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sábado, 12 de novembro de 2022

As palavras, Eugénio de Andrade

 


 

 

 

 

 

 

 

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AS PALAVRAS

 

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

 

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

 

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

 

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

 

Eugénio de Andrade, Coração do dia, 1958 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 
"As palavras", de Eugénio de Andrade. Produções Fictícias, 2005


I - Linhas de leitura do poema “As palavras”, de Eugénio de Andrade:

O sujeito poético propõe, a partir de um jogo metafórico e metalinguístico, uma reflexão sobre o valor polissémico das palavras. Este poema reflete, portanto, sobre o seu próprio processo de construção, sobre as possibilidades criadoras da palavra.

 

1.ª estrofe

«São como um cristal, / as palavras.» – nesta frase existe um hipérbato e a razão dessa inversão está na ênfase posta no primeiro membro da comparação, que tem o valor de um verso; nela assenta a expectativa criada pelo primeiro verso.

Quatro imagens visuais organizadas numa combinação antitética sugerem a primeira tentativa definitória das palavras:

um cristal

 

- luz (brilho das palavras = sentidos)

- reflexo (da realidade)

- qualidade (valor das palavras)

- transparência (as palavras devem transmitir a verdade, pureza interior, inocência)

- múltiplas faces (os vários sentidos das palavras, que podem ser abordadas de vários ângulos)

 

um punhal

 

- agressividade

- crueldade

- morte

- sofrimento

um incêndio

 

- destruição

- violência impetuosa

- purificação

orvalho

 

- suavidade, delicadeza sensorial

- esperança

- acalmia

 

O sentido da oposição positividade vs. negatividade tem a ver com as próprias contradições que as palavras contêm. Quer dizer, as palavras são ambíguas, assumem valores diversificados, consoante a intencionalidade dos falantes.

 

2.ª estrofe

«Secretas vêm, cheias de memória.» – as palavras são condensadoras de um saber antigo: atravessam os tempos, recebem novos significados, evoluem, carregam os segredos da história dos homens e acompanham os seres falantes como instrumento indispensável de comunicação.

 

«Inseguras navegam: / barcos ou beijos, / as águas estremecem» – Que relação se pode estabelecer entre palavras e barcos e palavras e beijos?

entre palavras e barcos pode-se estabelecer estabelece-se a relação de viagem (insegurança, quer das palavras, quer dos barcos; as palavras agitam as pessoas; os barcos as águas);

entre palavras e beijos pode-se estabelecer a relação de amor (ninguém fica indiferente às palavras nem as pessoas aos beijos).

 

A 2ª estrofe assenta em duas imagens («barcos» e «beijos»), numa associação metonímica (elementos interatuantes) com «águas». A intimidade do passado («secretas», «cheias de memória»), ao ser revelada («vêm», «navegam»), introduz insegurança («Inseguras»), medo («as águas estremecem»). A oposição, tecida na 1ª estrofe entre inocência e crueldade, é agora ampliada através de efeitos antagónicos: o percurso positivo do passado («secretas», «cheias de memória») versus a insegurança do presente e do futuro («Inseguras navegam», «as águas estremecem»).

 

3.ª estrofe

Os versos 11, 12 e 13 são formados apenas por adjetivos dando destaque às qualidades. Na sequência de «Inseguras navegam», o poeta caracteriza-as como:

- desamparadas = ao alcance de todos,

- inocentes = de per si não contêm qualquer mal, este advém do uso e do abuso,

- leves = sem a carga conotativa que alcançam no texto.

 

Assim, caracterizadas, em gradação decrescente, com uma tripla adjetivação («Desamparadas, inocentes, / leves»), as palavras surgem, na 3ª estrofe, novamente marcadas pela ambiguidade, através do paradoxo simbólico diurno/noturno: «Tecidas são de luz / e são a noite». Note-se que as palavras – e consequentemente o poema – são dadas como «tecidas», formadas pelo imbricar da teia e trama, cruzamento produtivo de elementos de origem diversa, originando a multiplicidade, a riqueza material. As palavras alcançam sentido quando colocadas num texto (Texto, do lat. textu-, «tecido», part. pass. de texâre, «tecer; entrelaçar»), que é um tecido, uma teia, onde se cruzam os vários sentidos.

 

Luz no texto, noite na ausência do texto.

 

Os versos 15 e 16 reforçam a antítese temporal presente / passado («lembram ainda»), já anunciada na 2ª estrofe. A palidez, associada à imagem visual da «noite», opõe-se à evocação simbólica da felicidade antiga: «E mesmo pálidas / verdes paraísos lembram ainda». Podendo ter perdido algum dos seus sentidos, trazem todavia memória e por isso evocam um passado criador.

 

4.ª estrofe

A dupla interrogação retórica da última estrofe constitui uma forte interpelação ao destinatário do poema: «Quem as escuta? Quem / as recolhe?» São os leitores que vão abrir as conchas, que são as palavras (cofres cheios de sentidos). A interrogação apela para a releitura das palavras.

 

Mas não satisfeito com a recorrente caracterização das palavras, ao longo das estrofes anteriores, o sujeito sublinha, numa constância de sentido, a sua ambiguidade ética e pragmática: «assim, /cruéis, desfeitas, / nas suas conchas puras?»

