina-se na luz, uma fralda de incêndio há de escorrer-lhe pelos
lábios.
Eis o rosto, eis o poço, põem-se as
imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando.
Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios.
Luís Miguel Nava, Películas. Lisboa,
Livraria Moraes Editores, 1979
Steve Walker |
ATRÁS DA PÁGINA
As mãos no poema, pelas páginas
acima escoam-se os espelhos, a trovoada
vermelha emerge das imagens. A trovoada
redonda. Uma revoada
de espelhos é a alba, há poços nos espelhos
onde a nudez
se precipita, a luz mordendo a água.
Do poema vêem-se as trovoadas
imóveis
atrás da página, as imagens,
da alba, as dum rapaz arriando a noite, os astros
a afluírem-lhe aos cabelos. Vêem-se
à tona da trovoada os lenços
caindo na manhã, com as veias do rapaz
as desta a confundirem-se, depois
os poços da nudez abertos pelos astros.
Esse rapaz as suas próprias veias
o amarram à manhã.
Não me olhar ele ateia-me. Pequenos
incêndios, os da abóbada
do poema, arrancam-lhe a nudez.
Está alguém ao poema como a um espelho.
Luís Miguel Nava, Películas. Lisboa,
Livraria Moraes Editores, 1979
Silvia Lermo, "Amor e morte", 2019 |
"Por que a
crítica literária apagou o corpo masculino desejante e desejado em Luís Miguel
Nava?
Por que os críticos literários ignoraram o dado do desejo homoerótico explícito nas imagens dos rapazes que saltam às páginas de seus poemas?"
(Sinei Ferreira Sales, 2015)
Luís Miguel de Oliveira Perry Nava,
poeta que exerceu entre 1979 e 1994 a sua atividade literária e poética, nasceu
em 1957 em Viseu e foi dramaticamente assassinado a 10 de maio de 1995 em
Bruxelas. Prematura infelizmente foi a sua partida, mas continua a revelar-nos
o prodígio da sua poesia, largamente intensa e marítima no seu envolvimento e
na expansão de um novo estilo de erotismo, salientando-se os sentidos, os
órgãos e o interior do corpo humano, relacionado com a própria beleza, surgindo
através disso o amor na sua expressão profundamente sexual e apaixonada na
imagem dos rapazes ou “o rapaz” – o destinatário. […]
As memórias de Luís Miguel Nava ficam
retidas nas suas recordações essencialmente amorosas e simbolizadas pelos
rapazes. O livro Onde à Nudez [inclui Películas
(1979), Onde à nudez (publicado originalmente em A inércia da
deserção), A inércia da deserção (1981), Como alguém disse
(1982)] implica uma evocação ao próprio nu físico, para além da
referência à nudez, que se torna explícita, porque ela já existe, sendo evocada
para se tornar mais real. Depreende-se que essa nudez é visível, e que a sua
ausência não se concebe no fluir da imagem de uma só figura ou do amado
destinatário, mas em múltiplas figuras e imagens de destinatários, desfilando
uma sequência de imagens sob a forma figurativa de espelhos, que podem remeter
para a mesma e única pessoa, imagem transfigurada e quase obsessiva ou
endeusada do rapaz, que não se sabe quem é, mas que surge em quase todos os
poemas dos capítulos do referido livro, sob a insígnia de vários destinatários
ou rapazes.
Susana Bravo, A Fala do Corpo em Luiza Neto Jorge e
Luís Miguel Nava. Universidade Nova de Lisboa –
FCSH, 2012
Películas, de 1979, é a sua estreia numa editora importante como a Moraes e vence o prémio Revelação da APE |
Na poesia inicial de Luís Miguel
Nava, podemos vislumbrar […] que a conceção lírica do autor principia-se por um
ímpeto edênico, de grande luminosidade, em que o amor se insurge enquanto
manifestação da liberdade, do encantamento pelo mundo. Dessa forma, a figura do
rapaz, arquétipo de um viver em febre e plenitude, ganha relevo como uma
epifania a concentrar o esplendor do cosmos e da natureza. […]
Nessa primeira fase,
portanto, o corpo é antevisto pelo eu lírico enquanto materialidade alheia; trata-se
sempre do corpo de um outro, um outro amado e amoroso. Dessa forma, o olhar do
eu lírico sempre se evade para a exterioridade do mundo, em um gesto de contemplação
estética:
HÁ UMA PEDRA FEROZ
Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.
