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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

As palavras interditas, Eugénio de Andrade



AS PALAVRAS INTERDITAS

 

Os navios existem, e existe o teu rosto

encostado ao rosto dos navios.

Sem nenhum destino flutuam nas cidades,

partem no vento, regressam nos rios.

 

Na areia branca, onde o tempo começa,

uma criança passa de costas para o mar.

Anoitece. Não há dúvida, anoitece.

É preciso partir, é preciso ficar.

 

Os hospitais cobrem-se de cinza.

Ondas de sombra quebram nas esquinas.

Amo-te… E entram pela janela

as primeiras luzes das colinas.

 

As palavras que te envio são interditas

até, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconhecia

o teu nome nas suas curvas claras.

 

Dói-me esta água, este ar que se respira,

dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos noturnas onde aperto

os meus dias quebrados na cintura.

 

E a noite cresce apaixonadamente.

Nas suas margens nuas, desoladas,

cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.

 

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas, 1951 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 



 

Para responder a cada item, selecione a opção correta, de acordo com o sentido do texto.

1. A 1.ª estrofe do texto poético traduz:

a) o contraste entre o que é perene e efémero;

b) a existência de uma linha regular de navegação;

c) a constância das imagens/recordações;

d) a presença fugaz do rosto do objeto amado.

2. “É preciso partir, é preciso ficar.” (v. 8) significa:

a) a cisão do sujeito poético, preso entre a necessidade de se evadir da situação em que se encontra e a sua impotência para o fazer;

b) uma luta interior da voz lírica, que necessita de embarcar num dos navios;

c) o medo do “eu” lírico face à escuridão;

d) a tomada de uma decisão.

3. As imagens luminosas:

a) apresentam-se fragmentadas ao longo do poema, encobertas pela noite que cresce;

b) traduzem-se num sentimento de fragmentação do passado;

c) convocam palavras interditas;

d) emergem quando o sujeito lírico recorda o amor que experimenta pelo amado.

4. Os versos “Dói-me esta água, este ar que se respira,/ dói-me esta solidão de pedra escura,/ estas mãos noturnas (…)” (vv. 17-19) constituem-se como uma:

a) comparação;

b) antítese;

c) enumeração;

d) eufemismo.

 

Chave de correção: 1.d); 2.a); 3.a); 4.c).

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa - Ensino Secundário. 1.ª Fase - 2014-03-18. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 


Esquema interpretativo do poema “As palavras interditas”, de Eugénio de Andrade

 


 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e535261/portugues-12-ano, inicia ao minuto 21’20’’

 

 

Texto de apoio 1

O título do poema é significativo, e não isento de alguma ledice fónica: «Palavras Interditas», «Palavras Inter-Ditas» (proferidas entre duas pessoas). Porquê «interditas»? Diversas reflexões hipotéticas se colocarão ao leitor: a) por serem censuradas, proibidas por alguma instituição? b) porque o eu / emissor não as consegue exprimir, transmitir?; c) O tu / recetor / pessoa amada não recebe a mensagem, ou não a aceita, ou não responde?; d) a mensagem é factualmente emitida, porém, o recetor interpreta-a de forma distorcida?

A impossibilidade de comunicação é, em qualquer caso, o tema do texto. O cenário citadino, infere-se, será o de uma Babilónia de tão diferentes discursos e díspares sensibilidades que a troca entre os habitantes não sucede. Tal assunto será retomado, dois livros depois, na obra Coração do Dia, na primeira estrofe do poema «Um Rio Te Espera».

Uma leitura próxima de «As Palavras Interditas» exclui umas e concretiza outras das pistas enunciadas. Elabora-se, no texto, um esquema comunicativo. Existe um emissor («as palavras que te envio»), uma mensagem, que poderá ser a da terceira estrofe («Amo-te»), um recetor ou ente amado («meu amor»).

