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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta, Sophia Andresen

https://bibliografia.bnportugal.gov.pt/bnp/bnp.exe/registo?1890422

 

QUANDO

 

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta

Continuará o jardim, o céu e o mar,

E como hoje igualmente hão-de bailar

As quatro estações à minha porta,

 

Outros em abril passarão no pomar

Em que eu tantas vezes passei,

Haverá longos poentes sobre o mar,

Outros amarão as coisas que eu amei.

 

Será o mesmo brilho a mesma festa,

Será o mesmo jardim à minha porta.

E os cabelos doirados da floresta,

Como se eu não estivesse morta.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1974, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gastão Cruz.

 





 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Explicite as ligações de sentido entre o título e o texto.

2. Indique três traços caracterizadores da natureza representada no poema.

3. Explique a relação que se estabelece, na segunda estrofe, entre o «eu» e os «Outros».

4. Refira dois efeitos de sentido produzidos pela anáfora presente nos versos 9 e 10.

5. Comente a importância do verso «Como se eu não estivesse morta» no contexto da última estrofe e no contexto global do poema.

 



 

Explicitação de cenários de resposta

1. O título «Quando» cria a expectativa de um poema centrado num tempo determinado. A repetição de «Quando», no início do texto, funciona como um eco do título e vem precisar que esta marca temporal remete para um tempo futuro  – o depois da morte do «eu» –, tempo reiteradamente convocado pelas sucessivas formas verbais que exprimem o futuro: «apodrecer», «for», «Continuará», «hão-de bailar», «passarão», «Haverá», «amarão», «Será», «Será».

 

2. A natureza apresenta neste poema os seguintes traços caracterizadores:

- tem como elementos constitutivos o «jardim», o «céu», o «mar», o «pomar», os «poentes sobre o mar», a «floresta»;

- é uma natureza múltipla e diversa - domesticada («jardim», «pomar») e bravia («floresta»);

- integra os quatro elementos primordiais, ou seja, a terra («jardim», «pomar», «floresta»), o ar («céu»), a água («mar»), o fogo («poentes»);

- identifica-se com a «festa» («hão-de bailar / As quatro estações», «festa»), partilhando das suas características (como a dança, o «brilho», a sensualidade);

- tem características antropomórficas (como as divindades gregas ou clássicas: «hão-de bailar / As quatro estações», «cabelos doirados da floresta»);

- é o cenário paradisíaco e harmonioso que envolve a casa do «eu» («à minha porta»);

- é uma natureza sem morte, de tempo cíclico eternamente renovado;

- ...

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de três traços.

 

3. Entre o «eu» e os «Outros» estabelece-se uma relação de substituição e de continuidade: os actos do «eu» – do fruir a natureza e do amor pelas «coisas» – passarão, depois da morte do sujeito poético, a ser assumidos por «Outros». A consciência desse facto significa para o «eu» a certeza de que o mundo que ama lhe sobreviverá, que a natureza e a vida continuarão depois da sua morte individual, havendo simultaneamente a antecipação do sentimento de perda expresso pelas formas do passado («passei», «amei»).

 

4. A anáfora presente nos versos 9 e 10 (reforçada pela expressão «a mesma festa») produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- evidencia a forte convicção do sujeito poético relativamente às características do futuro convocado;

- enfatiza a identidade da natureza, «hoje» e depois da morte do «eu»;

- realça a continuidade e a permanência da vida como uma celebração;

- ...

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de dois efeitos de sentido.

 

5. O verso «Como se eu não estivesse morta» acentua, no contexto da última estrofe, a insignificância do destino individual, em confronto com a continuidade e a permanência da vida cósmica, que ignora o desaparecimento dos indivíduos. No contexto global do poema, instaura uma estrutura circular, ao retomar, do primeiro verso, o tema (a morte do «eu») e a última palavra («morta»).

    Desta similitude entre o primeiro e o último versos resultam, por um lado, mais evidentes as diferenças: a morte, cruamente representada no primeiro verso («Quando o meu corpo apodrecer»), é como que anulada («Como se»), traduzindo o desejo do «eu» de partilhar a permanência do Cosmos. Por outro lado, ao voltar a convocar a morte do «eu», o sujeito poético afirma a consciência da sua mortalidade, inscrita na vida do Universo em renovo contínuo.

In: Português B: questões de exame do 12.º ano: 1998-2003 (volume 1). Lisboa, GAVE, 2004


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Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-24. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/quando-o-meu-corpo-apodrecer-e-eu-for.html



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