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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Lettera Amorosa, Eugénio de Andrade

Poemas de Eugénio de Andrade Lidos Pelo Autor, 1972

 

LETTERA AMOROSA

 

Respiro o teu corpo:

sabe a lua-d’água

ao amanhecer,

sabe a cal molhada,

sabe a luz mordida,

sabe a brisa nua,

sabe ao sol dos rios,

sabe a rosa-louca,

ao cair da noite

sabe a pedra amarga,

sabe à minha boca.

 

Eugénio de Andrade, Mar de setembro, 1977 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017


 ***

Adentrando pelo título, observa-se em “Lettera Amorosa” a configuração de uma carta de amor que, de certa forma, é o próprio corpo lido pelo poeta que o sabe de cor e que o colore para o leitor usando o branco (lua, cal, luz) e o rubro (sangue, cair da noite).

A construção em redondilhas é responsável pela simetria do poema que sugere a perfeição do corpo físico evocado. Tal construção, de fácil assimilação, envolve o leitor num movimento rápido e ritmado, fazendo-o se sentir, também, sabedor do corpo/poema. Às vogais fechadas do primeiro verso (Respiro o teu corpo), sucedem, ao longo do poema, vogais abertas (sabe, d’água, molhada, nua, rosa-louca, pedra amarga) que funcionam como a entrega do corpo físico/textual ao poeta/leitor.

A repetição do verbo “sabe” no início dos versos 2/4/5/6/8/10/11 promove um anelo graças ao ritmo dado ao poema. A recorrência é um “modo tático pelo qual a linguagem procura recuperar a sensação de simultaneidade” e demonstra que “se está a caminho e que se insiste em prosseguir” (BOSI, 2000, p. 41). Assim, por meio da reiteração do som/palavra materializa-se a vertigem do ato de exploração/leitura amorosa do corpo/poema.

A cada “sabe” o significado se condensa em saber e sabor que o poeta degusta, sinestesicamente, com os olhos e a inteligência. Na tradição filosófica do haiku, o sentir “é alguma coisa que está entre o pensamento e a sensação, o sentimento e a idéia” (PAZ, 1991, p. 197). Essa disposição oriental encontra-se no primeiro verso, no qual há a integração do poeta/leitor com o corpo/texto assim que ele o “respira”, ou seja, a sensação olfativa é distribuída ao paladar (sabor) e ao intelecto (saber).

As imagens elementares da terra (cal), da luz, do vento (brisa), da água (rio) são evocadas para compor uma pluralidade na unidade harmônica do corpo/natureza/texto. Diz Eugénio que “a terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulharam desde a infância no mundo mais elemental” (1990, p. 288). Assim, as metáforas elementares são, nesta poesia, imagensgeratrizes, pois geram uma nova imagem adjetivada, muitas vezes dissonante racionalmente, mas sensivelmente harmônica.

É exemplar a imagem “luz mordida” que funde a abstração da claridade ao ato concreto de morder, o qual contém o escuro da boca fechada e a fome, imagem erótica do desejo. Já “brisa nua” humaniza a natureza à medida que torna visual o elemento “ar” por meio da sensação táctil: ao associar o frescor da brisa ao descritivo nua, o poeta potencializa a sensação ao máximo, gerando a imagem de um arrepio. A normalidade sofre um abalo com a cópula da imagem arrepio (imagem-gerada pelas imagens-geratrizes) ao sabor, gerando uma imagem virtual da língua sobre o corpo. Lembrando Bosi: “A realidade da imagem está no ícone. A verdade da imagem está no símbolo” (2000, p. 46).

A imagem do nenúfar “lua d’água ao amanhecer” recria, a partir dos elementos luz (contido em lua) e água, uma reação quase química no poema, dando-lhe claridade (no branco da flor) e umidade (no orvalho do amanhecer). Não se pode esquecer que na filosofia oriental “o orvalho, a névoa, as nuvens e outros vapores estão associados ao fluido feminino” (PAZ, 1979, p. 94). Nessa fusão surge o corpo desejado transfigurado pelo corpo poemático: branco e molhado, acordando para o poeta/leitor. Essa imagem é reiterada na seguinte: “cal molhada” é a parede branca das construções portuguesas escorrendo a água da chuva, como o corpo fluindo e sugado no poema.

Mas, a tela eugeniana recebe, ainda, pinceladas de um vermelho vivo, dos “sangue dos rios” e “rosa-louca”. Na primeira imagem, o sangue como essência da vida potencializa a água doce dos rios, símbolo da vida para Bachelard, que pulsa/corre nas veias humanas como o rio no seu leito. Nessa recriação, todo o sabor sensível e intelectual do movimento erotizado da vida. Já em rosa-louca, a efemeridade conferida ao termo rosa junta-se ao adjetivo que representa o desespero da paixão, materializado na passagem do dia para a noite, do branco para o vermelho da flor. E, passagem, também, do doce para o “amargo” da “pedra” que representa a frieza do fim e a possibilidade do sabor e concretude em sua boca.

 

Geruza Almeida, “Eugénio de Andrade: um duplo erótico”. Labirintos (UEFS), v. 2 , p. 1 - 16 , 2007. ISSN: 19808895.

 

 

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“Lettera Amorosa, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-18. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/lettera-amorosa-eugenio-de-andrade.html



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