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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Este é o tempo, Sophia Andresen

 



 

ESTE É O TEMPO

 

Este é o tempo

Da selva mais obscura

 

Até o ar azul se tornou grades

E a luz do sol se tornou impura

 

Esta é a noite

Deusa de chacais

Pesada de amargura

 

Este é o tempo em que os homens renunciam.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

MAR NOVO, 1.ª ed., 1958, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Fernando J.B. Martinho.

 

 

I - Comentário de texto

Após a leitura cuidadosa do poema, faça a sua análise, sem esquecer os níveis fónico, morfossintático e semântico, e elabore um texto de acordo com os seguintes itens:

  • denúncia e acusação;
  • expressões intérpretes da repressão;
  • a expressividade do termo "chacais";
  • o contexto da produção do poema;
  • a construção paralelística;
  • os recursos estético·estilísticos.

 

II – Texto expositivo

Num texto bem estruturado de cem a duzentas palavras, comente a seguinte afirmação sobre a dimensão ética de Sophia de Mello Breyner Andresen:

Nua e inteira, em serena atitude e firme convicção, Sophia perscruta, questiona, denuncia e acusa, anuncia a esperança e permanece.

 

 

Explicitação de cenários de resposta:

I – Comentário de texto

Denúncia e acusação

Poema como arma de denúncia:

  • da repressão presente nas grades (v. 4) – símbolo da ausência de liberdade;
  • do obscurantismo sugerido na «selva [] obscura» (v. 2) e na «noite» (v. 5);
  • da impureza e da injustiça traduzidas pela «luz do sol» que «se tornou impura» (v. 4);
  • do sofrimento expresso no termo «amargura» (v. 7);
  • do medo que leva os homens a renunciarem (último verso);
  • da exploração e escravidão.

 

Poema como acusação:

  • dos opressores e poderosos que encarceram (aprisionam);
  • dos tiranos que fomentam o obscurantismo e praticam a injustiça;
  • dos exploradores simbolizados pelos «chacais».

Os «chacais», como animais carnívoros que se alimentam dos detritos, surgem aqui a simbolizar os exploradores que vivem do esforço alheio.

 

 

Contexto

A situação política e social de Portugal, nos anos 50 e 60 do séc. XX, foi marcada pela repressão, perseguição e pela exploração, a par de um grande analfabetismo como forma de evitar a contestação.

O primeiro verso contribui para a denúncia e acusação num contexto preciso do tempo dividido (na expressão de Sophia) ou tempo de comportamento humano, marcado pela repressão, pela exploração, pela ameaça constante.

Sophia, como outros escritores e artistas, acredita na força da verdade contra a opressão e contra a submissão, por isso denuncia.

 

Construção paralelística

  • «Este é o tempo» – «Esta é a noite» – «Este é o tempo» são três expressões que de forma paralelística marcam a estrutura e o tema do poema. Enquanto predicativos do sujeito (enunciado pelo determinante este/esta), «o tempo» e «a noite» exprimem a denúncia que se prolonga no poema e que se apresenta atual, como sugere a forma verbal «é» no presente do indicativo.
  • «O tempo» remete para o tempo dividido, ou seja, para o tempo composto de diferentes tempos: de odiar, de destruir, de ameaçar, de violentar, de mentir, de sofrer, de escravizar... Este tempo opõe-se ao tempo absoluto, do que é eterno e do restabelecimento da unidade, da realização suprema do homem.
  • «A noite» simboliza o medo, a crueldade, o crime, a perversão, a ameaça, o ódio, a escravidão...

 

Recursos estilísticos

  • Paralelismo (versos l, 5 e 8).
  • Metáfora na expressão "selva mais obscura" ao aproximar o sistema político e social opressor de uma selva que, embora contenha em si escuridão, surge pleonasticamente "mais obscura"; e eufemismo, ao recorrer a uma expressão que, aparentemente, suaviza o sentido de medo e de terror, mas que a imagem da selva já contém.
  • As imagens-símbolo da liberdade – "o ar azul" – e da claridade ou da pureza – "a luz do sol" – dão lugar a imagens da repressão – "grades" – e da impureza ou injustiça – "impura".
  • Metáfora na referência aos "chacais" como símbolo dos exploradores.
  • Metáfora e personificação na referência à "noite" "pesada de amargura".
  • Aliteração do /t/ a traduzir o sofrimento e a dor; aliteração das sibilantes /s, z / a sugerir a continuidade da amargura; os fonemas fechados e nasais a reforçar as alusões a este tempo dividido, de ameaça e opressão.

