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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Sagres, Miguel Torga

Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três coisas se veem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar), pus-me a calcorrear estas pedras roídas de saudade… (Miguel Torga, 1942)


Sagres, https://www.kimkim.com/ab/faro-to-sagres

 

SAGRES

 

Vinha de longe o mar...

Vinha de longe, dos confins do medo...

Mas vinha azul e brando, a murmurar

Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.

 

E a terra ouvia, de perfil agudo,

A confidencial revelação

Que iluminava tudo

Que fora bruma na imaginação.

 

Era o resto do mundo que faltava

(Porque faltava mundo!)

E o agudo perfil mais se aguçava,

E o mar jurava cada vez mais fundo.

 

Sagres sagrou então a descoberta

Por descobrir:

As duas margens da certeza incerta

Teriam de se unir!

 

Miguel Torga, Poemas Ibéricos, 1965

 


 

1. Refira distintamente os traços caracterizadores de «mar» e de «terra».

2. Atribua um conteúdo ao «segredo» que o mar diz à terra, com base em elementos do texto.

3. Analise o efeito expressivo produzido pela repetição da palavra «vinha» (vv. 1-3).

4. Atente na segunda e na terceira estrofes. Explicite os valores semânticos das formas do imperfeito do indicativo.

5. Comente a importância da última estrofe na construção do sentido do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Os elementos «mar» e «terra» estão personificados no poema, configurando duas personagens em interlocução.

    O «mar» apresenta-se caracterizado como sendo:

- oriundo de um lugar longínquo e tenebroso («Vinha de longe [...] dos confins do medo...»);

- tranquilizador («azul e brando»), comunicando com a terra em tom sussurrante («a murmurar»);

-detentor de um saber secreto sobre o cosmos («cósmico segredo», «confidencial revelação»);

- sedutor, envolvente, atestando com juramentos (v. 12) a certeza do «segredo» revelado;

- ...

 

    A «terra» caracteriza-se por:

- estar atenta ao que o «mar» lhe murmura («E a terra ouvia»);

-ter um «perfil agudo» que se acentua à medida que, envolvida pelo «mar», aumenta o seu interesse pela «revelação» que este lhe faz («E o agudo perfil mais se aguçava»);

- estar determinada, após a apreensão do «cósmico segredo», a encetar o processo da «descoberta», da união entre as suas «duas margens»;

- ...

 

2. O «segredo» que o mar diz à terra pode ter como conteúdo o seguinte:

- a transmissão da incompletude cósmica da «terra»;

- a «revelação» da existência, apenas intuída, de outros mundos;

- a ideia de que era preciso partir à descoberta de essa outra terra, ainda desconhecida, que até então só o mar tocara;

- ...

Nota - A apresentação de uma linha de interpretação plausível é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspectos de conteúdo.

 

3. A repetição da palavra «vinha», de natureza anafórica, presente no poema, produz tanto o efeito de toada melódica como o de intensificação dos sentidos expressos (o «mar» aproxima-se da «terra» de forma demorada, recorrente, tranquila, envolvente).

 

4. As formas do imperfeito do indicativo - «ouvia», «iluminava», «Era», «faltava», «faltava», «aguçava», «jurava» -, pelo seu efeito durativo, dão conta da reacção da «terra» como um processo que se desenvolve num crescendo. (Refira-se que a forma «Era», integrada na expressão enfática «Era [...] que», serve ainda de ligação às duas estrofes.)

 

5. A última estrofe do poema relaciona o texto com o seu título, ao confirmar que a «terra» de que se fala no poema é o cabo de «Sagres», lugar investido de um particular significado histórico e mítico no contexto dos Descobrimentos portugueses, por se considerar o espaço inaugural dos mesmos. Com efeito, «Sagres» (o «agudo perfil» que se «aguçava») é o ponto de onde a «terra» partirá para realizar a missão de que se autoinvestiu («Sagres sagrou»): unir-se à outra parte de si, converter em certeza a incerteza do mundo revelado.