Luís Miguel Nava, Películas, 1979
Nesse poema, de
anteposições sintáticas cujo embaralhamento gera metáforas de efeito, o rapaz
se insurge como aparição impactante. A prosopopeia “pedra feroz” já indica um
fecundo entrelaçamento metafórico entre os signos “rapaz” e “pedra”. Tal nexo é
explicitado de duas maneiras: primeiramente a pedra é o rapaz (nos dois primeiros
versos) e, depois, o seu olhar (último verso).
No primeiro momento dessa
gradação metafórica, indicado pelos versos concisos, elípticos (“Há uma pedra
feroz,/ um rapaz,”), o rapaz-pedra desvela-nos uma fusão de cunho ontológico,
na qual entes distintos (pedra e rapaz) se consubstanciam, formando um todo.
Temos assim um corpo duro, mineral, um corpo cuja musculatura ganha o ímpeto
das rochas, caracterização que fica ainda mais marcada pelo aspeto juvenil de
tal rapaz, cuja carne tenra, fresca, desvela-nos um jovem na plenitude do vigor
físico.
Na segunda aceção
metafórica de “pedra”, a do último verso, tal elemento deixa de ser uma
essência integralizada, uma manifestação do próprio ser do jovem, para
tornar-se algo que o representa, o seu olhar (“O olhar do rapaz às vezes é a
pedra”). Assim, a mirada do rapaz torna-se pedra, uma pedra feroz. A violência
encantatória de tal mirada se antepõe, por efeito da antítese, a uma terceira
metáfora, a do olhar enquanto casa (“o olhar do rapaz, a minha casa”), índice
do conforto, da segurança e do aconchego. Um olhar que guarda, um olhar que
abraça, trazendo-nos a sensação de conforto e intimidade, mas um olhar que é
também feroz, selvagem e perigoso. Tal oscilação de significados delineia-nos
uma imagem que ganha complexidade e, ao mesmo tempo, encantamento. Haja vista
que o olhar amoroso, quando nos atinge, é naturalmente desconcertante,
inquiridor, causando-nos medo e fascínio, terror e intimidade.
A visão corporal, aqui, se
assenta na alteridade do eu lírico. O corpo, nessa primeira etapa da obra de
Nava, é, para lembrarmos Octavio Paz, expressão da “outridade”. Nesse poema,
por fim, o corpo como pedra desvela, por conseguinte, a dimensão erótica desse
corpo afiado, fálico, enfurecido pelo ímpeto erótico.
Com efeito, a
figurativização desse outro é de ordem encantatória, exprime um discurso do
fascínio e da sedução. Dessa forma, para o poeta ainda iniciante, o corpo se insurge
como esplendor, maravilha, verdadeiro paraíso perdido no chão banal do quotidiano.
Tal perspetiva do corpo
enquanto vislumbre mágico, epifania solar, perdura em outros textos, como
podemos perceber nesse exemplo:
ATRAVÉS DA NUDEZ
Este garoto é
fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem.
Movem-se os
tigres como câmaras na areia, prontos eles
também a deflagrarem. A manhã
espanca a praia, é impossível descrevê-las sem falar
dos fios deste poema
que a cosem com a paisagem.
Luís Miguel Nava, Películas, 1979
O poema abre-se por uma
imagem de grande plasticidade, uma comparação pela qual o garoto é visto como
um “campo de relâmpagos” a encarcerar um touro. […]
O visualismo nasce, nesse
poema, da convicção de que o real só se concretiza de fato graças ao efeito
demiúrgico do poeta, capaz de tecer os fios do texto e imprimir maior clareza
ao mundo sensorial (“É onde o poema interioriza/ a sua própria hipérbole, a
paisagem.”). Daí a paisagem, mundo dos sentidos, permanecer interiorizada, de
forma mais contundente, devido à referência a uma figura do exagero, a
hipérbole, no íntimo do poema. O poema, portanto, intensifica o real, confere a
ele um status mais verídico e expressivo.
