Páginas

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

As Fontes: Um dia quebrarei todas as pontes, Sophia Andresen


 

AS FONTES

 

Um dia quebrarei todas as pontes

Que ligam o meu ser, vivo e total,

À agitação do mundo do irreal,

E calma subirei até às fontes.

 

Irei até às fontes onde mora

A plenitude, o límpido esplendor

Que me foi prometido em cada hora,

E na face incompleta do amor.

 

Irei beber a luz e o amanhecer,

Irei beber a voz dessa promessa

Que às vezes como um voo me atravessa,

E nela cumprirei todo o meu ser.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen
POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora 
https://purl.pt/19841/1/1940/galeria/f12/foto1.html

Dedicatória de Sophia Andresen à mãe. 
POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora.
https://purl.pt/19841/1/1940/galeria/f12/foto2.html



Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- importância do campo lexical relativo à ideia de totalidade;

- valor simbólico de «fontes»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- traços caracterizadores do sujeito poético.

 

Explicitação de cenários de resposta

Importância do campo lexical relativo à ideia de totalidade

- O campo lexical relativo à ideia de totalidade é constituído pelas seguintes palavras e expressões: «todas as pontes» (v. 1), «meu ser, vivo e total» (v. 2), «A plenitude, o límpido esplendor» (v. 6), «em cada hora» (v. 7) e «todo o meu ser» (v. 12);

- presente em todas as estrofes, este campo lexical contribui para a definição do tema central do poema, isto é, a busca do absoluto, da realização plena.

 

Valor simbólico de «fontes»

Simbolicamente as «fontes» representam o lugar:

- da origem e da «plenitude», da pureza e harmonia primordiais («onde mora / [...] o límpido esplendor», «a luz e o amanhecer» - vv. 5-6, 9);

- da verdade, do real que o «eu» procura, como alternativa «À agitação do mundo do irreal» ao qual ainda está ligado;

- da revelação e da consumação da «promessa» do «límpido esplendor» («Irei beber a voz dessa promessa» - v. 10);

- da realização suprema do ser que se cumpre num percurso de elevação («subirei até às fontes», «E nela cumprirei todo o meu ser» - vv. 4, 12);

- …

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

Relativamente aos recursos estilísticos, destacam-se:

- as metáforas («luz», «VOZ», «fontes»), imagens simbólicas da harmonia primordial («mora /A plenitude»);

- as sinestesias («beber a luz e o amanhecer/[...] beber a voz»), cruzando sensações gustativas, visuais e auditivas;

- a personificação («face incompleta do amor»), conferindo um rosto ao «amor», salienta a sua incompletude humana;

- a comparação (v. 11), revelando a imaterialidade da «promessa» e o seu carácter vertiginoso e ascensional;

- a anáfora (vv. 5, 9, 10), reiterando a determinação do sujeito poético em aceder à plenitude;

- a adjetivação dupla («vivo e total») e simples («calma», «límpido esplendor», «face incompleta»);

 

Quanto aos aspetos formais, salienta-se:

- poema composto por três quadras, com versos decassílabos;

- rima interpolada (ABBA) na primeira e terceira estrofes e cruzada (CDCD) na segunda quadra;

- …

 

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, englobando obrigatoriamente recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Traços caracterizadores do sujeito poético

O sujeito poético caracteriza-se por ser alguém:

- lúcido, consciente de que vive num mundo de imperfeição, com o qual entrará «Um dia» em rutura;

- determinado e sereno, na sua busca da «plenitude»;

- movido pela expectativa de alcançar «O límpido esplendor», prometido «em cada hora,/ E na face incompleta do amor»;

- insatisfeito diante do amor, vendo-o como um mediador incompleto da plenitude («face incompleta do amor»);

- sedento da plenitude prometida, por vezes vislumbrada no «voo» que o «atravessa»;

- predestinado a cumprir-se como «ser» total;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 2001, 1.ª fase, 1.ª chamada)

 

Sophia fotografada por Fernando Lemos, no jardim da casa  da Travessa das Mónicas, anos 50


Análise do poema:

 

O poema “As Fontes”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, é constituído por três quartetos, compostos por versos decassílabos heroicos. O poema tem um ritmo regular, com acentos sempre caindo na sexta e na última sílaba poéticas, o que lhe confere sonoridade e fluência:

Um dia quebraREI todas as PONtes

Que ligam o meu SER, vivo e toTAL,

À agitação do MUNdo do iRREAL,

E calma subiREI até às FONtes. 

 

No que diz respeito ao nível fonológico do poema, há a constante presença de sons nasais, tanto vogais nasalizadas quanto consoantes, o que confere um certo abrandamento na articulação dos versos, bem como um tom melancólico que se coaduna com os sentidos do poema no que diz respeito à rutura necessária para que se busque a plenitude das fontes, busca essa apenas hipotética.