 

II – Texto expositivo

  • A poesia de Sophia revela uma constante atenção aos problemas do homem e do mundo;
  • É uma poesia de empenhamento social e político, de compromisso com o seu tempo e de denúncia das injustiças e da opressão;
  • Recorre a alegorias do tempo dividido, associado ao comportamento humano, por oposição ao tempo absoluto, transcendente, da unidade da vida;
  • A poesia de Sophia é uma moral: busca a consciencialização; apresenta um papel formativo;
  • A busca da justiça é uma coordenada fundamental de toda a sua obra poética;
  • Procura encaminhar o homem para o encontro com o divino;
  • Alegra-se perante o esplendor do mundo; mas revolta-se "com paixão" face ao sofrimento do mundo;
  • Sophia evoca o passado e a antiguidade para sugerir transformações do futuro;
  • Procura conciliar a cultura e a educação helénicas com a ética romana e com a religião cristã;
  • A sua poesia é um verdadeiro canto do logos, a manifestação de uma razão apaixonadamente inquieta na relação com o educar e o saber.

 

Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Português A e B: acesso ao ensino superior 2000: preparação para a prova de exame nacional – 12.º ano. Porto, Porto Editora, 2000, pp. 205, 408.

 

  

   Textos de apoio

Texto de apoio 1

A obra de Sophia expõe o tempo e a esperança de um “caminho para” a vida que protesta um futuro livre, mas que não o proporciona “Este é o tempo em que os homens renunciam.”

Com base em sua perceção da ditadura Salazarista como escritora, Sophia compreende e abarca seu momento histórico em palavras metafóricas sua indignação. O discurso poético relata o cerceamento feito pelo um regime de forças, no qual a censura, a falta de informação ameaçavam o diálogo, a liberdade de ponderação. Contudo, não apenas a censura criada pela ditadura de Salazar tolhia a liberdade criativa, mas também o julgamento e o medo das consequências de um ato reprovável pela ditadura. Nesse poema, a poetisa captou a reflexão do tempo da obscuridade e das grades criadas pelos homens que renunciam a liberdade. Essa ação criadora e criativa possibilita a reflexão dos trajetos navegáveis da arte pela realidade limitadora do regime salazarista. Escrever para Sophia é provocar e enfrentar essa situação de forma libertadora. A repreensão, tal como vista em muitas outras ditaduras, não apenas em Portugal, gera questionamentos e reflexões alusivos a agressão, a ao ataque dos pensamentos a tolhida de manifestações contrárias.

 

Fernanda Rodrigues Galve, “O Encontro de marés: João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello Breynner Andresen” in XXVII Simpósio Nacional de História. Natal-RN, 2013



 

Texto de apoio 2

Grande parte dos poemas que compõem este eixo é extraída de Livro Sexto, sobretudo da secção intitulada “As grades”, é considerado por muitos críticos o livro mais político da autora: “Livro Sexto marca o ponto mais extremo de intervenção combativa imediata na obra de Sophia, enquanto globalidade de um único livro” (MAGALHÃES, J. In: GUSMÃO, 2010, p. 287), como observa Joaquim Manuel Magalhães. Apesar disso, ainda temos nesse grupo poemas de Mar Novo, Geografia e Dual.

Os poemas abordam um tempo em que a voz poética vê-se cerceada em meio à escuridão, ao ódio e à amargura, como apresenta o conhecido poema “Este é o Tempo”, publicado originalmente em Mar Novo.

É o tempo em que a voz poética encontra somente valores que contrastam com o seu ideal. O dia dá lugar à noite, e o espaço não é mais o local da ordem justa, do equilíbrio e da claridade, e sim “Da selva mais obscura”. O poema, publicado em 1958, insere-se no período pós-guerra, em plena ditadura salazarista e no início dos confrontos civis nas colônias portuguesas. Temos aqui um poema, segundo Belchior, «que se desenha nítido o tempo dividido como tempo de ódio e renúncia [...]. este tempo dividido opõe-se radicalmente ao tempo absoluto de seu desejo. Donde a procura por valores éticos como antídoto da podridão. Em contraste com um mundo liso e puro, a moeda corrente da corrupção.» (BELCHIOR, 1986, p.39)

Esse tempo, conforme analisa Carlos Ceia, é o regime político que a voz poética busca denunciar «[...] o tempo funciona como uma metáfora política [...]. O tempo político depende de um processo de codificação partilhado por todos os poetas portugueses que escreveram antes do 25 de Abril: simboliza sempre o Regime fascista, que não poderia ser nomeado diretamente.