Em seguida, na segunda
estrofe, o eu lírico atenta-se a outras imagens surpreendentes, como a dos
tigres prontos a deflagrem (o que exatamente?) e a manhã a espancar a praia. Os
dois versos iniciais da segunda estrofe trazem uma incompletude sintática
desconcertante. O verbo deflagrar exige um complemento que não se realiza textualmente,
dada a secção operada pelo ponto final. De forma indireta, a palavra manhã,
pelo efeito imagético do poema, surge como possível complemento textual a servir
de objeto direto ao referido verbo. Mas o obscurantismo do texto não se estanca
nesse ponto. O eu lírico, oculto pela armadura textual, haja vista que ele não
se autoenuncia, insere um advérbio desconcertante, o “também”. Não são apenas
os tigres que deflagram, outros seres também o fazem. Quem exatamente? Vejamos
outros aspetos do poema, para talvez elencarmos possíveis inferências sobre
tais enigmas.
A hipérbole “a manhã
espanca a praia”, de grande força lírica, revela o esplendor da manhã, a sua
pujante pletora orgiástica, concretizada apenas pelos fios do poema, essa
tapeçaria que o eu lírico paciente costura. Nesse sentido, há uma identidade entre
a voz poética e a voz do poeta. O eu lírico se configura, no poema, enquanto poeta,
criador textual que “deflagra”, pelo seu olhar, a manhã, esse verdadeiro “campo
de relâmpagos”. Talvez esteja aí esse outro que “também” deflagra, ou seja, o
próprio eu lírico, persona emblemática do poeta enquanto arquétipo do demiurgo.
Com efeito, a “outridade”
se antepõe à voz do eu lírico-poeta através do touro, do rapaz, e dos tigres
espraiados na areia. Os animais, assim, são figurativizações do outro e, pelo
seu ímpeto violento e selvagem, metáforas sensualizadas da alteridade.
O que nos interessa no
texto, conformando-o ao recorte de nossa leitura, é justamente a imagem
inicial. O garoto é um campo de relâmpagos que encarecera um touro. O touro é
emblema da virilidade masculina, símbolo da libido do homem. Há um touro no
garoto, preso por um campo de relâmpagos. Essa última imagem, formando o nexo
comparativo campo-garoto, surpreende pelo efeito surpresa. O menino é como um campo
a conter um touro. Tal campo, portanto, poderia expressar o próprio corpo do garoto,
um campo onde um touro, o próprio desejo, está preso. Dessa forma, para Nava, o
erotismo de tal imagem é reveladora da beleza do outro e da própria natureza.
É importante sublinhar que
os rapazes da lírica de Nava fazem parte de uma geografia específica, a da
natureza, e de maneira mais direta, à paisagem do mar, numa atualização, em
clave moderna, do locus amoenus. Assim, em seus livros iniciais, o rapaz está
associado ao mar, às ondas, ao sol, às areias, numa celebração cósmica do amor
através de um erotismo que transcende o corpo e se derrama pelo mundo, numa contemplação
estética e epifânica do cosmos. Em “Através da nudez”, de forma lapidar, tal
imagem cósmica do erotismo fica perfeitamente expressa por um fragmento da primeira
estrofe: “Através da nudez vêem-se os /astros”. Nesse poema, a nudez aflora em
plenitude, em um momento raro da lírica de Nava (em sua escrita vindoura, a
partir de O céu sob as entranhas, sua poesia irá rasgar como uma britadeira tal
superficialidade corpórea, adentrando os meandros íntimos da carne e
configurando uma estética do grotesco).
Em “Sketch” – um dos
primeiros poemas em prosa de Nava, haja vista que o escritor cultuou com intensidade
tal subgênero –, podemos antever, já no livro de estreia, traços desta estética
do entranhamento carnal:
SKETCH
Vem o rapaz à página, é o seu sketch, a luz às vezes é de tal intensidade
que a página fica em branco, outras porém mais fraca, o rapaz põe o poema em
perspetiva, a água ainda mal alinhavada nas bainhas dela depois lava-se, a
tensão no poema é então tanta que as imagens saltam em descargas, é assim
colhido em planos vários, há alturas em que apenas um pormenor do rosto vem à
página outras em que a ela aflui a nudez toda, um nó de imagens avoluma-se, o
rapaz leva o silêncio ao máximo, acelera-o, é onde ele se ergue que há no poema
uma pequena confluência de astros e a rebentação da luz é idêntica à das ondas,
as imagens esticadas sob a pele irrompem pelas mãos, abrem janelas sobre os
rins, a intensidade do rapaz é então tal que é ele quem põe em branco a página.