 

Tal como a vida humana, as palavras são boas e más, alegres e tristes, belas e feias: estimulam e desmotivam, são portadoras de amor e ódio, de paz e guerra, de felicidade e infelicidade.

 

(Bibliografia: Aula Viva Port. B 12º, 1999, p. 448; Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 125-126, Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 89)

 

II – Questionário sobre o poema “As palavras”, de Eugénio de Andrade:

Disponível aqui.

 



 

III - Proposta de escrita de um texto de opinião:

 

«Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca.»

Alexandre O’Neill

 

«São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.»

Eugénio de Andrade

 

Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas e cinquenta palavras, defenda uma perspetiva pessoal sobre o poder das palavras nas relações humanas.

No seu texto:

– explicite, de forma clara e pertinente, o seu ponto de vista, fundamentando-o em dois argumentos, cada um deles ilustrado com um exemplo significativo;

– utilize um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito).

 

(Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE, 2018, 1.ª Fase)

 

 

INTERTEXTUALIDADE

 

AS PALAVRAS, por José Saramago

 

«A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.» José Saramago publicou esta crónica dos seus tempos de jornalista no vespertino “A Capital”, em livro lançado, em 1971, sob a chancela da Editorial Arcádia.

 

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

Fonte: Crónica publicada no livro Deste Mundo e do Outro. Lisboa, Editorial Caminho, 4.ª edição, 1997. Disponível em Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, <https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/as-palavras/746> [consultado em 08-06-2021]

*** 

 

A RAPARIGA QUE ROUBAVA LIVROS, Markus Zusak


ERA UMA VEZ um estranho homem baixo. Ele decidiu três importantes pormenores a respeito da sua vida:

1. Faria a risca do cabelo do lado contrário ao de toda a gente.

2. Deixaria crescer um pequeno bigode estranho.

3. Um dia governaria o mundo.

O jovem vagueou durante algum tempo, a pensar, a planear, e a calcular exatamente como poderia tornar o mundo seu. Depois, um dia, sem mais nem menos, ocorreu-lhe: o plano perfeito. Vira uma mãe a passear com o filho. A dada altura, ela repreendera o garoto até que, finalmente, ele começou a chorar. Daí a alguns minutos, ela falou-lhe docemente, e então ele acalmou e até sorriu.

O jovem correu para a mulher e abraçou-a. – Palavras! – exclamou ele com uma careta sorridente.

– O quê? Mas não obteve resposta. Ele já desaparecera.

Sim, o Führer decidiu que governaria o mundo com palavras.

Plantou-as dia e noite, e tratou-as cuidadosamente.

Viu-os crescer, até que por fim se tinham erguido por toda a Alemanha grandes florestas de palavras… Era uma nação de pensamentos cultivados.

As pessoas que trepavam às árvores chamavam-se sacudidores de palavras.

OS MELHORES sacudidores de palavras eram os que compreendiam o verdadeiro poder das palavras.

Eram esses que conseguiam trepar mais alto. Um desses sacudidores de palavras era uma rapariga pequena e franzina. Era conhecida como o melhor sacudidor de palavras da sua região porque sabia como uma pessoa pode ficar impotente SEM palavras. Um dia, contudo, conheceu um homem que era desprezado pela pátria dela, embora tivesse nascido lá. Tornaram-se bons amigos, e quando o homem adoeceu, a sacudidora de palavras permitiu que uma única lágrima caísse na cara dele. A lágrima era feita de amizade – uma simples palavra – e secou e transformou-se numa semente, e da próxima vez que a rapariga esteve na floresta plantou essa semente no meio das outras árvores. Regava-a todos os dias.

A árvore crescia todos os dias, mais depressa do que tudo o resto, até se tornar na árvore mais alta da floresta. Toda a gente foi vê-la. Todos sussurravam a respeito dela, e esperavam… pelo Führer.

Furioso, ele ordenou imediatamente o abate da árvore. Foi então que a sacudidora de palavras abriu caminho por entre a multidão. Tombou de joelhos.

– Por favor – exclamou ela –, não podem cortá-la.


"O caderno de desenho escondido" in A rapariga que roubava livrosMarkus Zusak.  Lisboa: Presença, 2018 (texto com supressões) 

 

     Proposta de comentário :

Comenta os últimos dois parágrafos do excerto, seguindo os seguintes tópicos de aplicação, organizados segundo o nível de profundidade de leitura:

Nível 1 - Síntese objetiva do conteúdo dos últimos dois parágrafos do texto.

Nível 2 - Interpretação do conteúdo.

Nível 3 - Relação do conteúdo com o contexto histórico.

Nível 4 - Opinião acerca do conteúdo.

 

Sugestão de resposta:

No final do texto, a sacudidora de palavras tenta impedir que o Führer faça cair a árvore mais alta da floresta, que nasceu da amizade entre ela e um rapaz.

Esta atitude de resistência por parte da rapariga contra a opressão do Führer reforça a importância das palavras, pois a árvore das palavras simboliza a liberdade.

Historicamente, a atitude da menina representa, durante a Segunda Guerra Mundial, a oposição ao regime nazi.

Concluo, assim, que esta história pretende transmitir uma lição de vida para que atualmente tenhamos a coragem de lutar pela liberdade, resistindo aos regimes totalitários e antidemocráticos.


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“As palavras, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-12. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-palavras-eugenio-de-andrade.html



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