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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

As Nereides, Sophia Andresen

Nereida reclinada nas costas de um cavalo-marinho, fresco de Pompéia

 

AS NEREIDES1

 

Pudesse eu reter o teu fluir, ó quarto

Reter para sempre o teu quadrado branco

Denso de silêncio puro

E vida atenta

 

Reter o brilho

Da Cassiopeia2 em frente da janela

Reter a queda

Das ondas sobre a areia

E habitar para sempre o teu espelho

 

Que dos meus ombros jamais tombasse o tempo

Marinho misterioso e antigo

Assim como as nereides

Não perderão jamais seu manto de água

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

NAVEGAÇÕES, 1ª ed., versão inglesa de Ruth Fainlight, versão francesa de Joaquim Vital, 1983, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Musarum officia», com um disco gravado pela Autora • 2.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 

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Notas:

1 Nereides: Ninfas do mar. Filhas de Nereu, um dos "Velhos do Mar", e de Dóris, uma Oceânide, e netas de Oceano (pai de Dóris), eram divindades marinhas por excelência, de grande beleza. Eram para muitos a personificação das ondas do mar e do aspeto jovial do mar. Seriam mais de cinquenta e, para alguns, mesmo cem. Entre elas, são bastante conhecidas Anfitrite, Calipso, Dione, Galateia, Janira, Orítia, Proto, Tétis, entre outras. Tétis ficou famosa também por ser mãe de Aquiles, Anfitrite por ser esposa de Poseidon, deus do mar - o mais volúvel dos deuses em questões amorosas, deixando o maior número de filhos extraconjugais, superando mesmo Zeus - ou Orítia, tida como filha de Erecteu, rei de Atenas. As Nereides faziam parte, com os Tritões, do agitado cortejo de divindades do Mar. As Nereides viviam no fundo do mar, de acordo com a tradição, num palácio do pai, sentando-se num trono de ouro. O seu tempo era ocupado a fiar, a tecer e a cantar, para além de se divertirem a cavalgar golfinhos ou cavalos-marinhos nas ondas, como diziam os poetas gregos e os posteriores, com os seus longos cabelos a boiar nas águas e alegremente a nadar e saltar por entre golfinhos e tritões. A sua postura nos episódios fabulosos da mitologia grega era quase sempre a de meras espectadoras, observando ou surgindo como meras figurantes, raramente como atuantes ou decisivas em acontecimentos maiores. Por exemplo, limitaram-se a consolar sua irmã Tétis, chorando com ela a morte de Aquiles e de Pátroclo. Quando intervinham, era sempre de forma subalterna ou discreta, como sucedeu quando ajudaram Hércules (Héracles) a obter de Nereu, seu pai, indicações seguras para que o herói encontrasse o caminho para o país das Hespérides. Entre outros episódios, as Nereides também estiveram presentes quando Perseu libertou Andrómeda. (Nereide na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. Disponível em https://www.infopedia.pt/$nereide)

2 Cassiopeia: Constelação Boreal - constelação vizinha do Polo Norte, com cinco estrelas muito visíveis, em forma de W, e outras menos visíveis, algumas variáveis e múltiplas.

 

 

I – Comentário de texto

Elabore um comentário do poema “As Nereides” que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- tema e desenvolvimento;

- tempos verbais e sua dimensão semântica;

- identificação e descodificação dos elementos simbólicos;

- alusões ao mundo antigo e sua exemplificação.

 

 

II – Texto expositivo-argumentativo

Fazendo apelo à sua experiência de leitura, comente o excert0 que se segue, num texto expositivo-argumentativo bem estruturado, de 200 a 300 palavras, tendo em conta a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. 

Como ela própria o diz: "O poema não fala de uma vida ideal, mas de uma vida concreta". E nesse seu falar a transfigura. É a busca de uma "relação justa com a pedra. com o rio, com a árvore". E quem procura uma relação justa com as coisas procura necessariamente "uma relação justa com o homem".

Manuel Alegre, Arte de Marear

 

 

I – Proposta de correção do comentário de texto

O poema “As Nereides”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, é perfeitamente exemplificativo do desejo da poetisa em adquirir um tempo absoluto. Para tal, no presente da escrita, manifesta o desejo de fixar o tempo que se reporta ao passado, provavelmente ao da sua infância, passada na (mágica) casa de praia. Logicamente que é um tempo que se desliga do seu normal fluir, portanto é um "tempo fora do tempo". A referência ao "quarto", ao "quadrado branco", à "janela", ao “espelho", às "ondas" e à "areia" remete para um espaço no qual pôde encontrar felicidade e harmonia. Assim, surge um tempo e um espaço associados semanticamente pela ideia de felicidade e harmonia.

O desejo do sujeito poético manifesta-se indubitavelmente através do imperfeito do conjuntivo ("Pudesse" e "jamais tombasse") associado ao infinitivo dos verbos "reter" e "habitar", indiciador de ações e de continuidade. Em oposição ao modo conjuntivo, surge o futuro do indicativo, no último verso, ("Não perderão jamais") a traduzir a certeza de que as "nereides", pelo facto de serem ninfas, divindades, possuirão para sempre aquilo que lhes pertence, independentemente da passagem do tempo. De realçar aqui o facto de o verbo "perder" vir na forma negativa, sinónimo, portanto, de "reter para sempre" (v. 2), ação que o sujeito de enunciação gostaria de empreender, mas que não consegue devido à efemeridade da vida humana.