Se este tempo está “dividido”, tal deve-se à ação opressora deste Regime» (CEIA, C., 2003, p. 71, apud MALHEIRO, H., 2008, p. 83). Assim, observamos, nesse poema e nos outros que compõem este segundo eixo, a denúncia de um governo pautado na ameaça e no cerceamento do pensamento dos indivíduos, limitados por ações opressoras e censura.

Como observa Helena Santos, os primeiros versos desse poema fazem referências a versos de Dante em relação à metáfora “selva obscura”. Porém, «enquanto que na Commedia de Dante a “selva obscura” se insere inúmeras vezes num percurso iniciático, de procura de luz e de conhecimento, irrompendo das trevas, neste poema de Sophia [“Este é o Tempo”], a mesma metáfora não pressupõe um caminho de luz, mas de trevas, de impureza e não de purificação, confirmado pelas metáforas de degenerescência do “ar azul” e da “luz do sol” e “pela noite densa de chacais” (SANTOS, H., 1982, p.174).

Os versos de Dante que iniciam a parte Inferno da Divina Comédia fazem referência a uma alegórica “selva escura”, onde Dante encontra a figura de Virgílio, o poeta latino que se oferece como guia para adentrar o Inferno e o Purgatório: “A meio caminhar de nossa vida / fui me encontrar numa selva escura: estava a reta minha via perdida”. O Inferno é descrito como um local selvagem e obscuro, mas é um caminho a se seguir em busca do Paraíso.

No poema de Sophia Andresen, porém, o tempo da selva obscura é a denúncia do seu tempo presente, não há ideia de redenção e de claridade, pois a noite é pesada e densa, repleta de chacais, uma metáfora para a ameaça e para a tensão, uma vez que esses animais da família dos lobos e dos cães, vivem à espreita atrás de suas caças. A animalização agressiva, conforme observa Helena Malheiro, tem o objetivo de “designar a violência dos tiranos que detêm o poder, e é mais do que evidente que os ‘chacais’ são as personagens sinistras da ‘selva’ política em que o país se tornou” (MALHEIRO, H., 2008,p. 83).

A angústia e o risco da morte são os ventos desse período, e a ameaça da opressão torna o dia em uma noite pesada pela amargura. Nesse tempo de selva obscura oprimida pelos chacais, os homens renunciam. Conforme analisa Malheiro, “Esta renúncia é a renúncia do homem perante o Ser, enfatizada pela repetição dos demonstrativos ‘este’, ‘esta’, que apontam mais uma vez para um presente corrupto e implacável que esmaga o indivíduo”. Oprimidos, ameaçados, manipulados, esses homens abdicam de si mesmos. Podemos pensar também, em uma perspetiva mais democrática, que os indivíduos abdicam de sua relação com sua pátria, uma vez que o governo de exceção cerceia grande parte dos mecanismos de participação política. É a desistência também da liberdade, já que o ambiente tornou-se grades, alusão à prisão. Assim, é o tempo de homens inseridos na selva da política, ameaçados pela fome de poder dos chacais.

Aliás, os chacais não são os únicos animais que aparecem em Grades como referências metafóricas de substantivos de conotação negativa. Temos o abutre, animal conhecido pelo hábito necrófago, ou seja, de alimentar-se de carne em estágio de putrefação. Por isso, por extensão de sentido, é relacionado comumente à morte e, quando o termo é usado como uma metáfora de um indivíduo, temos ligada a essa pessoa a imagem de alguém que busca a morte, que a deflagra ou que vive dela de alguma maneira. É nesse viés que se constrói o poema “O velho abutre”, publicado originalmente em Livro Sexto:

 

 

     O VELHO ABUTRE

 

     O velho abutre é sábio e alisa as suas penas

     A podridão lhe agrada e seus discursos

     Têm o dom de tornar as almas mais pequenas

 

 

A imagem da ave necrófaga é lida, geralmente, como uma referência a António de Oliveira Salazar. O indivíduo descrito pela voz poética gosta da degradação e da podridão, mas é sábio, sobretudo em relação aos seus discursos, que diminuem as almas. Pelos discursos, podem extrair a ideia da demagogia, manipulação ideológica, palavras de exaltação nacional e de manutenção da ordem, e esses elementos são importantes para a continuidade de governos autoritários.

