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quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Para atravessar contigo o deserto do mundo, Sophia Andresen



 

PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO

 

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para enfrentarmos juntos o terror da morte

Para ver a verdade para perder o medo

Ao lado dos teus passos caminhei

 

Por ti deixei meu reino meu segredo

Minha rápida noite meu silêncio

Minha pérola redonda e seu oriente

Meu espelho minha vida minha imagem

E abandonei os jardins do paraíso

 

Cá fora à luz sem véu do dia duro

Sem os espelhos vi que estava nua

E ao descampado se chamava tempo

 

Por isso com teus gestos me vestiste

E aprendi a viver em pleno vento

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora; 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora; 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora; 4.ª ed., 1972, Lisboa, Livraria Morais Editora; 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores; 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra; 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.

 

 

Linhas de leitura do poema “Para atravessar contigo o deserto do mundo”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Poema constituído por quatro estrofes: uma quadra, uma quintilha, um terceto e um dístico. Sem isomorfia estrófica ou métrica:

- cinco versos decassilábicos: vv. 4, 5, 6, 10, 13

- três versos hendecassilábicos: vv. 8, 11, 14

- quatro versos dodecassilábicos: vv. 2, 7, 9, 12

- dois versos de treze sílabas: vv. 1, 3

 

Este poema assenta a sua estrutura na repetição, no eco: a acumulação de fórmulas semelhantes.

As palavras dependentes da invariante (re)semantizam-se e tornam-se símbolos sentidos equivalentes:

 

Para

atravessar contigo o deserto do mundo

enfrentarmos juntos o terror da morte

ver a verdade

perder o medo

 

meu

minha

reino

segredo

rápida morte

silêncio

pérola redonda e seu oriente

espelho

vida

imagem

 

sem

véu do dia duro

os espelhos

 

Tomemos o segundo conjunto que remete para o tão costumado «despir», «libertar» em Sophia. O «eu» deixa, larga tudo o que possuía – tesouros, segredos, tempo, diretrizes, vida – aquilo que constitui o paraíso. Por muito diversas que sejam as palavras à volta de «meu» ou «minha», elas ganham um sentido único: a vida. Para quê este despir-se de si mesma*, este libertar-se de algo que contém em sim o sentido da positividade? Responde a esta pergunta o primeiro conjunto e aí, de novo, as palavras se (re)semantizam assumindo valores idênticos: a procura do infinito. Podemos, pois, equacionar estes dois conjuntos paradoxalmente:

Primeiro

Segundo

infinito

intemporal

essência

eterno

verdade

finito

temporal

existência

contingente

artificialidade

 

Das duas primeiras estrofes, resta-nos depois da extração dos dois conjuntos:

Ao lado de teus passos caminhei

Por ti deixei

E abandonei os jardins do paraíso

três ações passadas, situadas num tempo não único mas intermitente e passageiro e que, por isso mesmo, as encadeia umas nas outras.

Tempo de lamentação, sugerido pela repetição do ditongo gemibundo «ei», resultante do encontro com a nostalgia provocada por uma não solidão aparente «ao lado dos teus passos» que, efetivamente, é a solidão, resultante do ato de deixar e do ato de abandonar. A situação abstrata sobrepõe-se à concreta. A solidão impõe-se e o Eu enfrenta-se.

O advérbio «cá», no início da terceira estrofe, cria dois espaços do poema. «Cá» é o início dum tempo outro em que o Eu – despido do que é finito –, contingente e efémero, se enfrenta a si mesmo, à sua essência, já não cega mas «à luz» e «sem véu do dia duro / sem os espelhos» (o terceiro conjunto) e se vê liberta «vi que estava nua» – é o encontro por excelência, o encontro consigo mesma; subtrai-se da exigência das categorias habituais do espaço e do tempo em que se encontrava enclausurada «nos jardins do paraíso» - «e ao descampado se chamava tempo»; criação que implica libertação - o trazer para fora.

A mudança do tempo verbal capta a nossa atenção e, de uma situação temporal determinada pelo pretérito perfeito, passa-se a uma situação de atemporalidade.

O dístico presentifica a consubstanciação do «eu» com o «tu» «com teus gestos me vestistes», realizada depois do alvo atingido «por isso» e só então - liberta, em comunhão perfeita com o «tu» (cosmos? ser supremo? absoluto?) «aprendi a viver em pleno vento» - vida real, já não virtual, criada pelos espelhos; a essência cuja leveza é sugerida pela aliteração dos [v](6) presentes só depois do «Cá», após a libertação, após a transformação. 