Luís Miguel Nava, Películas, 1979
Sketch
representa um esboço de desenho ou uma cena precisa de um filme. Novamente,
portanto, podemos confirmar o caráter altamente pictórico da lírica de Nava, na
afirmação do aspeto imagístico presente em tal título. Nesse poema, podemos antever
algumas características que irão germinar a lírica de Nava a posteriori. Primeiramente,
como já referimos, há aqui o poema em prosa, muito frequente a partir do
terceiro livro editado pelo escritor. Com efeito, o ritmo marcadamente lírico
dos dois livros iniciais tenderá, a partir de O céu sob as entranhas, a
se tornar prosaico e, em muitos aspetos, ganhará um tom cientificista, típico
do texto de caráter acadêmico. Portanto, “Sketch” já prenuncia tal vertente em
que o poema se assenta em um ritmo dissonante, prosaico e, nesse caso
especificamente, fraturado. Outra característica aqui também prenunciadora da
estética visceral de Nava é justamente a invasão rumo à entranha do corpo. Em
“Sketch”, a luz prorrompe pelo íntimo do ventre, até incidir sobre os rins do
rapaz. Também o locus amoenus se desfaz, aparecendo um espaço abstrato,
também frequente na obra vindoura do autor, no qual se esboçam fragmentos esfacelados
do mundo e do corpo humano, numa espacialização de cunho feérico, absurdo e
surreal.
A voz lírica, mais uma vez
impessoal, novamente se identifica enquanto um engenheiro da palavra,
configurando-se como representação da persona do poeta. Trata-se de um escritor
que atua à maneira de um artista visual, mais precisamente de um desenhista.
Sua atividade será justamente a de retratar, na página em branco, as formas físicas
desse rapaz. A página, portanto, é um sketch, um esboço de desenho, em
que a compleição do jovem ganha expressividade. A luz
incide sobre o papel e, quando ela é menos forte, as linhas ganham vida e o contorno
do rapaz se exprime, enfim, com maior precisão. A água, recurso utilizado para
compor o desenho, à maneira de uma aquarela, lava os contornos necessários,
para que a figura plástica ganhe vida.
As imagens, movidas pela
tensão do poema, prorrompem em cascata, numa verdadeira pletora, formando
planos múltiplos, revelando ora o rosto, ora a nudez completa do jovem, em um
“nó de imagens”. A presença do silêncio faz um paralelismo ao branco da página,
numa sobreposição das artes lírica e plástica. O silêncio e o branco margeiam a
figura amada, intensificando sons e formas, numa consubstanciação pictórico-sonora,
em que aspetos de uma meta-arte, ou de uma metapoética, ficam explicitados,
como os andaimes de um prédio em construção. Há aqui, portanto, a noção de
receita do fazer poético, metaforizada pelo próprio ofício do desenhista. O eu
lírico desenha para compor um texto verbal, revelando uma postura altamente
visualista, uma poética calcada no concreto, fincada no visual que,
paradoxalmente, não representa uma mimese da realidade, mas a sua
transfiguração. Temos aqui uma mimese da própria obra de arte, num verdadeiro
processo em mise en abyme, em que o poema retrata o desenho, e o desenho
representa o próprio poema.
Se o locus amoenus
se distancia de tal texto, ele, todavia, não está de todo ausente. Aparece,
agora, como lugar referido pela comparação: “há no poema uma pequena
confluência de astros e a rebentação da luz é idêntica à das ondas”. A luz que tangencia
e dá formas às linhas plásticas é semelhante à luz das ondas. A natureza aparece
ainda, mesmo que referida artificialmente, como uma imagem a imprimir vida ao
texto-pintura.
O final do poema, como um
fecho de ouro, é surpreende. As imagens esticam-se sob a pele do rapaz,
irrompem das mãos e abrem janelas sobre os seus rins. Isso intensifica a imagem
do jovem, ou melhor, dá dinamismo à figura, tornando-a não mais uma
representação fidelizada da realidade, mas uma transfiguração onírica, de
caráter surreal, tão bem aproveitada por Nava em suas obras mais tardias.
Também aqui já podemos perceber o afã de escrutinar as entranhas, vasculhar as
vísceras do corpo, num processo de mergulho no íntimo, tão peculiar na poesia
do autor de Onde à nudez. O corpo, nesse poema, portanto, é uma mescla de formas
decompostas, desfeitas, em que a entranha,
as vísceras, o íntimo secreto, o cerne da carne são expostos à luz, numa verdadeira
estética da dissecação, da autópsia, tão frequente no Nava de O céu sob as entranhas.
