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quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Que fizeste das palavras? (Eugénio de Andrade)

 



Que fizeste das palavras?

Que contas darás tu dessas vogais

de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgor

das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando

te perguntarem pelas minúsculas

sementes que te confiaram?

 

Eugénio de Andrade, MATÉRIA SOLAR, 1980 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Esquema interpretativo do poema “Que fizeste das palavras?”, de Eugénio de Andrade

 



Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e535261/portugues-12-ano, inicia ao minuto 07’01’’



 

Análise de “Que fizeste das palavras?”

O poema, de Eugénio de Andrade, baseia-se no recurso intenso à interrogação retórica. Assim, o «eu» começa por questionar um «tu»: “Que fizeste das palavras?” Com esta interrogação retórica, ele reflete sobre o seu ofício de poeta, que é alguém que trabalha com as palavras. Ora, estas são constituídas por vogais e consoantes, resultam da fusão desses dois elementos.

As vogais são «azuis» (sensação visual), cor que simboliza a tranquilidade e a paz (a cor azul relembra, por exemplo, o céu e o mar, que reflete aquele), enquanto as consoantes ardem entre o “fulgor / das laranjas [cor quente] e o sol [símbolo de vida] dos cavalos” (animais que representam a força e a vitalidade). Assim sendo, as palavras possuem um grande potencial e diversidade. Por outro lado, estas metáforas traduzem a relação das palavras com a Natureza.

No terceiro terceto, o «eu» poético associa, metaforicamente, as palavras a “minúsculas sementes” (vv. 8-9), relacionando-as novamente à Natureza. Através desta metáfora (as palavras são sementes), ele sugere que o poeta e uma espécie de semeador, pois fá-las germinar, ou seja, semeia-as e fá-las nascer e crescer, isto é, o poeta constrói o poema como se se tratasse de um ser vivo. Então, isto significa que o poeta é um criador, dá vida (ao poema, à poesia) e tem de ser muito cuidadoso com o seu ofício.

Por outro lado, a poesia constitui uma tarefa de grande responsabilidade e as palavras têm grande potencial, pois são sementes, de onde surge uma planta. O ofício de poeta é um labor, um trabalho, uma construção e uma consciência do que se faz, com o objetivo de traduzir inquietações ou emoções do ser humano.

 

Disponível em: https://portugues-fcr.blogspot.com/2021/10/analise-de-que-fizeste-das-palavras.html, 2021.10.25

 

Matéria Solar (1978-1980)

 

1

Podias ensinar à mão

outra arte,

essa de atravessar o vidro;

podias ensiná-la

a escavar a terra

em que sufocas sílaba a sílaba;

ou então a ser água,

onde de tanto olhá-las

as estrelas caíam.

50

Que fizeste das palavras?

Que contas darás tu dessas vogais

de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgor

das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando

te perguntarem pelas minúsculas

sementes que te confiaram?

 

Em cima à esquerda, citámos a primeira poesia desta coleção de Eugénio de Andrade, e a direita a última, ou quinquagésima. A primeira faz-nos lembrar a poesia «Oficio» (da coleção Obscuro Domínio), cujo tema era também «a maldição da palavra poética». Entre estas duas poesias (a primeira e a quinquagésima) o poeta amaldiçoou muitas vezes o seu ofício, mas, apesar disso, a ele sempre voltou por não haver outra solução. Ele «podia ensinar a mão» um qualquer oficio, mas agora é demasiado tarde para tal decisão, pois a velhice já chegou. Daí que, depois destas 49 poesias (que, do ponto de vista do «conteúdo», não trazem de facto nada de novo, senda o seu único ideal a música e o silêncio) o poeta examine minuciosamente a sua consciência: o que dirá as «palavras», as «vogais» e as consoantes» quando o chamarem à ordem?

Nas demais 48 poesias seguem-se todos os arquétipos que caracterizam a poesia de Eugénio de Andrade. Apenas o homem - o poeta se transformou. Ele já não conquista o mundo através do amor (como nas suas primeiras coleções), nem se esgota em esforços para fazer regressar a juventude, custe-lhe o que custar, mas concilia-se sim, de todo, com o seu destino, aceitando a velhice e as suas consequências: «Ser não é fácil... fácil, só a merda...» [epígrafe ao livro Matéria Solar citada do livro Aos inimigos, de Vladimir Holan]. O poeta está bem consciente disso. Porém, apesar disso, não pode deixar de amar, porque, sem amor, ele deixaria de ser poeta. Como para ele o amor é, antes de tudo, o corpo, verifica-se que a velhice não pode amar. Daí as suas «excursões» ao passado, aquele tempo em que ainda podia amar.

 

Níkíca Talan, “O Neotrovadorismo na Poesia de Eugénio de Andrade II”. Studia Romanica et Anglica Zagrabiensia: Revue publiée par les Sections romane, italienne et anglaise de la Faculté des Lettres de l’Université de Zagreb, vol. 40, 1995.

 

 

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“Que fizeste das palavras? (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-10. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/que-fizeste-das-palavras-eugenio-de.html


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