Há nesse “abutre” também um aspeto de orgulho de suas ações, pela ideia de alisar as penas. A podridão pode ser lida como a corrupção praticada por esse indivíduo, a falsidade e a arbitrariedade de suas ordens e a ameaça contra seus opositores. Os discursos minimizam as almas, pois são monólogos de coerção ideológica que inibem a reflexão daqueles que passivamente o escutam.

Em “O Velho Abutre” e “Este é o tempo”, temos um momento em que os homens renunciam e suas almas tornam-se menores. Ambas as imagens relacionam-se com o tempo de medo, de amargura e de tensão, protagonizados pelo abutre e pelos chacais. Essa perceção do tempo atual é também denunciada em “Data”, poema extraído de Livro Sexto, de maneira bem detalhada […].

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

 

***

Texto de apoio 3

     Em nota que acompanhava a reedição conjunta de Mar Novo e do volume anterior, No Tempo Dividido, em 1985, justificava Sophia a junção dos dois livros com a circunstância de pertencerem eles a um mesmo «ciclo», de serem afinal «um mesmo livro». Há, no entanto, diferenças significativas entre os dois volumes que plenamente autorizam uma sua edição separada. Embora em ambos os volumes avulte a consciência trágica de uma quebra, de uma funda divisão na unidade que a forte presença, nos primeiros livros, dos deuses gregos de algum modo garantia, o desespero do sujeito é, em Mar Novo, cada vez mais um desespero situado. Quer isto dizer que a incomodidade da poeta tem também, na quinta coletânea dada a público, entre as suas causas a situação que se vive no país, sob uma ditadura crescentemente fechada sobre si mesma. Um poema como o que fecha a segunda parte do livro, não deixa quaisquer dúvidas a esse respeito; «Este é o tempo / Da selva mais obscura // Até o ar azul se tornou grades / E a luz do sol se tornou impura // Esta é a noite / Densa de chacais / Pesada de amargura // Este é o tempo em que os homens renunciam.» Este e outros poemas do livro, com a tão clara chamada para uma concreta situação temporal, a de uma terra privada de liberdade, tornada, toda ela, uma imensa prisão, testemunham o processo de rutura, na segunda metade dos anos 50, face ao regime salazarista de alguns sectores da intelligentsia católica, que de algum modo Sophia e Francisco Sousa Tavares, pela sua cada vez mais empenhada intervenção cívica, antecipam. O elogio que a poeta, com incisiva eloquência, faz à coragem do marido em «Porque» tornar-se-á mesmo uma espécie de bandeira para os que têm, então, como inadiável a denúncia da hipocrisia do regime e da pusilanimidade dos que o apoiam. Lembre-se que o livro vem pela primeira vez a público em 1958, ou seja, no ano em que terão lugar as eleições presidenciais em que Humberto Delgado é o candidato da oposição e em que virá a lume a famosa carta do Bispo do Porto ao ditador, a qual ajudará inegavelmente a convencer da iniquidade do regime um largo número de católicos. A poética de testemunho e empenhamento de Sophia tornar-se-á, como é sabido, mais explícita em Livro Sexto, de 1962.

Não faltam, todavia, em Mar Novo, como põem em evidência os poemas referidos e outros que poderíamos citar, nomeadamente um muito breve que prolonga, inclusive a nível sintático, «Porque» e que, desta vez, tem explicitamente como dedicatário Francisco Sousa Tavares («Porque nos outros há sempre qualquer nojo / Que me gela e me afasta / E em ti há sempre um pouco de mar largo / Que de olhos cegos atrás de ti me arrasta.»), exemplos de uma preocupação ética que progressivamente ganha uma dimensão política.

O que é igualmente o caso do díptico inspirado «nos painéis que Júlio Resende desenhou para o Monumento, que devia ser construído em Sagres», e em cuja segunda parte especialmente não seria difícil ao leitor da época identificar nos «senhores sombrios desta noite / Onde se perde morre e se desvia /A antiga linha clara e criadora / Do nosso rosto volta do para o dia» a arbitrariedade de Salazar, a quem se atribui a não concretização do projeto «Mar Novo» do arquiteto João Andresen, irmão de Sophia, que alcançara o primeiro prémio no concurso para o Monumento ao Infante D. Henrique, em Sagres, em meados dos anos 50, em coautoria com o pintor Júlio Resende e o escultor Barata Feyo. A escolha do nome do projeto para título do livro pode, assim, ser lida como uma homenagem de Sophia àqueles que, na circunstância, representavam a «linha clara e criadora / Do nosso rosto voltado para o dia» de que se fala no fecho do díptico.