A interdição das palavras é resultante, como nota o emissor, da negação da comunicabilidade: «se alguma |palavra| regressasse, nem já reconhecia / o teu nome nas suas curvas claras». A trincheira é, portanto, da responsabilidade do «tu», do outro. Porquê? Três hipóteses: a) o recetor recusa a prova de afeto. Neste caso, o conflito entre o poeta e a pessoa amada poderá ser indício, microcosmos, da situação de guerra que é evocada no poema; b) o recetor não chega a receber a mensagem, talvez por estar ausente na guerra, ou dela ter sido vítima; c) a guerra transtornou tanto o recetor que, sendo já uma pessoa diferente é indiferente, passo o trocadilho, à mensagem do eu poético.

O discurso do conflito é refletido em vários momentos do poema. Enfatiza-se a anti-naturalidade da guerra: a «cinza» dos bombardeamentos humanos opõe-se à «areia branca» natural. Também na segunda quadra se diz: «uma criança passa de costas voltadas para o mar» – uma imagem a mostrar que a guerra é um facto político-social, postura de contradição com a fusão homem / natureza. Aliás, os elementos naturais pré-socráticos estão representados no texto: água («rios», «mar», «água»), ar («vento», «ar»), terra («areia», «colinas», «pedra escura», «margens»). Só o fogo é humano, resultado da máquina bélica («luzes das colinas» – labaredas das cidades flageladas). Mais explícitas são as referências aos soldados deslocadas para a batalha («é preciso partir») ou à angústia dos que permanecem ou caem mortos em terra estranha («é preciso ficar»), dos que regressam feridos («hospitais»), dos bombardeamentos («cobrem-se de cinza»), a devastação («dias quebrados» ou «margens nuas»).

Ainda neste âmbito, é relevante reparar no cenário do poema. Tons escuros cobrem o texto: «cinza», «pedra escura», «noite». O dia cai, ao longo dos versos: «anoitece», «ondas de sombra», «primeiras luzes das colinas», «mãos noturnas», «a noite escura». Tudo a culminar na ágorafobia final, versos belíssimos.

Porém, repare-se na ambivalência poética eugeniana. A liberdade de opção do ser humano – a recordar a Manuel Alegre «Com estas mãos se faz a paz e se faz a guerra» – a árdua escolha ou não escolha dos existencialistas. A guerra morta («Thanatos») ou a paixão («Eros») estão presentes em «As Palavras Interditas». Com efeito, a «pedra escura» tanto pode ser uma lápide tumular, como o genesíaco menir, símbolo megalítico de fertilidade. Ainda nesta linha, o «halo das searas» tanto representará o clarão das explosões do bombardeamento, como se poderá relacionar com crenças pagãs que ligam o trigo à fecundidade. O trigo ou o cabelo loiro eram tidos como resultantes da intervenção de uma cabeça sagrada do deus Sol (Apolo, Adonis, Orfeu, Tammuz), da deusa lua (Ceres) ou da deusa terra (Cardea, Mai, Maya, Mari ou Maria). Por fim, acresce dizer que a própria noite tem, na tradição poética, ínfimo campo de relacionamento: morte, amor: «a noite cresce, apaixonadamente». E é nas suas margens que nos encontramos. Numa riba, o emissor, o eu; noutra, o recetor, o outro, o inferno sartriano. Num lado, o bem; noutro, o mal. Entre ambos, o abismo da escolha, a separação, as pontes queimadas, a indecisão do poeta estadunidense Auden, ao terminar o seu poema «ou nos amamos ou morremos» – ou será «amamo-nos e morremos»?

António Gedeão e Eugénio de Andrade: Viagens pela Urbe Babilónica”, João de Mancelos. Máthesis n.º 5, jan. 1996, pp. 463-7, doi:10.34632/mathesis.1996.3774

 


Texto de apoio 2

A confirmação de que “os navios existem” surge como um contraponto ao sentimento de fragmentação do presente: o “navio” parece ser a única coisa que “existe” e que apresenta inteireza em meio às ruínas de uma cidade que lembra a “terra desolada” do cenário do pós-guerra, em que “hospitais” se cobrem de “cinzas” e “ondas de sombra”. O ar é pesado, a “noite cresce” e encobre certas imagens luminosas que, em sequências fragmentadas, se apresentam ao longo dos versos: “areia branca”, “primeiras luzes das colinas”, “halo das searas”, “curvas claras”. Esses estilhaços de “luz”, portanto, aos poucos se extinguem nas “mãos noturnas” e na “solidão de pedra escura”: “Anoitece. Não há dúvida, anoitece”.