A última frase do poema
novamente traz o branco como possibilidade da arte: “a intensidade do rapaz é
então tal que é ele quem põe em branco a página”. A intensificação das formas
plásticas, adensamento da própria palavra lírica, sublinha o seu avesso, ou
seja, o branco, o nada, o silêncio. O poema, o desenho, é uma pequenina flama,
uma fulguração que intensifica o inexpresso, o incriado, o avesso de toda criatividade
artística. O rapaz, assim, surge novamente como epifania, mas agora malograda,
em que a arte é colocada em clave negativa, como mera fagulha cercada pelo
desvão do branco e do silêncio.
A exploração do branco da
página e do silêncio é recorrente na lírica moderna. Em muitos aspetos, como
por exemplo, na poesia de Orides Fontela, no Brasil, é representação de um
impulso suicida: escrever não é abrir significados, mas, pelo contrário, é
aclarar o nada, o não verbal, a própria morte. O mestre de tal processo é o poeta
francês Stephane Mallarmé, cuja exploração do branco da página ganha status lírico
e ontológico. O branco e o silêncio contribuem, no processo artístico, com a mesma
importância que a própria palavra. Sua obra Un coup de dés é emblemática
nesse sentido e, por seu turno, já também desvela um interesse da poesia pelas
artes plásticas e pelo silêncio como procedimento também inerente ao fazer
artístico. Conforme pudemos notar, Nava provavelmente inspirou-se em tal
estética, compondo esse que é um poema dissonante no conjunto de Onde à
nudez. Cabe ainda destacar, no poema, o caráter corrosivo da sintaxe,
fragmentário, sem uma linearidade lexicalmente fluida. O silêncio, o branco,
portanto, invadem o discurso (o desenho), fraturando-o, corroendo-o, dando-nos
à luz apenas formas cambiantes, flutuantes de um rapaz a imperar sobre o papel,
como um desafio ao incriado, ao próprio nada.
É importante nuançar que
“Sketch” é exceção no livro e que na maioria dos textos a visão epifânica do
jovem, aureolada pela beleza da natureza, é recorrente e forma um leitmotiv a
transpassar toda a obra. Em um capítulo do livro, capítulo esse que se
constitui em um longo poema feito de versos esparsos, todos iniciados por reticências,
agrupados, parte do tempo, em três estrofes por página, formando grande distância
de um verso para o outro, como frases soltas margeadas pelo branco do papel, a figura desse rapaz novamente irrompe, confirmando,
enfim, o caráter do corpo como dimensão do erotismo e do amor:
... sinto
faltar-me esse rapaz como a respiração.
... esse rapaz
ao espírito do qual as ondas vinham rebentar.
... lembro-me de
o seu
sorriso abrir até à água.
... o mar,
sentindo às mãos desse rapaz uma janela abrir como um sorriso.
... a língua a
interpelar-lhe a pele.
... a pele,
sentindo ao fundo
de cada poro seu o mar rebentar.
Luís Miguel Nava, A inércia da deserção. Lisboa, &Etc, 1981
Nesse fragmento, o ato
amoroso deixa de ser platónico e, como em outros raros momentos do livro, ganha
concretude. Nos últimos versos do excerto, a língua pervaga a pele, sentindo no
profundo de cada poro, em bela hipérbole, o mar a rebentar. As águas marítimas,
índice metafórico da agitação erótica, invadem a pele, numa explosão orgiástica,
em que os corpos, transidos pelo desejo, sofrem a combustão do ato sexual. A necessidade
imperiosa do amor, sentimento até então pouco antevisto no livro e, de forma
lacônica, raramente referenciado ao logo da escrita do autor português,
irrompe: o amado é necessário como a respiração. O amor, arquetípico da poesia
universal, não deixa de coroar essa poética do corpo, confirmando, enfim, as
forças imperiosas do sentimento e do desejo. Também o espaço é fundamental em
tal fragmento. O mar abre o sorriso encantado do rapaz, cujo corpo está tramado
pelas ondas, pelo sol, pela beleza sedutora de uma espacialidade
verdadeiramente adâmica e paradisíaca.