Há, por outro lado, na quinta coletânea poética de Sophia, inequivocamente mais extensa que a anterior, uma progressão dramática, de alguma forma acentuada pela divisão do livro em três partes, que diz igualmente respeito à relação da poeta com Deus. No início do livro, diante da existência do mal à sua volta, a própria «obra» de Deus se lhe apresenta como uma obra cindida, dividida, e em extrema agonia, ela chega mesmo a interrogar-se se alguém não terá vencido Deus ou desviado os seus «caminhos»: «Senhor se da tua pura justiça / Nascem os monstros que em minha roda eu vejo / É porque alguém te venceu ou desviou / Em não sei que penumbra os teus caminhos // Foram talvez os anjos revoltados. / Muito tempo antes de eu ter vindo / Já se tinha a tua obra dividido // E em vão eu busco a tua face antiga / És sempre um deus que nunca tem um rosto // Por muito que eu te chame e te persiga.» Já perto do fecho do livro, porém, surge um poema que proclama a necessidade de um Deus que dê um sentido à torturada e mutilada condição humana: «És Tu que estás à transparência das cidades / Vê-se o Teu rosto para além dos bairros interditos // O mal palpável próximo insistente / Parece tornar-Te evidente. // Sobe do destino uma sede de Ti. / Não somos só isto que torce / Com as mãos cortadas aqui.» Quando se atinge o fim do volume, o conflito parece ter-se resolvido, e o rosto de Deus, revelando-se-lhe nos elementos naturais, como que desfaz a sua intranquila questionação: «Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.»

Ao mesmo tempo, e num livro, não o esqueçamos, que a própria autora via como estando intimamente ligado ao anterior, adensa-se, em Mar Novo, um sentimento trágico da vida que se manifesta num mal-estar, numa negatividade que se diz em termos como «desespero», «absurdo», «desencontro», «náusea», «nojo», todos eles pondo em evidência que a poeta não permaneceu imune a um certo ar do tempo típico dos fins dos anos 40 e dos anos 50 em Portugal e noutros países, muito marcado, como se sabe, pelas filosofias da existência. Em nenhuma outra obra da autora, poderia mesmo dizer-se, é tão pronunciada essa negatividade, tão intensamente se recorta a presença da treva. Expressões reiteradas como «em vão», «nunca mais» dão bem conta do desalento, da «desilusão» que submerge o sujeito, da dificuldade de manter viva a esperança, no meio do «vazio» e da «agonia». Por outro lado, a preposição «sem», obsessivamente recorrente, ilustra, de modo inexcedível, o quanto o mundo representado no livro é, em regra, um mundo ferido de despossessão, de privação, de perda, de falha, longe da plenitude, da ideia de unidade que, no fundo, a poesia de Sophia nunca deixou de perseguir. Melhor que nenhum outro texto, de Mar Novo ilustra, um poema como «Marinheiro sem Mar» essa perda, essa separação irremediável do «corpo da unidade», a entrega, afinal, ao «tempo dividido» e tudo o que ele possa significar. Nele se conta a história, de inequívoco cunho alegórico e de sombrias tonalidades apocalípticas, de um marinheiro que se afastou para sempre do seio aconchegado do seu mundo matricial, e a que nenhuma nostalgia, por mais pungente que seja, o poderá jamais devolver:

«[...] // Porque ele tem um navio mas sem mastros / Porque o mar secou / Porque o destino apagou / O seu nome dos astros // Porque o seu caminho foi perdido / O seu triunfo vendido / E ele tem as mãos pesadas de desastres // E é em vão que ele se ergue entre os sinais / Buscando a luz da madrugada pura / Chamando pelo vento que há nos cais // Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto / As imagens são eternas e precisas / Em vão chamará pelo vento / Que a direito corre pelas praias lisas // Ele morrerá sem mar e sem navios / Sem rumo distante e sem mastros esguios / Morrerá entre paredes cinzentas / Pedaços de braços e restos de cabeças / Boiarão na penumbra de madrugadas lentas. // [...]».