O “navio” é um signo que possui a inteireza de um símbolo ou de uma metáfora14, em meio a outros elementos espedaçados da paisagem, que funcionam como espécies de “alegorias”15, tal como definida por Rosa Maria Martelo. Desse modo, apresentando-se como um veículo de fuga, de exílio, de saída de um país tornado inabitável, o “navio” evoca um espaço de maior inteireza, em que talvez seja possível experimentar uma realidade alternativa à desolação do entorno16. No entanto, está “à deriva”, “sem destino”, levando encostado ao seu o “rosto do amado”, flutuando e “regressando” nos rios, e apresentando-se, portanto, como veículo de separação dos amantes. Desse modo, associado a uma vida clandestina, de fuga, exílio ou mesmo saída para a guerra, o “navio” se distancia da visão idílica geralmente evocada, ou da imagem gloriosa da nação. Nesse vaivém indeterminado do “navio”, entremeio entre o “claro” e o “escuro” frequentemente contrastados no poema17, se posiciona a voz lírica: “É preciso partir, é preciso ficar”.

Uma poesia que se caracteriza pela autovigilância e capacidade de transformação, que pretende afirmar-se contra a ausência, resistir à opressão humana propõe também aqui a procura pelo “verdadeiro rosto humano”. Porém, como demonstra esse poema, divide-se entre a vontade do “sim” e o sentimento de negação que habita os “dias quebrados na cintura” e o “horizonte de cidades bombardeadas”. Ao pronunciar “Amo-te”, “as primeiras luzes da colina” entram pela janela, mas vagueiam sem destino, sem conseguir se consubstanciar em palavra poética, e o “Nome” do amado perde-se nas “curvas claras”.

A distância de toda origem é anunciada na imagem: “Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar”18, cujos constituintes, que formariam uma unidade-arquetípica, se desagregam, mimetizando a profunda dissolução do mundo e do sujeito. O signo “criança” também tem a espessura simbólica de um “navio”, porém, do mesmo modo que este, flutua sem destino, caminha “de costas” para outros referentes, retrocedendo o processo de encontro e realização da imagem poética. O mesmo signo também aparece em outros poemas, como “criança cega / aos tropeções dentro de ti”, “criança adormecida” e “sem nenhuma criança acordada”19.

Por conseguinte, o “navio” a flutuar pela cidade, em alguns poemas, “barco perto, distante, perdido” (1966, p. 102), associa-se, por um lado, à errância urbana e à experiência do não-lugar em As palavras interditas, mas também sugere, por outro, um espaço de resistência, em que é possível navegar, ainda que sem destino. Ora comparado ao corpo do amado que parte, como em “Reconheço o teu corpo [...]/ flutuando sem limites na espessura/ da noite” (1966, p. 123), ora equiparado à palavra poética ou a um “pássaro”, como em “Um pássaro e um navio são a mesma coisa / quando te procuro de rosto cravado na luz” (1966, p. 114), o “navio” faz-se presente em muitos poemas do livro que se demoram sobre o movimento de partida e separação, como sugerem os títulos de certas composições: “Viagem”, “Mar, mar e mar”, “Adeus”; ou os versos “amor de uma viagem noturna”, “A minha morte é este vaguear contigo”, “onda e outra onda e outra / desfaz o seu corpo azul contra o meu corpo”.20 Em poemas como “Adeus”, “Litania” ou “Viagem”, a lenta movimentação de partida é anunciada: por vezes, a voz lírica parece entoar do próprio “navio” que parte, outras vezes da praia onde o sujeito vê o navio seguir rumo.