Ao longo
de Onde à nudez, a pele é com certeza o órgão corpóreo mais valorizado,
formando, em relação ao Céu sob as entranhas e demais obras posteriores,
uma antítese. No livro de estreia de Nava, a exterioridade do corpo amado do
rapaz é valorizada, esculpida, adorada em ardente paixão. Já em o Céu sob as
entranhas e demais livros subsequentes, o que interessa é a entranha, o
osso, o intestino, as artérias. Do exterior para o cerne do corpo, a viagem de
Nava se traduz, no crescente de sua obra, por uma queda do paraíso, queda essa
pontuada pela irrupção de uma falta de fé no amor, deficiência que se configura
por uma visão amarga, despida de encantamento.
Tal desencanto ainda está
longe de Onde à nudez, e também de Rebentação, livros nos quais o
tom sublime, encantatório, nasce como dissonância frente à totalidade da
produção do poeta. A confirmação desse tom sublime dá-se pela valorização de um
único órgão da interioridade corpórea, o coração. Conforme Bataille, toda “a
operação do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto em que
o coração desfalece” (BATAILLE, 2013, p.41). Tal metonímia do corpo, no
entanto, por ser metáfora já convencional da espiritualidade, confirma-se mais
como um elemento do sentimento amoroso, da emoção que transborda do íntimo, do
que imagem da dissecação das entranhas. O coração, dessa forma, é o emblema
máximo do amor e ele expressa, na obra de Nava, a verdade do ser:
[...] No fundo, nada é ilusório na verdade do amor: o
ser amado equivale para o amante, só para o amante, sem dúvida, mas não
importa, à verdade do ser. O acaso quer que, através dele, a complexidade do
mundo tendo desaparecido, o amante perceba o fundo do ser, a simplicidade do
ser. [...] (BATAILLE, 2013, p.44)
Há um verso lapidar do
livro que exemplifica tal tom sentimental: “A pele serve de céu ao coração”
(NAVA, 2002, p. 93). Pele e coração, corpo e espírito tramados,
consubstanciados, formando não uma antítese, mas a síntese perfeita de uma experiência
que atinge um apogeu, que revela um momento raríssimo da vida, em que o amor,
enfim, visita os amantes, conflagrando a comunhão como verdadeira plenitude da existência.
Conforme Octavio Paz, tal experiência se dá justamente devido ao caráter eletivo
do amor:
O amor é atração por uma única pessoa: por um corpo e
uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação. Sem erotismo – sem forma
visível que entra pelos sentidos – não há amor, mas este atravessa o corpo
desejado e procura a alma no corpo e, na alma, o corpo. A pessoa inteira. (PAZ,
2001, p. 34)
Tal situação se dá porque a
sexualidade se transforma, ganha ímpeto criativo e se consagra enquanto amor.
Tal sentimento, conforme mais uma vez pontua Paz, é a celebração do mistério
que é o outro amado:
[...] A sexualidade é animal; o erotismo é humano. É
um fenômeno que se manifesta dentro de uma sociedade e que consiste,
essencialmente, em desviar ou mudar o impulso sexual reprodutor e transformá-lo
numa representação. O amor, por sua vez, também é cerimônia e representação,
mas é alguma coisa mais: uma purificação, como diziam os provençais em pessoas
únicas. O amor é a metáfora final da sexualidade. Sua pedra de fundação é a
liberdade: o mistério da pessoa. (PAZ, 2001, p. 96)
Nesse sentido, o amor é
libertário, justamente por ser um mergulho no mistério do outro, uma fecunda
busca do grande enigma da condição humana. Nos poemas do ainda estreante poeta
português, tal sentimento se dá pelo coração e será através da pele que se
realizará o coroamento entre corpo e alma, erotismo e amor. A pele, portanto, traduz
o sentimento, o coração, e esse esplende o vigor corpóreo, pois o ilumina para além
do sexo, na amplitude do espírito. Há um poema que confirma tal feito de
maneira lapidar:
RAPAZ
Não sei como é
possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.
Luís Miguel Nava, Como alguém disse. Lisboa, Contexto, 1982
Com efeito, o sol não nasce
no espaço exterior ao corpo, mas do íntimo da carne e desponta da pele antes de
irromper no céu. Essa luminosidade íntima, aureolar, confirma não somente a
beleza do corpo, mas sobretudo a visitação rara do próprio sentimento amoroso.
