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sábado, 10 de setembro de 2022

Pequena elegia chamada domingo, Eugénio de Andrade


 

Pequena elegia chamada domingo

 

O domingo era uma coisa pequena.

Uma coisa tão pequena

que cabia inteirinha nos teus olhos.

Nas tuas mãos

estavam os montes e os rios

e as nuvens.

Mas as rosas,

as rosas estavam na tua boca.

 

Hoje os montes e os rios

e as nuvens

não vêm nas tuas mãos.

(Se ao menos elas viessem

sem montes e sem nuvens

e sem rios...)

O domingo está apenas nos meus olhos

e é grande.

Os montes estão distantes e ocultam

os rios e as nuvens

e as rosas.

 

Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa (1940-1979), Lisboa, IN-CM, 1980

 

Nota:

Elegia: poesia de assunto triste ou de lamentação.

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- importância das marcas de tempo;

- valor simbólico dos elementos da natureza;

- recursos estilísticos e aspetos formais significativos;

- traços caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético.

 

 

EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA

 

Importância das marcas de tempo

A importância das marcas de tempo é visível no poema na medida em que:

- o uso exclusivo, na primeira estrofe, do pretérito imperfeito do indicativo («era», «cabia», «estavam» - vv. 1, 3, 5 e 8) e a predominância, na segunda estrofe, do presente do indicativo («vêm», «está», «é», «estão», «ocultam» - vv. 11, 15, 16 e 17), reforçada pelo advérbio de tempo («Hoje» - v. 9), sublinham a oposição passado/presente como uma linha estruturante do texto;

- a inclusão de «domingo» no título salienta, desde logo, a excecionalidade desse dia da semana para o sujeito poético, sugerindo, ainda, pela ligação com «elegia», a ideia de que é um tempo recordado com tristeza;

- a dupla ocorrência do vocábulo «domingo» no corpo do poema (vv. 1 e 15) reforça a importância deste dia, que ganha uma conotação positiva quando associado ao passado e à presença do «tu» (cf. 1.ª estrofe), e um valor negativo quando é lido em função do presente do sujeito, tempo da ausência do ser amado (cf. 2.ª estrofe);

- a oposição passado/presente põe em evidência a perda de um estado emocional eufórico e a presença de um outro disfórico, a passagem de uma temporalidade feliz e intensa para uma temporalidade longa, porque dolorosa («0 domingo era uma coisa pequena.» - v.1, «0 domingo [...] é grande» - vv. 15-16);

- …

 

Valor simbólico dos elementos da natureza

A natureza representada no texto assume diversos sentidos simbólicos. Assim, pode:

- configurar, por via das metáforas utilizadas («montes», «rios», «nuvens» e «rosas»), um lugar edénico que o «eu» perde na ausência do «tu»;

- tornar-se obstáculo que impede o sujeito de recuperar o lugar e o tempo paradisíacos, pois os «montes», «distantes», «ocultam/ os rios e as nuvens/ e as rosas» (vv. 17-19);

- fornecer elementos para o retrato alegórico do «tu» - as «mãos», em que estão contidos os traços da paisagem, e a «boca», onde reside a beleza das «rosas» (vv. 4-8);

- …

 

Recursos estilísticos e aspetos formais significativos

De entre os diversos recursos estilísticos, salientam-se:

- as metáforas em série («montes», «rios», «nuvens» e «rosas»), utilizadas ao longo do poema, contribuindo para a construção da imagem de uma terra primordial, edénica, marcada por harmonia e plenitude;

- a enumeração, repetida e reordenada, intensificando as noções quer de constituição (cf. w. 5-6) quer de perda (cf. vv. 9-11, 13-14, 17-19) do lugar-tempo paradisíaco; associado à enumeração, o polissíndeto recria uma semelhança com a linguagem infantil, realçando, nos vv. 5-6, uma emotividade feliz e, nos vv. 13-14, 18-19, a lembrança dolorosa do paraíso perdido;

- os artigos definidos («O», «OS» e «as»), individualizando as coisas nomeadas e criando, assim, com elas uma relação de proximidade;

- o discurso parentético e as reticências (vv. 12-14), evidenciando, pela pausa reflexiva, o sentimento de perda que domina o sujeito poético;

- …

 

Quanto aos aspetos formais significativos, há que destacar, entre outros:

- o versilibrismo desta composição poética, de duas estrofes de versos heterométricos, recriando um ritmo próximo da fala;

- a irregularidade estrófica, com recurso a uma oitava e a uma estrofe de onze versos (ocultando uma organização lógico-discursiva que remete para os modelos canónicos de estrofes – dísticos e tercetos, com exceção do monástico de abertura do poema);

- …

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro aspetos (estilísticos e/ou formais).

 

Traços caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético

O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pelos seguintes traços:

- nostalgia, recordando com mágoa o tempo edénico partilhado com o «tu»;

- solidão, sofrendo com a ausência do «tu» e desejando a sua presença;

- lucidez, tendo consciência da perda da plenitude e beleza que do ser amado emanavam;

- desespero contido, confrontando-se com a certeza da alteração irreversível da medida do tempo («domingo») - breve e feliz no passado, longo e infeliz no presente;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2000, 1.ª fase, 1.ª chamada)

 

 

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CARREIRO, José. “Pequena elegia chamada domingo, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 10-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/pequena-elegia-chamada-domingo-eugenio.html


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