Os navios sem nenhum destino e a cidade dividida em as palavras interditas (1950-1951), de Eugénio de Andrade”, Joana Araújo. Revista Desassossego 9 – junho/2013

___________

14 Na definição de Rosa Maria Martelo, o “símbolo” ou a “metáfora”, apesar das diferenças, revelam, ambos, certa “essência” capaz de conter em si mesma a parte e o todo da substância que representa, estabelecendo, por isso, uma relação de unidade com o mundo. Como dissemos anteriormente, em As palavras interditas, o “navio” é recuperado alegoricamente para significar os destinos da nação portuguesa, tendo, desde os descobrimentos, se tornado uma das imagens mais carregadas no imaginário português. No entanto, nesta afirmação, tomamos o sentido de “alegoria” como entendido pelos antigos: figura ornamental, que não se distinguia do símbolo na tradição greco-latina, medieval e renascentista, conforme explica Hansen (HANSEN, 2006, p. 15). Assim, em contraste com os demais elementos da paisagem, o “navio” possui a inteireza do “símbolo” ou da “alegoria” no sentido antigo, ao passo que os demais elementos fragmentados da paisagem são lidos aqui como “alegorias modernas”, conforme explicamos mais adiante no texto. Ou seja, o sentido de “alegoria” que evocamos e que mais se expressa em As palavras interditas é aquele ressignificado por Baudelaire, o qual Walter Benjamin definiu como “destruição do orgânico e extinção da aparência”: fragmentos e ruínas daquilo que outrora salvaguardava o mito. Para evitar confusão, designamos o “navio”, em toda sua inteireza, como “símbolo”.

15 Rosa Maria Martelo discorre sobre a diferença entre o símbolo e a metáfora de um lado, e a alegoria de outro: “Próprio do símbolo, como atesta a etimologia, é o lance simultâneo, o lançar conjuntamente, de que a metáfora guarda, identicamente, a valorização da produtividade que decorre da intersecção de dois reinos diferenciados mas unidos num terceiro; próprio da alegoria é o lance que se faz em vez de, e por conseguinte no reconhecimento de nesse movimento haver sempre uma vertente de perda, uma dimensão que não comparece” (MARTELO, 2007, p. 96). Martelo abraça a “reapreciação” da alegoria (desvalorizada pela tradição crítica desde o Romantismo) por parte de Walter Benjamin e mais tarde por Paul de Man e Craig Owens. Esses autores foram responsáveis por investigar a alegoria não mais como uma figura de linguagem meramente ornamental e estilística, mas como um “formante de uma relação com o mundo e, por conseguinte, também uma condição da apresentação dessa relação” (MARTELO, 2007, p. 89). Nessa perspetiva, o “olhar do alegorista” expressaria a experiência de perda irredimível em relação ao tempo: ao debruçar-se sobre a própria “fissura”, sobre a separação em si mesma, manifestaria a perda e a “distância de sua própria origem”, estabelecendo “a sua linguagem no vazio dessa diferença temporal” (MARTELO, 2007, p. 96). Em As palavras interditas, a alegoria é a figura mais frequentemente empregada na descrição da paisagem urbana, no centro da qual habita o sujeito incompleto e angustiado, à procura de uma unidade reveladora do ser. Por outro lado, o signo central do “navio” mantém a inteireza de um símbolo ou de uma metáfora embora encene, à deriva, a impossibilidade do encontro esperado com outros constituintes imagéticos, permanecendo no centro de uma imagem fragmentada do mundo.

16 Sobre este poema, Eduardo Prado Coelho escreveu: “O navio dentro da cidade parece transmitir uma relação de um lugar de resistência frente à ruína e a opressão: navios que, atravessando o desespero, a ditadura e a morte, permitem a passagem dos passageiros clandestinos que a eles se encostam e das mensagens que eles enviam, palavras interditas – notícias de bloqueio” (COELHO, 1971, p. 74).

17 Contrastes marcados ao longo de todo o poema: “ondas de sombra” X “primeiras luzes das colinas”; “anoitece” X “areias brancas”/ “halo das searas”; “água” X “pedra”; “mãos noturnas” X “dias quebrados na cintura”; partir X ficar; partir X regressar, unidade X ruína; “mar” X “cidade”.

18 A imagem aqui poderia também se referir à recusa da juventude de seguir pelo mar, associada no imaginário português à saída para a guerra ou para as colônias, a serviço da nação.

19 Respetivamente: p. 100, p. 101 e p. 109.  

20 Respetivamente: dos poemas “Litania”, p. 101, “Rosto afogado”, p. 117, e “Mar, mar e mar”, p. 120.

 



 

 

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“As palavras interditas, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-09. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-palavras-interditas-eugenio-de.html


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