 

(Fonte: Português B: questões de exame do 12.º ano, 1998-2003, volume 1. Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação. - 1ª ed. - Lisboa: GAVE, 2004)

 



 

Textos de apoio

 

Texto de apoio 1

 

Última aproximação que neste estudo faço entre Torga e Pessoa é a do poema “Sagres” – que nos Poemas ibéricos abre a segunda parte do livro, “História trágico-marítima” – com o “O Infante”, que na Mensagem inicia “Mar português”, segunda parte desta obra pessoana. […]

A aproximação faz-se possível não só por uma questão temática e nem mesmo da economia lírica de ambos os poemas, mas porque há evidências de uma sintaxe pessoana neste poema de Torga localizáveis, por exemplo, no efeito estilístico-discursivo de repetições como “vinha de longe o mar.../ Vinha de longe” ou “Era o resto do mundo que faltava/ (Porque faltava mundo)”, ou o paradoxo de expressões como “certeza incerta”, ou ainda no efeito contrapontístico e reiterativo de substantivos e verbos de mesmo prefixo: “Sagres sagrou”, “descoberta por descobrir”. Além disso, Sagres (Torga) é, na “mitologia” portuguesa, o lugar do Infante (Pessoa), da contemplação do longe, do mar desconhecido, do sonho das descobertas, da união das margens de várias terras que pelo mar se haveria de fazer. É essa semântica “mitológica” tão portuguesa e tão pessoana, que o poema de Torga reflete, por entre efeitos de estilo. Na escrita de Pessoa, “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. / Deus quis que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse já não separasse/ Sagrou-te e foste desvendando a espuma, // E a orla branca foi de ilha em continente,/ Clareou, correndo, até ao fim do mundo, / E viu-se a terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo.” Poderia fazer a demonstração de algumas aproximações pontuais em cada texto, algumas tão evidentes como o “Sagres sagrou”, de Torga, que reflete o verso pessoano “Sagrou-te e foste desvendando a espuma”, ou o “azul profundo” do qual se vê a terra surgir redonda e que no poema torguiano resulta no “azul e brando” do mar, murmurando “Aos ouvidos da terra um cósmico segredo”. Entretanto, mais importantes do que essas aproximações é a síntese temática, magistral em cada poema: “Deus quis que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse, já não separasse” (Pessoa); “Sagres sagrou então a descoberta/ Por descobrir: / As duas margens da certeza incerta/ Teriam de se unir!” (Torga).

 

José Paiva, “Entre Pessoa e Régio, Miguel Torga”. Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (55-70)

 

TORGA, Miguel (1965) POEMAS IBÉRICOS. Coimbra: [«Coimbra Editora, Lda.]. De 18x13 cm. Com 80 págs. E.


Texto de apoio 2


Sagres


O teimoso promontório de esperança, há séculos, permanece ignorado junto de nós.  (Torga, 1986a: 141)

Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inatividade acumulava, e a que bastaria apenas atualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente.  (Torga, 1986a: 140)

 

Em 1942 «Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três coisas se veem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar)» (Torga, 1999: 158) o autor de Diário foi pela primeira vez a Sagres à procura dum «Homem português que fosse o verdadeiro Infante» (Torga, 1999: 158). Ele sabia que o promontório de Sagres simbolizava o ponto nevrálgico da colossal antena que era a Península Ibérica, península descrita no poema «Ibéria» como «Uma antena da Europa a receber/ A voz do longe que lhe quer falar…» (Torga, 1995a: 7). E o que a voz do longe queria dizer à Ibéria era «um cósmico segredo.(…) [:] As duas margens da certeza incerta/ Teriam de se unir!» (Torga, 1995a: 21).

O primeiro herói torguiano a aperceber-se de tudo o que implicava esse «cósmico segredo» foi o Infante D. Henrique [«Sagres humano com raiz no mar» (Torga, 1952: 22), o mesmo é dizer um homem que «Irradia vontade e confiança» (Torga, 1986a: 39)].

Depois da gesta assombrosa que foram os Descobrimentos portugueses, Portugal entra numa profunda e longa crise, da qual nunca viria a recuperar, e que Torga, certamente influenciado por Antero e Oliveira Martins, comenta nestes termos:

 

Depois esquecemos a lição. A intolerância religiosa, que o ar do largo não arejara, expulsou o judeu e o capital; a terra não dava carvão nem petróleo; os frutos reais do esforço despendido iria fugir-nos das mãos. Era preciso opor a essas riquezas do progresso outros valores igualmente cotados na praça da civilização, que teriam agora de ser desencantados de não sei que Tormentoso interior … Mas não. Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade.