Em outro poema, intitulado
“A pouco e pouco”, tal síntese entre corpo e espírito, entre pele e coração,
exprime-se pela dinamicidade dos gestos eróticos, pela sensibilidade de um
olhar que descerra o amado até o cerne, até o “alcantilado” coração:
A POUCO E POUCO
Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas
corpos como o dele às vezes contribuem.
Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama
onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.
Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a
pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.
Luís Miguel Nava, Como alguém disse. Lisboa, Contexto, 1982
O entendimento entre os
amantes dá-se de forma visionária e clarividente. A cumplicidade acontece
porque o amado possui um corpo que entende o processo amoroso, um corpo
intuitivo, capaz de orquestrar os gestos certeiros, para que pele e coração se
consagrem ao momento da entrega. No poema, a proximidade espacial entre cama e
coração congrega a síntese entre erotismo e sentimento, entre alma e corpo. Por
um olhar fecundo, o eu lírico mergulha na alma do outro, devassando a
totalidade íntima do amado. Olhar arrebatado, insinuante, pelo qual deflagramos
vestígios de uma pequena narrativa, de uma história amorosa, apenas sugerida,
de forma concisa e contundente, pelo jogo da sedução, pelo recorte do poema. O
coração alcantilado, feito rocha íngreme, sugere, por seu turno, o mistério
desse outro. O eu lírico tem de subir esse escarpado coração, viver os perigos
dessa escalada, numa bela metáfora dos esforços da convivência. É pelo coração,
por mais íngreme e inacessível, que se alcança a pele, o ato erótico. Por fim,
como uma chave de ouro, de efeito surpresa, irrompe a imagem do mar em carne
viva, prosopopeia bem afeita à dialética dos corpos em ebulição, dos corpos em
embate íntimo, infrene, em atrito, em combustão.
Nos primórdios de sua
escrita, Nava, enfim, desvelou uma fecunda confiança no amor, realizando poemas
nos quais a luminosidade do ato erótico, consagrado ao sentimento, ganha viva e
plena expressão artística. Todavia, conforme já nuançamos, tal perspectiva
acaba se esgotando, logo no segundo livro editado pelo poeta. A partir de O céu
sob as entranhas, sua obra toma outro rumo, definitivo, no qual o amor deixa de
ser uma possibilidade, tornando-se inacessível, distante da vida do eu lírico.
Para este, uma vez não mais encontrando no mundo a figura epifânica do amado,
resta descer ao fundo das raízes do corpo, num processo de fragmentação da
carne, de esfacelamento dos ossos, levando a uma verdadeira via crucis
da experiência física e concreta do humano. Essa mudança de cosmovisão gera uma
fratura em sua escrita, abrindo sua potencialidade criativa a uma verdadeira
obsessão pelas vísceras.
Alexandre Felizardo, “A epifania do corpo amoroso na primeira poesia de Luís Miguel
Nava”. Convergência Lusíada n.º 33, janeiro - junho de 2015
TM Davy, "Fire Island Moonrise", 2018 |
[…] o rapaz,
personagem fulcral dos poemas de inclinação mais explicitamente erótica, é,
pelo autor, assimilado a um relâmpago: “um rapaz e um relâmpago são a mesma
coisa” (1997: 151). Tratar-se-ia de um rapaz-relâmpago, em cujo corpo também
incidem o sol e o mar, tal como nos dão notícia os poemas “Na pele” e “Rapaz”.
No primeiro, referindo-se aos “rapazes que circulam por Lisboa no verão”, afirma-se
que “o mar está-lhes na pele” (p. 95). No segundo, fala-se de um “rapaz pelo interior
/ de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu” (p. 86). A esse respeito,
vale observar o poema “Os pratos na balança” [Rebentação, 1984]:
OS PRATOS NA
BALANÇA
Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há de revolver-se, debater-se, rebentar, há -de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de-o fazer precipitar até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso.
Luís Miguel Nava, Rebentação. Lisboa, &Etc, 1984
O rapaz equivale a um relâmpago, mas equivale também à
fusão do céu com o mar. Tão inusitadas comparações ou equivalências nos
suscitam averiguar o estatuto desse rapaz, suposto “objeto” do desejo erótico.
Em entrevista, o poeta explica que “a personagem do rapaz que tanto surge nos
[...] primeiros livros” não “corresponde a alguém de especial”(1997: 153). E,
em outro momento, declara que tem “imensa pena”, “antes de mais, e sobretudo,
por não poder falar daqueles que amo. Por não poder manifestar-lhes a amizade que
lhes devo, ou simplesmente a exaltação de com eles partilhar certos momentos.
