RAPARIGA
DESCALÇA
Chove.
Uma rapariga desce a rua.
Os
seus pés descalços são formosos.
São
formosos e leves: o corpo alto
parte
dali, e nunca se desprende.
A
chuva em abril tem o sabor do sol:
cada
gota recente canta na folhagem.
O
dia é um jogo inocente de luzes,
de
crianças ou beijos, de fragatas.
Uma
gaivota passa nos meus olhos.
E
a rapariga - os seus formosos pés -
canta,
corre, voa, é brisa, ao ver
o
mar tão próximo e tão branco.
Eugénio de Andrade, Poesia,
Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000
Teresa David, The fall, 2022-05-05 |
Elabore um comentário do poema que
integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- elementos que caracterizam o «dia»;
- traços que compõem a figura da «rapariga»;
- recursos estilísticos e aspetos formais
relevantes;
- relação entre a estrutura estrófica e o
desenvolvimento do tema.
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
Elementos que caracterizam o «dia»
O «dia» é caracterizado como:
- um dia de Primavera com
chuva: «Chove.» e «A chuva em abril tem o sabor do sol» sugerem o clima ameno
característico do início da Primavera (v. 1 e v. 5);
- um quadro em que
ressaltam cambiantes sensoriais: a sugestão gustativa da «chuva», que evoca «O
sabor do sol»; o ruído cantante e o brilho das gotas, recentemente caídas na
«folhagem» e refletindo a luz solar;
- uma imagem de luz pura e
inicial: «um jogo inocente de luzes, / de crianças ou beijos, de fragatas» - vv.
7-8 (conotando o «dia» como espaço de beleza, de inocência, de amor, de viagem,
de sonho, etc.).
Traços que compõem a figura da «rapariga»
A «rapariga» é caracterizada como uma figura:
- «Descalça» e com pés
«formosos e leves», sublinhando a sua beleza e o seu andar ágil;
- alta («corpo alto»),
formando com os pés um todo harmonioso e uno («O corpo alto / parte dali, e nunca
se desprende» - vv. 3-4);
- alegre («canta»),
correndo apressada e veloz, enquanto «desce a rua», em direção ao «mar»;
- de andar rápido e
ligeiro («voa»), partilhando essa qualidade com a gaivota que «passa» diante dos
«olhos» do «eu»;
- terrena, que, diante da
visão do mar, se transfigura em corpo alado e etéreo («brisa»), surgindo como
símbolo da leveza e da liberdade;
- …
Recursos estilísticos e aspetos formais
relevantes
De entre os recursos estilísticos presentes
neste poema, salientam-se os seguintes:
- a adjetivação profusa e
pontualmente dupla («pés descalços», «formosos», «formosos e leves», «corpo
alto», «gota recente», «jogo inocente», «formosos pés»), com o adjetivo predominantemente
em posposição e, ainda, associado a formulações intensificadoras («tão próximo
e tão branco»), salientando a expressividade do quadro representado;
- a animização («cada gota
recente canta na folhagem» - v. 6), conferindo à água a capacidade de cantar;
- a repetição, ao
retomar-se o final do segundo verso no início do terceiro («são formosos. / São
formosos»), intensificando a ideia da beleza dos «pés»;
- a imagem - ou, noutra
perspetiva também aceitável, a metáfora - («O dia é um jogo inocente de luzes,
/ de crianças ou beijos, de fragatas.», «a rapariga [...] voa, é brisa» - vv.
7-8 e vv. 10-11), salientando, primeiramente, a capacidade de o sujeito percecionar
vários elementos do «dia», associando-os entre si; e, depois, representando
simbolicamente a rapariga como vento suave;
- a enumeração («canta,
corre, voa, é brisa» - v. 11 ), instaurando o continuum entre o canto e o movimento
progressivamente acelerado, até que a rapariga se transfigure em ser alado e
aéreo;
- a sinestesia («o sabor
do sol» - v. 5), fundindo os sentidos (do gosto, da visão e do tato);
- …
Relativamente a aspetos formais, temos, por
exemplo:
- composição poética
constituída por três quadras;
- verso branco;
- métrica irregular, com
predominância do verso decassilábico;
- recurso ao enjambement
(encavalgamento) nos versos 3-4 e 11-12;
Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação
referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a
apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente recursos estilísticos
e aspetos formais.
Relação entre a estrutura estrófica e o
desenvolvimento do tema
Estruturado em três
estrofes, o poema revela o olhar encantado do sujeito poético relativamente à imagem
da «rapariga» que «desce a rua», num dia primaveril, perceção que se constrói e
intensifica emotivamente em três sucessivos momentos, correspondendo cada um a
uma estrofe.
Assim, na primeira quadra,
a uma breve referência à chuva, segue-se a descrição de uma «rapariga» que
desce a rua, detendo-se o olhar do «eu» na beleza dos «seus pés descalços», de
onde parte e «nunca se desprende» o «corpo alto», esboçando-se, deste modo, o
sentimento de encanto perante a sua leveza e graça.
Na segunda estrofe, tal
sentimento desenvolve-se pela captação da beleza daquele «dia» de chuva,
primaveril, beleza desocultada pela passagem da «rapariga» e que surge, ao
olhar do «eu», como «um jogo inocente de luzes», associado a visões
encantatórias de amor, de viagem e de sonho.
Na última quadra, à
aparição de uma «gaivota» sobrepõe-se a figura da «rapariga» - e dos «seus formosos
pés» - caminhando em direção ao «mar» e metamorfoseando-se em ave e em «brisa»,
como se perdesse a sua condição terrena e se tornasse etérea. O poema atinge,
assim, um clímax nesta imagem (onírica), que funde em si a beleza e plenitude
do «dia» construídas pela visão (excecional) do sujeito poético.
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário.
12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral –
Agrupamento 4. Prova
Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2003, 1.ª fase,
1.ª chamada)
Teresa David, Da luz e da sombra, 2022-07-26 |
Poderá também gostar de:
CARREIRO, José. “Rapariga
descalça, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 13-09-2022.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/rapariga-descalca-eugenio-de-andrade.html
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