O desengano que domina o sujeito propicia a ligação de muitos dos poemas de Mar Novo a uma categoria genológica como a elegia, em alguns casos, e dentro de um livro tão tocado, direta ou indiretamente, pela sombra da morte, assumindo mesmo a feição de elegia fúnebre. Neste âmbito destaca-se um texto em que, surpreendentemente, se não tem notado um nítido eco do famoso «Menino da sua mãe» de Pessoa. Nem faltam em «O soldado morto», o poema de que estamos a falar, para além, naturalmente, da circunstância de a personagem no centro da cena ser em ambos os casos um soldado morto, a presença de termos comuns, como «céus», «cego», «brisa» e «perdido/perdidos»; «Os infinitos céus fitam seu rosto / Absoluto e cego / E a brisa agora beija a sua boca / Que nunca mais há de beijar ninguém. // Tem as duas mãos côncavas ainda / De possessão, de impulso, de promessa. / Dos seus ombros desprende-se uma espera / Que dividida na tarde se dispersa. // E a luz, as horas, as colinas / São como pranto em torno do seu rosto / Porque ele foi jogado e foi perdido / E no céu passam aves repentinas.» O sentimento elegíaco faz, por sua vez, apelo, no título de um curto poema da primeira parte do livro, ao cante jondo, o primitivo canto andaluz: «Numa noite sem lua o meu amor morreu / Homens sem nome levaram pela rua / Um corpo nu e morto que era o meu.» Lembre-se, a propósito, que Federico Garcia Lorca, tido por Sophia como uma das suas grandes referências literárias, publicou um livro com o título Poema del Cante Jondo e dedicou estudos ao cante de tão fundo enraizamento na sua Andaluzia natal. Em Lorca, Sophia era particularmente sensível ao que chamava as suas «superimagens», e em que reconhecia a força sortílega de «metáforas muito especiais», conforme declarou em entrevista a Eduardo Prado Coelho, em 1986. Muito da atmosfera que geram tais imagens e metáforas se pode encontrar no enigmático texto de Mar Novo, no qual se pressente alguma familiaridade com os temas emotivos do cante jondo.

O mais eloquente exemplo de elegia fúnebre no livro de 1958 e, no entanto, «Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal», poema que, ao mesmo tempo, se afirma como um dos mais altos momentos no exigentíssimo percurso de Sophia de Mello Breyner Andresen. Não está aqui em causa saber se corresponde à verdade ou se é do domínio da lenda a famosa exclamação atribuída ao marquês de Lombay e futuro Duque de Gandia diante do cadáver em decomposição da mulher de Carlos V, quando da sua tumulação em maio de 1539 em Granada: «Nunca mas, nunca mas servir a Señor que se me pueda morir!» (cf. o importante estudo de Vasco Graça Moura, «Retratos de Isabel», Oceanos, n.° 3, março de 1990). O que antes, agora, nos importa é encarar o poema como texto literário, independentemente do que haja ou não de verdade histórica em tudo o que terá rodeado a decisão de o marquês de Lombay, Francisco de borja (que mais tarde chegaria a ser o terceiro geral da Companhia de Jesus e que viria mesmo a ser canonizado no século XVII), de deixar o século, em resultado da contemplação do corpo desfigurado pela morte da imperatriz à qual supostamente devotaria um amor preso ainda, na primeira metade do século XVI, aos ditames do amor cortês, corno deixam transparecer termos como «servir» e «Señor». Antes disso, transcreva-se, para melhor elucidação, a passagem da Historia de la Vida y Hechos del Emperador Carlos V, de Fray Prudencio de Sandoval citada por Graça Moura no seu ensaio: «Hizo tanto efecto esta vista en el marquês, que causó en él una profunda imaginación [...] y viendo que era tal, determinó servir a otro señor y a otra Majestad que no perece».