Se o Dante fosse como eu, ninguém hoje teria ouvido falar da Beatriz” (1997:
152).
A poética de Luís Miguel
Nava: vem sempre à pele o que a memória carregou, Carla da Silva Miguelote.
Niterói, Universidade Federal Fluminense – Centro de Estudos Gerais – Instituto
de Letras, março de 2006
RAPAZES
Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são
consanguíneos.
Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.
Luís Miguel Nava, Rebentação. Lisboa:
&Etc, 1984
Chama atenção a concisão do poema. Simples,
objetivo. Sem muito arroubo ou preciosismos linguísticos. Dividido em duas
partes, na primeira, um dístico, seguido por um quarteto. O tom narrativo do
poema é marcado pela rememoração expressa pelos verbos nos tempos passados e
pela descrição de uma cena que o sujeito observou e guardou consigo,
incorporando a imagem como parte integrante de seu corpo.
No dístico, a cena irrompe à memória do sujeito.
Para o sujeito, a memória trata de modo visceral todos os efeitos que os
sentidos podem proporcionar, sejam eles, fatos efêmeros, representados pela
luz, ou sejam fatos mais densos, como o representado pelo granito. Não há
hierarquia para a memória, segundo o sujeito do poema. Ambos os efeitos
circulam no corpo do sujeito de modo igual.
No quarteto, irrompe à cena um casal de rapazes que
trocavam carícias e eram observados pelo sujeito. No entanto, de uma descrição
objetiva, do segundo para o terceiro verso do quarteto, temos a fusão do
sujeito com seu objeto. O sujeito transforma em palavras os pensamentos dos
rapazes. Eles já estariam pensando no momento em que estariam largados sobre
lençóis. No entanto, por estarem em local público, a antecipação do toque
íntimo entre os corpos acontecia pela projeção do objeto fálico que ambos
compartilhavam, o guarda-chuva.
A sutileza com que o sujeito descreve e se coloca
no poema é um modo bastante peculiar nas poesias de Luís Miguel Nava. Pensando
a tradição lírica em língua portuguesa, podemos afirmar com bastante segurança
o lugar subversivo ocupado por esta poética que desestabiliza o discurso
lírico-amoroso no ocidente. O usual é um homem escrevendo sobre mulheres,
desejando mulheres, projetando mulheres irreais, mulheres que só vivem no
papel. Neste poema, vemos a centralidade posta em rapazes, primeiro como objeto
de desejo, segundo como seres desejantes. Figuras reais que vivem na memória do
sujeito. Este que já se inclui no poema por meio da fusão lírica do sujeito,
essa que vislumbra inclusive à desestabilização dos modelos de relacionamento
binários.
É interessante notar ainda que a verdade do sexo,
que estaria no ordenamento do sexo, ao gênero e ao desejo é desestabilizado na
poética naviana, como se percebe no poema acima. Passa ao largo das definições
do que seja ser homem ou mulher em nossa sociedade. Já que durante muito tempo
acreditou-se que a verdade do sexo residiria no ideal de uma construção social
do sexo. Isto é, como bem define a pesquisadora carioca Maria Luiza Heilborn
(1997, p.101), a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a
atividade sexual propriamente dita. Em outras palavras, a verdade do sexo
reside nos corpos dos indivíduos.
Os rapazes não passam por uma hierarquização de seu
sexo, tampouco de seu desejo. Apenas vivem-no, experimentam-no. A ânsia é de
que cada um consuma o corpo do outro. Os protótipos de masculinidade são
dispensados em nome de outros desejos.
Sinei Ferreira Sales, Desentranhando desejos e
identidades: Uma leitura queer de Luís Miguel Nava. Universidade de São Paulo
- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2015. Disponível também em
https://www.academia.edu/48897242/Desentranhando_desejos_e_identidades_uma_leitura_queer_de_Lu%C3%ADs_Miguel_Nava
Poderá também gostar de ler:
“Luís Miguel Nava (1957-1995)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2017-09-29
<https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/09/luis-miguel-nava-1957-1995.html>
CARREIRO, José. “Os
rapazes, em Luís Miguel Nava”. Portugal, Folha de Poesia, 07-09-2022. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/os-rapazes-em-luis-miguel-nava.html
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