Pequena
elegia chamada domingo
O
domingo era uma coisa pequena.
Uma
coisa tão pequena
que
cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas
tuas mãos
estavam
os montes e os rios
e
as nuvens.
Mas
as rosas,
as
rosas estavam na tua boca.
Hoje
os montes e os rios
e
as nuvens
não
vêm nas tuas mãos.
(Se
ao menos elas viessem
sem
montes e sem nuvens
e
sem rios...)
O
domingo está apenas nos meus olhos
e
é grande.
Os
montes estão distantes e ocultam
os
rios e as nuvens
e
as rosas.
Eugénio de Andrade, Poesia
e Prosa (1940-1979), Lisboa, IN-CM, 1980
Nota:
Elegia: poesia de assunto triste ou de lamentação.
Elabore
um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- importância das marcas de tempo;
- valor simbólico dos elementos da natureza;
- recursos estilísticos e aspetos formais
significativos;
- traços caracterizadores do estado de espírito do
sujeito poético.
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
Importância
das marcas de tempo
A
importância das marcas de tempo é visível no poema na medida em que:
-
o uso exclusivo, na primeira estrofe, do pretérito imperfeito do indicativo
(«era», «cabia», «estavam» - vv. 1, 3, 5 e 8) e a predominância, na segunda
estrofe, do presente do indicativo («vêm», «está», «é», «estão», «ocultam» -
vv. 11, 15, 16 e 17), reforçada pelo advérbio de tempo («Hoje» - v. 9),
sublinham a oposição passado/presente como uma linha estruturante do texto;
-
a inclusão de «domingo» no título salienta, desde logo, a excecionalidade desse
dia da semana para o sujeito poético, sugerindo, ainda, pela ligação com
«elegia», a ideia de que é um tempo recordado com tristeza;
-
a dupla ocorrência do vocábulo «domingo» no corpo do poema (vv. 1 e 15) reforça
a importância deste dia, que ganha uma conotação positiva quando associado ao
passado e à presença do «tu» (cf. 1.ª estrofe), e um valor negativo quando é
lido em função do presente do sujeito, tempo da ausência do ser amado (cf. 2.ª
estrofe);
-
a oposição passado/presente põe em evidência a perda de um estado emocional
eufórico e a presença de um outro disfórico, a passagem de uma temporalidade
feliz e intensa para uma temporalidade longa, porque dolorosa («0 domingo era
uma coisa pequena.» - v.1, «0 domingo [...] é grande» - vv. 15-16);
-
…
Valor
simbólico dos elementos da natureza
A
natureza representada no texto assume diversos sentidos simbólicos. Assim,
pode:
-
configurar, por via das metáforas utilizadas («montes», «rios», «nuvens» e
«rosas»), um lugar edénico que o «eu» perde na ausência do «tu»;
-
tornar-se obstáculo que impede o sujeito de recuperar o lugar e o tempo
paradisíacos, pois os «montes», «distantes», «ocultam/ os rios e as nuvens/ e
as rosas» (vv. 17-19);
-
fornecer elementos para o retrato alegórico do «tu» - as «mãos», em que estão
contidos os traços da paisagem, e a «boca», onde reside a beleza das «rosas»
(vv. 4-8);
-
…
Recursos
estilísticos e aspetos formais significativos
De
entre os diversos recursos estilísticos, salientam-se:
-
as metáforas em série («montes», «rios», «nuvens» e «rosas»), utilizadas ao
longo do poema, contribuindo para a construção da imagem de uma terra
primordial, edénica, marcada por harmonia e plenitude;
-
a enumeração, repetida e reordenada, intensificando as noções quer de
constituição (cf. w. 5-6) quer de perda (cf. vv. 9-11, 13-14, 17-19) do
lugar-tempo paradisíaco; associado à enumeração, o polissíndeto recria uma
semelhança com a linguagem infantil, realçando, nos vv. 5-6, uma emotividade
feliz e, nos vv. 13-14, 18-19, a lembrança dolorosa do paraíso perdido;
-
os artigos definidos («O», «OS» e «as»), individualizando as coisas nomeadas e
criando, assim, com elas uma relação de proximidade;
-
o discurso parentético e as reticências (vv. 12-14), evidenciando, pela pausa
reflexiva, o sentimento de perda que domina o sujeito poético;
-
…
Quanto
aos aspetos formais significativos, há que destacar, entre outros:
-
o versilibrismo desta composição poética, de duas estrofes de versos
heterométricos, recriando um ritmo próximo da fala;
-
a irregularidade estrófica, com recurso a uma oitava e a uma estrofe de onze
versos (ocultando uma organização lógico-discursiva que remete para os modelos
canónicos de estrofes – dísticos e tercetos, com exceção do monástico de
abertura do poema);
-
…
Nota
- Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico
do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro aspetos
(estilísticos e/ou formais).
Traços
caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético
O
estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pelos seguintes traços:
-
nostalgia, recordando com mágoa o tempo edénico partilhado com o «tu»;
-
solidão, sofrendo com a ausência do «tu» e desejando a sua presença;
-
lucidez, tendo consciência da perda da plenitude e beleza que do ser amado
emanavam;
-
desespero contido, confrontando-se com a certeza da alteração irreversível da
medida do tempo («domingo») - breve e feliz no passado, longo e infeliz no
presente;
-
…
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário.
12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral –
Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2000, 1.ª
fase, 1.ª chamada)
Poderá também gostar de:
- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
CARREIRO, José. “Pequena
elegia chamada domingo, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia,
10-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/pequena-elegia-chamada-domingo-eugenio.html
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