É o Duque de Gandia que, no texto, assume a fala, tendo esta como destinatário a própria imperatriz, já morta. O monólogo da personagem é apresentado pela poeta como uma «meditação», a qual é tradicionalmente um traço indissociável do funcionamento da elegia. Trata-se, na circunstância de uma meditação específica, a meditatio mortis. Tudo se centra no efeito que a contemplação do corpo em decomposição de Isabel de Portugal tem sobre o Duque, no abalo profundo que ele sofre e que o conduz a fazer a si próprio a promessa de dar um rumo diferente à sua vida, a decidir entregar-se totalmente ao serviço de Deus, Senhor não sujeito à morte. É a consciência fulminante da sua própria finitude, espelhada na degradação do corpo de um ser que via como a figuração de uma beleza perfeita, que o leva a uma decisão tão radical. A determinação irrevogável do Duque fica bem patente na expressão temporal que se repete no início de cada uma das estrofes. A fala do personagem, por outro lado, adequa-se perfeitamente à consciência da fragilidade e da brevidade da vida humana que é a de um homem marcado pelo desengano próprio da sua época. Ao mesmo tempo, porém, insinua-se, inevitavelmente, na fala do Duque, a linguagem que á a da própria poeta que lhe dá vida, e que traz a marca de um período histórico ferido de negatividade, tão sensível em dois termos de rara violência expressiva como «nojo» e «negação», num verso já perto do fecho do poema.

Prossegue em Mar Novo o interesse, da poeta pelos temas clássicos, que, já vem do livro de estreia e se manterá, como é sabido, até ao fim do seu percurso. Não por acaso certamente, num livro de predominante atmosfera disfórica, os temas tratados, de Electra e das Parcas, estão associados à morte. O mito da irmã de Orestes, em que, aqui, nos fixamos, é, desde os gregos, um dos que, ao longo dos séculos, maior fortuna teve em termos de tratamento literário. Em tempos modernos ganhou ele especial vigor, gozando compreensivelmente da preferência da literatura dramática, dado o destaque de que já beneficiara junto dos grandes tragediógrafos helénicos.

A tradição em que a «Electra» de Sophia se insere não é diretamente a dos que, na modernidade, levaram o tema da filha de Ãgamémnon e Clitmnestra aos palcos, um Hofmannsthal, um Eugene O'Neill, um Giraudoux, um Sartre, um Gerhart Hauptmann, uma Yourcenar, mas a plasticidade cénica do seu poema não deixa de pôr em evidência as suas fortes virtualidades dramáticas, ademais vindo de uma autora que, como se sabe, se interessou pela escrita teatral, quer a nível criativo propriamente dito, quer no domínio da recriação, literária que é a tradução. O que mais impressiona no texto de Sophia é a sua violência com que transmite o pathos trágico através da concretude de um verbo como escorrer e de signos como o «sangue» e as «lágrimas», e nos projeta em imagens de pesadelo e horror como a das «duas mãos torcidas» que aparecem «numa janela». É nessas duas mãos, em que reconhecemos uma sinédoque do inabalável desejo de vingança da Electra matricida que se centra a nossa atenção e que faz dela uma figura que suscita em nós sentimentos contraditórios de repulsa e compreensão. Sophia, por outro lado, não se furta, no tratamento do tema, à linguagem que é a do seu tempo, e alguns dos termos de que se socorre, como «traição», «náusea», «absurdo», fazem parte do léxico preferencial de algumas correntes existencialistas, gozando então de grande voga entre nós.

A descoberta de Rimbaud por Sophia ter-se-á dado na sua juventude, como podemos deduzir de uma carta dirigida à mãe em maio de 1961, informando-a da morte de José Ribeira, seu amigo dos tempos dos verões passados na praia da Granja. Este era, juntamente com António Cálem, um dos amigos a quem lia, conforme diz, «tudo o que escrevia», antes de ter publicado versos (vide catálogo da exposição na Biblioteca Nacional, Sophia de Mello Breyner Andresen — uma Vida de Poesia, org. de Paula Morão e Teresa Amado, 2011). Terá ele, muito provavelmente, lido o poema «O Vidente», datado de novembro de 1941, e que fazia parte dos chamados «Cadernos Rasgados» que Cálem colou. O referido texto era, no original, dedicado a Ruy Cinatti (cf. ibid), e teve a sua primeira publicação nas páginas da revista Aventura (1942-1944), fundada por este poeta, vindo a ser incluído no livro de estreia, de 1944. Cinatti, que era um pouco mais velho que Sophia, conheceu-o ainda adolescente, como recordou numa palestra proferida em 1964 na Universidade de Perugia. Fazia ela parte de um grupo de gente muito nova, para quem Cinatti era «o poeta mítico», uma espécie de «guru», alguém que lhes levava «perturbação» e «assombro». É com emoção que Sophia evoca as leituras que Cinatti fazia «ao sol e à brisa» de poesias de Pessoa e Pound. Não sabemos é se terá sido este seu amigo, que via também como «o heraldo de toda a modernidade», a iniciá-la em Rimbaud, ele que, afinal, para o título do seu primeiro livro, Nós não somos deste mundo, de 1941, viria precisamente a glosar palavras do autor de Une Saison en Enfer, e que, a seu convite, em dezembro desse mesmo ano, deu a Jorge de Sena a oportunidade de fazer uma conferência, para a Juventude Universitária Católica de Lisboa, sobre «Rimbaud ou o Dogma da Trindade Poética», que seria publicada, juntamente com «Ode a Arthur Rimbaud», de Carlos Queiroz, no 2.° número de Aventura, em agosto de 1942.