A palavra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen reveste-se de uma simbologia própria, como é exemplo este poema. Assim, ao invocar o "quarto" (v. 1), procura reconquistar um mundo perdido. Pelo espaço que representa, o "quarto" transmite conforto, intimidade, silêncio, favorecendo o contacto com o interior - introspeção. O elemento que permite a ligação com o exterior será a "janela", portanto, o meio que permite alcançar a liberdade, pois favorece o contacto com o espaço natural - a praia. O "branco" do quarto ("quadrado branco") liga-se à ideia de pureza e tranquilidade, assim como o "espelho" retrata pureza e brilho, pois os espelhos nunca são baços, isto é, dão sempre conta da verdade do mundo, tal como o refere no poema "Os Espelhos". O "brilho" associa-se à luz, portanto, à harmonia, ao mundo cósmico. A referência ao "manto de água" liga-se também à ideia de pureza, visto ser símbolo da vida e da sua dinâmica.

Ao longo do texto, facilmente se deteta a ausência de referências a figuras humanas, evidenciando-se, porém, a recorrência a divindades mitológicas, para as quais aponta o título ("As Nereides"). Pelo facto de pertencerem a um plano "superior" ao dos homens, o sujeito poético pretende fazer realçar a ideia de perfeição desses seres "fora do tempo", em oposição ao homem, ser que caminha para o caos. Ora, ao fazer alusão ao mundo antigo, o que a poetisa pretende é tornar os homens mais divinos, mais capazes de avançar para o Bem e para a Verdade.

Em jeito de conclusão, este é mais um dos textos poéticos de Sophia de Mello Breyner Andresen, onde se evidencia a procura de um tempo perfeito, equilibrado e harmonioso, ideais típicos da antiguidade, tão prezada pela poetisa. Por outro lado, o poema revela também uma tomada de consciência de que o ser humano é dominado pelo tempo, contrariamente aos deuses, fator que poderá dar energias ao homem para passar do caos ao cosmos.

 

II – Proposta de correção do texto expositivo-argumentativo

A “relação justa com as coisas" e “com o homem" apresenta-se como a preocupação primordial da poetisa, enquanto medianeira do Absoluto, de um mundo mais autêntico.

Sophia de Mello Breyner Andresen recorre frequentemente à antiguidade clássica, retirando-lhe o que de cósmico a caracteriza, nomeadamente os valores de harmonia, ordem, equilíbrio e sossego. São, no fundo, estes valores que ela gostaria de encontrar entre os homens, porém, a realidade do mundo em que vivemos diz-lhe que a injustiça reina, pois ainda há os que ganham "o pão com o suor do (teu) rosto" e os que "com o suor dos outros" ganham "o pão" ("As pessoas sensíveis").

É o mundo real, objetivo que perpassa nos seus poemas, magicamente transformado pela palavra poética, capaz de denunciar a sociedade caótica, através da intersecção dos quatro elementos primordiais (ar, água, terra e fogo), tal como testemunha o poema "Praia".

Revela-se um jogo dialético entre a perfeição e o declínio na busca de uma outra plenitude, daí surgir o carácter moral da sua poesia.

A sua obra poética, que parte sempre do mundo real, revela uma preocupação com a procura da justiça, o que a leva a denunciar situações que se ligam a atos repreensíveis, tais como a corrupção e a marginalização de quem é coerente e procura a justiça e a verdade. A este propósito, citam-se os poemas "Porque" (1958) e "Data" (1962), reveladores de uma pura consciência relativamente à repressão existente durante a ditadura salazarista.

Ora, todos os aspetos mencionados relativamente à obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen surgem através de uma linguagem simbólica e alegórica, capaz de captar magicamente pela forma corno evoca o mundo concreto. 

(Fonte: Dossier Exame ‑ Português A, 12.º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003)

 

The Nereid Monument. From Xanthos (Lycia), modern-day Antalya Province, Turkey. 390–380 BC.
Room 17, the British Museum, London


Texto de apoio

O desejo de comungar com os deuses, de respirar os locais e jardins límpidos e de, com os deuses, ser capaz de viver céu e mar introduz na obra Sophia a nostalgia do passado e obriga a esforço para cristalizar na poesia esse tempo mítico. Assim acontece em “No tempo dividido” – poema do livro homónimo (p. 38) –, em que o esquecimento dos deuses arrasta a uma vida monótona, sem memória, na qual o tempo «a si próprio se devora». A aspiração de reter o tempo aparece bem explícita em “As Nereides”, de Geografia (p. 52). É o anseio de apreender e segurar cada coisa, como permanente presença – o «denso silêncio puro», a «vida atenta» do quarto, o brilho da Cassiopeia, «a queda / Das ondas sobre a areia –, para que o tempo não passasse e pudesse ser como as Nereides que nunca perderão «seu manto de água».

A tentativa de tornar permanente o momento e as coisas, num desejo de com elas se identificar e desse modo evitar que o «tempo / marinho misterioso e antigo» tombe dos ombros, é reiteradamente sublinhada pela repetição anafórica de ‘reter’ nas duas primeiras estrofes e pelas aliterações dos dois primeiros versos da terceira estância.

 

José Ribeiro Ferreira, “Nostalgia do passado em Sophia: o fascínio da Grécia”, in MÁTHESIS 15 2006 197-210.

 

 

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As Nereides, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-20. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/as-nereides-sophia-andresen.html


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