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terça-feira, 13 de setembro de 2022

Rapariga descalça, Eugénio de Andrade


 

RAPARIGA DESCALÇA

 

Chove. Uma rapariga desce a rua.

Os seus pés descalços são formosos.

São formosos e leves: o corpo alto

parte dali, e nunca se desprende.

 

A chuva em abril tem o sabor do sol:

cada gota recente canta na folhagem.

O dia é um jogo inocente de luzes,

de crianças ou beijos, de fragatas.

 

Uma gaivota passa nos meus olhos.

E a rapariga - os seus formosos pés -

canta, corre, voa, é brisa, ao ver

o mar tão próximo e tão branco.

 

Eugénio de Andrade, Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000

 

Teresa David, The fall, 2022-05-05


 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- elementos que caracterizam o «dia»;

- traços que compõem a figura da «rapariga»;

- recursos estilísticos e aspetos formais relevantes;

- relação entre a estrutura estrófica e o desenvolvimento do tema.

 

EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA

 

Elementos que caracterizam o «dia»

O «dia» é caracterizado como:

- um dia de Primavera com chuva: «Chove.» e «A chuva em abril tem o sabor do sol» sugerem o clima ameno característico do início da Primavera (v. 1 e v. 5);

- um quadro em que ressaltam cambiantes sensoriais: a sugestão gustativa da «chuva», que evoca «O sabor do sol»; o ruído cantante e o brilho das gotas, recentemente caídas na «folhagem» e refletindo a luz solar;

- uma imagem de luz pura e inicial: «um jogo inocente de luzes, / de crianças ou beijos, de fragatas» - vv. 7-8 (conotando o «dia» como espaço de beleza, de inocência, de amor, de viagem, de sonho, etc.).

 

Traços que compõem a figura da «rapariga»

A «rapariga» é caracterizada como uma figura:

- «Descalça» e com pés «formosos e leves», sublinhando a sua beleza e o seu andar ágil;

- alta («corpo alto»), formando com os pés um todo harmonioso e uno («O corpo alto / parte dali, e nunca se desprende» - vv. 3-4);

- alegre («canta»), correndo apressada e veloz, enquanto «desce a rua», em direção ao «mar»;

- de andar rápido e ligeiro («voa»), partilhando essa qualidade com a gaivota que «passa» diante dos «olhos» do «eu»;

- terrena, que, diante da visão do mar, se transfigura em corpo alado e etéreo («brisa»), surgindo como símbolo da leveza e da liberdade;

- …

 

Recursos estilísticos e aspetos formais relevantes

De entre os recursos estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:

- a adjetivação profusa e pontualmente dupla («pés descalços», «formosos», «formosos e leves», «corpo alto», «gota recente», «jogo inocente», «formosos pés»), com o adjetivo predominantemente em posposição e, ainda, associado a formulações intensificadoras («tão próximo e tão branco»), salientando a expressividade do quadro representado;

- a animização («cada gota recente canta na folhagem» - v. 6), conferindo à água a capacidade de cantar;

- a repetição, ao retomar-se o final do segundo verso no início do terceiro («são formosos. / São formosos»), intensificando a ideia da beleza dos «pés»;

- a imagem - ou, noutra perspetiva também aceitável, a metáfora - («O dia é um jogo inocente de luzes, / de crianças ou beijos, de fragatas.», «a rapariga [...] voa, é brisa» - vv. 7-8 e vv. 10-11), salientando, primeiramente, a capacidade de o sujeito percecionar vários elementos do «dia», associando-os entre si; e, depois, representando simbolicamente a rapariga como vento suave;

- a enumeração («canta, corre, voa, é brisa» - v. 11 ), instaurando o continuum entre o canto e o movimento progressivamente acelerado, até que a rapariga se transfigure em ser alado e aéreo;

- a sinestesia («o sabor do sol» - v. 5), fundindo os sentidos (do gosto, da visão e do tato);

- …

 

Relativamente a aspetos formais, temos, por exemplo:

- composição poética constituída por três quadras;

- verso branco;

- métrica irregular, com predominância do verso decassilábico;

- recurso ao enjambement (encavalgamento) nos versos 3-4 e 11-12;

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Relação entre a estrutura estrófica e o desenvolvimento do tema

Estruturado em três estrofes, o poema revela o olhar encantado do sujeito poético relativamente à imagem da «rapariga» que «desce a rua», num dia primaveril, perceção que se constrói e intensifica emotivamente em três sucessivos momentos, correspondendo cada um a uma estrofe.

Assim, na primeira quadra, a uma breve referência à chuva, segue-se a descrição de uma «rapariga» que desce a rua, detendo-se o olhar do «eu» na beleza dos «seus pés descalços», de onde parte e «nunca se desprende» o «corpo alto», esboçando-se, deste modo, o sentimento de encanto perante a sua leveza e graça.

Na segunda estrofe, tal sentimento desenvolve-se pela captação da beleza daquele «dia» de chuva, primaveril, beleza desocultada pela passagem da «rapariga» e que surge, ao olhar do «eu», como «um jogo inocente de luzes», associado a visões encantatórias de amor, de viagem e de sonho.

Na última quadra, à aparição de uma «gaivota» sobrepõe-se a figura da «rapariga» - e dos «seus formosos pés» - caminhando em direção ao «mar» e metamorfoseando-se em ave e em «brisa», como se perdesse a sua condição terrena e se tornasse etérea. O poema atinge, assim, um clímax nesta imagem (onírica), que funde em si a beleza e plenitude do «dia» construídas pela visão (excecional) do sujeito poético.

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2003, 1.ª fase, 1.ª chamada)

 

Teresa David, Da luz e da sombra, 2022-07-26


 

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CARREIRO, José. “Rapariga descalça, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 13-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/rapariga-descalca-eugenio-de-andrade.html


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