O título do poema vindo a público em Poesia deixa claro que eram do conhecimento de Sophia as chamadas «Cartas do Vidente», peça indispensável de toda a mitologia rimbaldiana.

O texto é percorrido pelo entusiasmo que à poeta trazia a leitura de uma obra que lhe anunciava uma «pátria nunca vista», e se lhe apresentava como «o sinal / De que as coisas sonhadas existiam». O visionarismo de Rimbaud, as «imagens de oiro que ele vira» vinham bem ao encontro de uma poesia como a da primeira Sophia especialmente atenta ao que era a força transfiguradora «Interior à alma». Mas já então, como o testemunha o final do poema, numa alusão à mudança dramática que se operou no destino de Rimbaud, para ela constituía motivo de fim do questionamento e de angustiada inquietação a quebra que se dera no poeta; «E ei-lo caído à beira do caminho, / Ele - oque partira com mais força, / Ele - oque partira pra mais longe. // Porque o ergueste assim como um sinal? / Pusemos tantos sonhos em seu nome! / Como iremos além da encruzilhada / Onde os seus olhos de astro se quebraram?»

O retrato de Rimbaud que emerge, por sua vez, do poema «Semi-Rimbaud» de Mar Novo, remete, por um lado, para o que no autor de Illuminations haverá de poeta maldito, apostado no «mal», que «Constrói [...] com gestos rigorosos» e, por outro lado, de instaurador de uma subversão radical que «sonha a inversão total das coisas», ou que, para utilizarmos as palavras do próprio Rimbaud na carta de 15 maio de 1871 a Paul Démeny, defende «um longo, imenso e regulado desregramento de todos os sentidos». Mais uma vez a leitura desta carta se revela de grande utilidade para chegarmos a uma melhor compreensão da visão que Sophia tem do poeta francês, e do entendimento que ele próprio faz do poeta enquanto vidente. Lembremos um passo famoso da carta. Aí diz Rimbaud, com uma radicalidade próxima da que caracteriza os textos manifestários, que o anima «uma força sobre-humana, que o faz tornar-se o maior de todos os doentes, o grande criminoso, o grande maldito — e o supremo sábio!

[…]

Sophia disse, numa alocação de 1975, que «a arte da nossa época é uma arte fragmentária». Tal fragmentariedade ter-se-ia tornado mais notória a partir de Cristo Cigano, de 1961, que a própria poeta via como um ponto de viragem na sua obra. A verdade, porém, é que podem encontrar-se já em Mar Novo sinais de uma mais transgressiva modernidade, que contraria a imagem de expressão clássica que é geralmente associada à Sophia dos primeiros livros. Um dos mais conhecidos poemas do livro de 1958, «Porque», pela sucessão de orações causais e pela ausência de oração principal, manifesta já uma tendência para a agramaticalidade e para a adoção de procedimentos hostis à frase que se tornarão mais correntes na autora a partir dos anos 60. Assim como a utilização da técnica da montagem, tão frequente mais tarde, é, de alguma forma, antecipada no poema «Sequência», que se apresenta como uma verdadeira sequência de imagens, dispostas segundo o princípio de uma montagem aproximável da própria montagem cinematográfica, ao mesmo tempo que não deixa de evocar os inventários tão do agrado dos surrealistas; «A sua face transpôs os temporais / O vento azul rolou entre os seus braços // A penumbra subiu e rodeou / O seu rosto aceso as suas mãos iguais // Dos seus ombros nasceram as estátuas / E o gesto dos seus dedos / Encantou os navios // Baloiça um enforcado na baía / Mãos sem corpo levam castiçais // Uma cortina enrola-se na brisa / Uma porta bate e de repente / Um corredor fica vazio.»

 

Fernando J.B. Martinho, Prefácio a Mar Novo. Lisboa, Assírio & Alvim, 2013

 

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Este é o tempo, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-06. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/este-e-o-tempo-sophia-andresen.html


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