Mas a lengalenga não enterneceu o pedaço de chão que nos mandara ser inquietos e temerários. Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inatividade acumulava, e a que bastaria apenas atualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente. (Torga, 1986a: 140)

 

Depois deste texto do último capítulo de Portugal, Torga viria a escrever no Diário duas notas sobre Sagres e o Infante. A primeira data de 1976 e reflete a profunda preocupação e mágoa com que o autor de Portugal observava a forma como nesse período era ensinada a História: «Sagres sem o infante. (…) Agora, que não temos História, o recurso é olhar esta grandeza assim, ao natural. Mas que falta lhe faz o herói! Que falta fazem os mitos, afinal!» (Torga, 1999: 1322)

Três anos depois o diarista volta ao promontório, e, como das outras vezes, vai acompanhado da esperança de encontrar o Infante. Com algum espanto nosso encontra-o «no espanto recolhido de quantos aqui vêm.» (Torga, 1999: 1399) E nós perguntamos se não haverá na constatação torguiana excesso de otimismo. Das dezenas de vezes que fomos a Sagres sentimos na maioria dos visitantes um entusiasmo que estava bastante aquém do que era legítimo esperar. Voltaremos a esta questão na conclusão da tese.

Em 1982 o autor de Mar faz um «Grande passeio de barco ao longo da costa» (Torga, 1999: 1465) algarvia, com a finalidade de aprofundar o conhecimento da identidade de Portugal: «Talvez (…) depois de tanto lhe esquadrinhar em terra a identidade, seja essa a maneira mais direta de o surpreender na sua flagrância elementar. Como que a flutuar ainda no líquido amniótico.» (Torga, 1999: 1465) Terra e mar revelam-se, mais uma vez, fundamentais para a compreensão da identidade nacional.

Em Março de 1970, depois de uma viagem aos Açores e à Madeira, Torga escreveu, a bordo, um curtíssimo poema, mas fundamental para compreendermos o significado nacional que atribuía ao Atlântico:

Descoberta

O tempo que levou a tua imagem

A encontrar nos meus olhos a medida

Dum íntimo destino,

Mar que juntas a pátria repartida

E lhe salgas o nome masculino!

 

E, como não podia deixar de ser, o mar, na obra torguiana, está profundamente ligado à emigração. Em 1988 escreveu: «Todos os caminhos transversais de Portugal vêm ter ao mar. Verificá-lo, é avivar na consciência a nossa razão de ser. Que nascemos para embarcar. Ou de imediato, ou na lembrança, ou na imaginação.» (Torga, 1999: 1616). É óbvio que quando o autor do Diário escreveu esta nota a realidade nacional já não era esta. Desde os anos sessenta os emigrantes utilizam cada vez menos o transporte marítimo e o principal destino passa a ser a Europa. Mas Torga pensava numa perspetiva histórica, e aí a nossa emigração é através do Atlântico.

O mar era também, para Torga, um espaço ideal para falar e refletir sobre os mais nobres sentimentos. Por mero acaso, encontrou durante um banho na praia da Oura, pessoas conhecidas dum grande amigo seu «que a morte levou cedo». Depois de afirmar que «Em sua memória, as ondas abrandaram a fúria durante o diálogo», o poeta concluiu a nota do Diário com esta reflexão:

Vir ao mundo só vale a pena assim: quando se deixa nele uma imagem que em todos os tempos e lugares mereça a celebração dos que ficam e a bênção da própria natureza. Quando, a lembrar-nos, a posteridade sinta que não há grandeza maior do que a grandeza de alma. (Torga, 1999: 1596-7)

A convivência de Torga com o mar, com a emigração (por mar), com as gentes marítimas (pescadores e, não menos importante, com as peixeiras) e com a história de Portugal tê-lo-á ajudado a «pescar imagens» (Torga, 1999: 263) para a sua poesia, e a interiorizar, cada vez mais, o poema «Identificação», de Orfeu Rebelde:

 

Vai a barca do mundo à flor das vagas

No seu mar de tormentas;

(…)

E tu, poeta, como um sacerdote

Da bonança,

A conjurar o mal,

A pregar confiança,

A cantar,

A cantar,

Sem nenhum desespero

Te desesperar!

(…) (Torga, 1992a: 46)

 

José Manuel Cymbron, O Portugal De Miguel Torga (Um Itinerário Em Casa Do Orfeu Rebelde). Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2015


 

Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 

 


CARREIRO, José. “Sagres, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 28-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/sagres-miguel-torga.html


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