Ressalta-se, também, a presença constante de bilabiais e de encontros consonantais /pr/ (“prometido”, “promessa”, “cumprirei”) e /pl/ (“plenitude”, “esplendor”, “incompleta”), o que acentua a ideia de rutura presente no sentido do poema, bem como de aliteração em alguns versos particulares, como aliteração de /p/ em “a plenitude, o límpido esplendor” e de /v/ em “que às vezes como um voo me atravessa”. No que diz respeito às vogais do poema, elas são geralmente mais fechadas, /e/ /i/ /u/, havendo poucas /a/ em posição tônica, o que lembraria o som contido das fontes representadas no poema.

Aliando-se à cadência rítmica do poema, formada por decassílabos heroicos, estão as rimas, cujo papel é criar uma memória sonora para o leitor/ouvinte do poema. Em “As Fontes”, é observado o seguinte padrão rítmico: ABBA na primeira estrofe (“pontes” com “fontes”; “total” com “irreal”); CDCD na segunda estrofe (“mora” com “hora”, “esplendor” com “amor”); e EFFE na terceira estrofe (“amanhecer” com “ser”, “promessa” com “atravessa”). Além das rimas externas, é observável a presença de rimas internas entre os verbos no futuro do presente (“quebrarei” e “subirei”, na primeira estrofe, “irei” e “cumprirei” na segunda e terceira estrofes).

As rimas criam uma relação de equivalência sémica entre as palavras rimadas que não existe em um discurso não-poético, o que intensifica o caráter de sistema modalizador secundário da criação poética. As relações estabelecidas entre as palavras que formam os pares rímicos “pontes” / ”fontes” e “total” / ”irreal”, na primeira estrofe, são de oposição: as pontes têm de ser quebradas para que se atinjam as fontes e o ser total está contraposto ao mundo irreal. Na segunda estrofe, a rima “mora” / “hora” opõe uma noção de permanência à reiteração de uma promessa não cumprida, enquanto a rima “esplendor” / ”amor” amplia o sentido transcendental desses dois vocábulos. Na terceira estrofe, as construções rímicas “amanhecer” / “ser” e “promessa” / “atravessa” fortalecem o tom transcendente do poema.

O poema remete ao descompasso entre um mundo do irreal, agitado, e um mundo de plenitude, almejado pelo sujeito lírico, que, para alcançar esse beber das fontes de límpido esplendor, deve quebrar as pontes que unem esses dois mundos. O título do poema já indica por um lado a noção de origem, de começo, e, por outro, uma ideia de natureza relativa à aceção de fonte como água nascente (aceção que encontra ressonância na terceira estrofe do poema, nos versos unidos por anáfora). Para poder procurar por esse mundo pleno, o sujeito lírico deve renunciar ao mundo agitado.

Esse descompasso entre um mundo real, pleno e esplendoroso e um mundo irreal, agitado e caótico tem um componente platônico, de distinção entre o mundo das ideias e o mundo sensível. O fato de o sujeito lírico subir até às fontes, depois de quebrar as pontes que ligam seu ser vivo e total ao mundo irreal e agitado, é um indicativo dessa idealização platônica da realidade. Subir, buscar os píncaros do mundo das ideias, onde as essências estão preservadas, onde as promessas de amor que não foram cumpridas no mundo caótico de que o sujeito lírico se desprende serão realizadas, traduz certo gosto platonizante da realidade, em que o idealismo recobre os fatos, coisas e seres, tornando-os alvo de uma exigência de perfeição, de retidão e de pureza. Esta exigência se manifesta pelo uso de substantivos e adjetivos inseridos em campos semânticos afins ao da pureza e da perfeição, tais como “total”, “plenitude”, “límpido esplendor”, “luz”, “amanhecer”. Nessa busca da totalidade, figura a procura por um amor real e completo, que, diferentemente da face incompleta do amor, o qual lhe foi prometido reiteradamente, relacionada ao mundo caótico de que o sujeito lírico quer evadir-se, ofereça a promessa aos lábios do eu lírico para que possa ser bebida, uma vez chegada às fontes.

Na terceira estrofe, é possível notar dois versos que estão relacionados por anáfora: “Irei beber a luz e o amanhecer,/ Irei beber a voz dessa promessa”. Esse recurso, ao reiterar estruturalmente os versos, torna-se mais um fator de semantização do texto poético. Reiterada a estrutura dos versos, pode-se perceber que o sentido de plenitude e a idealização platonizante também são reforçados: depois de ascender às fontes onde estão as promessas e a totalidade, o sujeito lírico receberá o conhecimento original – metaforizado por “beber a luz e o amanhecer” – e conhecerá o amor completo – metaforizado por “beber a voz dessa promessa”. A construção “irei beber” amplia, também, um dos sentidos de fonte: lugar onde brota água, nascente.

