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domingo, 13 de novembro de 2022

Metamorfoses da palavra, Eugénio de Andrade


 

METAMORFOSES DA PALAVRA

 

A palavra nasceu:

nos lábios cintila.

 

Carícia ou aroma,

mal pousa nos dedos.

 

De ramo em ramo voa,

na luz se derrama.

 

A morte não existe:

tudo é canto ou chama.

 

Eugénio de Andrade, Até amanhã, 1956 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 

Linhas de leitura do poema “Metamorfoses da palavra”, de Eugénio de Andrade

O poeta, em quatro dísticos alternadamente hexassílabos e pentassílabos, canta o nascimento cintilante da palavra como um acontecimento primordial, genesíaco (1º dístico).

O seu carácter delicado e sensível está bem patente no 2.º dístico, que aparenta com a sinestesia metafórica do tato («Carícia», «mal poisa os dedos») ou do olfato («aroma»).

E enquanto o 3.º dístico assinala a sua marca dinâmica, transformacional, a partir das metáforas do pássaro que «De ramo em ramo voa» e do líquido que «na luz de derrama», o último contorna o grande obstáculo da morte, cuja existência eufemisticamente nega, em face da sedução poética do canto e da chama.

Poeta da esperança e da metamorfose construtiva, Eugénio de Andrade reanima a nossa coragem de viver, na essencialidade e na pureza do Belo.

 

António Moniz, Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Ed. Presença, 1997, pp. 131

 

*** 

Texto de apoio

No quadro da poética eugeniana, a “chama” é essencialmente criadora, embora não deixe também de recuperar a vasta memória das contradições cósmicas do “fogo”. Como temos visto desde o primeiro livro de Poemas, a “luz”, máxima transubstanciação do fogo, aproxima-se do poder genesíaco da palavra. Figura o excesso de realidade e é metáfora da transformação de toda expressão poética. Em Até amanhã, há uma verdadeira cosmogonia da luz: desde seu elemento mais primitivo até a energia transubstanciada nas diversas manifestações de claridade. Em todas as suas etapas, a luz participa no trabalho de abertura da linguagem. Em diversos momentos, como no sexto e no décimo terceiro poemas do livro, que transcrevemos abaixo, compõe-se uma verdadeira “poética do fogo”.

Breve, fugidia, a palavra eugeniana nasce do corpo, dos “lábios”, dos “dedos”, para esvaecer-se em “fogo”, “chama” ou “luz que se derrama”, traçando novo movimento de ascese, a recuperar, de certa maneira, a vivência do absoluto – ainda que revertida para uma perspetiva imanentista. Assim, desde sua primeira manifestação, a palavra é luminosa e se expande gradualmente, envolvendo os sentidos, como o tato (“carícia”), o paladar (“lábios”), o olfato (“aroma”) e a visão (“cintilar”), em comunhão com os elementos. No cume, o “canto” final da palavra ao infinito é descrito em termos de “chama”: fusão metafísica do instante ampliado, linguagem absoluta, ascensão do ser: “Parece que um tempo cósmico vem aqui ampliar o tempo subalterno, esse tempo que encadeia e não produz. O poema eleva-se a um nível de acontecimento do universo para conhecer o instante de um clarão” (BACHELARD, 1990, p. 57).

 

Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012

 

 

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“Metamorfoses da palavra, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-13. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/metamorfoses-da-palavra-eugenio-de.html


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