(Estela Pinto Ribeiro Lamas, Sophia de Mello Breyner Andresen – Da escrita ao texto. Lisboa, Editorial Caminho, 1998, pp. 77-80)




__________

* Deixar todos os vínculos do seu egoísmo, expressos a partir das imagens mais preciosas, como a «pérola redonda e seu oriente» e os «jardins do paraíso» (António Moniz, Para uma leitura de sete poetas contemporâneos. Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 114); «minha pérola redonda e seu oriente» representa o passado que o sujeito deixou para trás, secreto, protegido e intocado, como a pérola dentro da concha, guardada no seu oriente, na sua origem onde ninguém tinha ainda chegado (in Plural - Língua Portuguesa 10.º Ano. Livro do Professor. E. Pinto et alii, 2003, p. 39)

 

  


A nível semântico são de realçar:

Adjetivação expressiva:

  • «minha rápida noite» ‑ rápida, porque demasiado breve para o caudal de sonhos.
  • «minha pérola redonda e seu oriente» ‑ neste contexto, o adjetivo tende para uma qualificação objetiva do sol.
  • «dia duro» ‑ que reforça a ideia de negatividade pressentida em «luz sem véu».
  • «vi que estava nua» ‑ onde assume conotações de fragilidade e desproteção».

 

As fortes marcas de uma vivência subjetiva, denunciada pelos pronomes pessoais e possessivos de 1.ª pessoa do singular, que conferem predominância à função emotiva: o sujeito subentendido (Eu) de «caminhei», «deixei», abandonei», «vi», «estava» e «aprendi»; o pronome pessoal de complemento «me», que aparece na última estrofe; e os possessivos «meu» (quatro vezes) e «minha» (quatro vezes).

 

A força e tensão dramática características da poesia de Sophia e presentes neste poema resultam ainda de uma relação com um Tu, visível através dos pronomes pessoais e possessivos de 2.ª pessoa do singular: os pronomes pessoais de complemento tigo (em «contigo») e ti e o possessivo teus (duas vezes).

 

A anáfora de «Para», nos três primeiros versos do poema e de «minha», nos 2.º e 3.º versos da segunda estrofe.

 

A repetição insistente, na 2.ª estrofe, dos possessivos «meu» e «minha», para realçar, por contraste, o desencanto expresso quando se sai do mundo do sonho e se enfrenta a realidade: «Lá fora à luz sem véu do dia duro»

 

Nas 2.ª e 3.ª estrofes o contraste entre «noite» (símbolo de visões, sonho, imaginário, captação de segredos, silêncio e paz do passado) e o «dia» ou «luz» (conotada com a agressividade, a dureza e a insegurança) que é preciso vencer.

 

O paralelismo, de grande efeito estético, utilizado em expressões como:

«Para atravessar […] o deserto do mundo

Para enfrentarmos […] o terror da morte»

 

«Para ver a verdade

Para ver o medo»

 

«meu reino

meu segredo

[…]

meu silêncio»

 

As metáforas são muito frequentes e a sua articulação tão íntima que leva à imagem.

(cf. A Líricacadernos de literatura portuguesa, Ed. Sebenta, pp. 144-146)

 



 


O exílio no casamento

Neste texto, o sentimento de perda do sujeito poético está enfatizado pelo poliptoto do pronome possessivo, aplicado a nomes com cargas positivas e que sugerem um fio isotópico de intimidade: «reino», «segredo», «noite», «silêncio», «pérola», «oriente». A verdade do desmascaramento realizado no seio de uma vida a dois – já exposta no poema «Eis-me» – está aqui expressa em termos ainda mais disfemísticos: a mulher aparece qual despojo de guerra em epopeia homérica, «nua» em pleno «descampado», «à luz sem véu do dia duro». No entanto, o arquétipo do marido como guerreiro conquistador ameniza-se no dístico final, o que dá uma tónica positiva às renúncias enumeradas pela poetisa em prol desta união:

«com teus gestos me vestiste

E aprendi a viver em pleno vento».

Ou seja, o casamento implicou uma reconstrução do «eu», e parece consistir num ritual de passagem que transforma a jovem ingénua na adulta consciente e lúcida acerca do «deserto do mundo»: ela desnuda-se, ou seja, abandona o seu reino pessoal, para depois ser vestida pelo tu, isto é, para enfrentar a dois a realidade, simbolizada no vento.

Cristina Costa Vieira, “O exílio na vida e na poesia de Sophia de Mello Breyner” in Revista UBILETRAS n.º 4, 2013

 

 

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Para atravessar contigo o deserto do mundo, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-05. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/para-atravessar-contigo-o-deserto-do.html


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