Há mais versos relacionados estruturalmente, marcados pelas palavras que os iniciam, que aparecem nas três estrofes. É o caso dos versos iniciados pela conjunção “que”: “Que ligam o meu ser, vivo e total” na primeira estrofe, “Que me foi prometido em cada hora”, na segunda, e “Que às vezes como um voo me atravessa” na terceira, que são orações subordinadas adjetivas dos versos anteriores.

Caso semelhante e mais significativo é o dos versos iniciados por “e” que encerram as estrofes: “E calma subirei até às fontes.”, “E na face incompleta do amor.” e “E nela cumprirei todo o meu ser.” Esses versos iconizam o completar de um ciclo: o último verso da primeira estrofe sugere o caminho de ascensão às origens (mundo inteligível platônico); o último verso da segunda estrofe mostra que na vida o sujeito lírico só encontrou “a face incompleta do amor”, ou seja, as sombras do verdadeiro amor que agora busca; e no verso final do poema o eu lírico completa o percurso para que o ser adquira a sua plenitude – o ser encerra o círculo da busca, cumprindo-se totalmente.

Entretanto, essa busca de um mundo total é apenas hipotética, fato que pode ser confirmado na análise dos tempos verbais utilizados ao longo do poema e que é apresentado no início do primeiro verso, mediante a expressão adverbial “Um dia”. Ao longo de “As Fontes”, os tempos verbais utilizados são o futuro do presente (“quebrarei”, “subirei”, “irei”, “cumprirei”), o presente (“ligam”, “atravessa”) e pretérito perfeito (“foi prometido”). O futuro do presente, como pode ser notado, predomina em relação aos verbos em outros tempos, o que dá ao poema essa aura de possibilidade ainda não concretizada. Some-se a isso o fato de os verbos em tal tempo estarem sempre ligados ao sujeito lírico e pode-se afirmar que essa projeção do futuro é individual. Os verbos no presente e no pretérito representam as situações que foram e são vivenciadas nesse mundo caótico do qual o eu lírico ainda não se desprendeu, mesmo que deseje subir até às fontes da plenitude, do conhecimento e do amor completo. Há, portanto, uma cisão entre os tempos verbais do poema semelhante à ruptura entre o mundo irreal e o mundo das fontes evidenciados pelo sentido dos versos, estando os dois mundos em contato pelas pontes da primeira estrofe e pela voz da promessa que o sujeito lírico deseja beber quando subir às fontes e que, ainda no mundo real, a atravessa como um voo (o sujeito lírico do poema é uma mulher, fato confirmado pelo adjetivo “calma”). A visão de um mundo essencial perpassa o eu lírico, mesmo que esteja no mundo irreal e agitado.

O poema “As Fontes” tem três cenas, limitadas pelos pontos finais que encerram cada estrofe. Cabe ressaltar que o poema segue uma pontuação canônica, sem muitas inversões ou indeterminações decorrentes de seu uso. Na primeira estrofe, o sujeito lírico afirma seu desejo de libertar-se do mundo caótico para que seu ser vivo e total possa subir calmamente até às fontes. Na segunda estrofe, as fontes têm seu sentido mais determinado – fontes onde mora a plenitude – e a experiência de amor vivida pelo eu lírico é delimitada como incompleta e relacionada ao esplendor que havia sido prometido reiteradamente. Essa é a estrofe que marca o trajeto hipotético desde a libertação do sujeito lírico até a ação que ele deseja efetuar uma vez que suba até às fontes, que é apresentada na terceira estrofe. Tendo em mente o que foi dito sobre o último verso de cada estrofe e sua característica de ciclo completo, pode-se pensar que tais versos iconizam o movimento de evasão do poema.

Encerrando a análise, parece relevante retomar alguns excertos de Arte Poética I, publicada por Sophia de Mello Breyner Andresen em 1962 na revista Távola Redonda, e ressaltar as convergências entre o que ela postula em tal texto e o que ela cria em “As Fontes” com vistas a justificar a análise baseada, em certa medida, em uma idealização platônica. Durante o cotejo entre poema e ars poética, pretende-se apontar convergências e divergências entre o observado na análise do poema e da reflexão sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e os ideais da modernidade presentes em outros poetas líricos.

 

“Entre a ânfora e as fontes, a poesia: traços da modernidade de Sophia de Mello Breyner Andresen em As Fontes e Arte Poética I”, Iarima Nunes Redü. Nau Literária, vol. 12, nº 1, jun. 2016. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/75349

 

 

Poderá também gostar de:

 


As Fontes: Um dia quebrarei todas as pontes, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-19. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/as-fontes-um-dia-quebrarei-todas-as.html


Sem comentários:

Enviar um comentário