Páginas

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Urgentemente, Eugénio de Andrade

Ilustração do poema “Urgentemente”, por Sónia Oliveira.
(in Letras & Companhia 9, C. Marques e I. Silva. Lisboa, Edições Asa, 2013)

 

URGENTEMENTE

 

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

 

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

 

Eugénio de Andrade, Até amanhã, 1956 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017



 


I - Linhas de leitura do poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade

 

Este poema é uma mensagem da urgente construção do amor, da permanência na unidade, imperativa em todos os tempos e lugares e, por isso, meta-histórica e universal.

 

Os elementos do discurso que a nível morfológico revelam a intensidade do apelo:

«É urgente» (vv. 1,2,3,7,9,13);

A utilização dos verbos «inventar», «multiplicar» e «descobrir» reforçam não só a ideia de urgência, mas também da necessidade de construção e de multiplicação desse amor...

 

Os elementos que recriam o amor:

«Um barco no mar» (que pode simbolizar a salvação);

«inventar alegria»;

«multiplicar os beijos, as searas» (aumentando a amizade, a felicidade e a fraternidade para que frutifiquem como as searas);

«descobrir rosas e rios e manhãs claras» (a beleza das rosas, a presença do outro, a alegria da claridade da manhã);

«permanecer» (não desistindo da construção desse ambiente de fraternidade e de amizade):.

 

Os conceitos que se opõem ao amor:

É necessário destruir (por serem contrárias ao amor): «certas palavras»; «ódio, solidão e crueldade»; «alguns lamentos»; «muitas espadas»;

É preciso acabar com o «silêncio» e com a «luz impura».


Valor semântico-simbólico de alguns vocábulos:

barco: a viagem, a salvação;

espadas: guerra, ódio, violência;

silêncio: solidão, falta de comunicação;

rosas: beleza, pureza, amizade;

manhãs claras: alegria, pureza, paz.

 

Divisão em partes e assunto de cada parte:

O poema pode dividir-se em quatro momentos, de acordo com a organização estrófica e com os verbos utilizados.

 

A primeira estrofe surge como apelo geral à urgência (da descoberta das «rosas e rios / e manhãs claras») pois só ele pode salvar (ser «um barco no mar»);

 

na segunda estrofe, o apelo liga-se à necessidade de «destruir» tudo o que impede a construção desse amor – dessa liberdade (portanto, a urgência da destruição de «certas palavras» como «ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas»);

 

na terceira parte, surge a necessidade de «inventar», «multiplicar» e «descobrir» o que é belo e dá sentido à vida – alegria, beijos, searas, rosas e risos e manhãs claras – e que permite construir ou reconstruir um mundo mais autêntico e fraterno (em síntese, a 3ª estrofe marca a necessidade da invenção da «alegria» e do amor – «multiplicar os beijos, as searas»);

 

a última estrofe justifica, de modo mais explícito, a postura ética assumida, já que a imagem simbólica do silêncio abafa a mensagem das palavras («cai o silêncio nos ombros») e a luz perde o seu carácter benfazejo para se tornar impura, causando a dor. Portanto, na última estrofe, em forma de conclusão, o poeta volta a referir o que impede o amor e faz «doer», para dizer que não se pode desistir, perder a esperança, que é forçoso «permanecer».

 

Linguagem:

Linguagem rica, variada e sugestiva;

Funções apelativa e emotiva;

Vocabulário utilizado (É urgente, amor, barco, inventar alegria, multiplicar os beijos, rosas e rios, permanecer...) transmitindo a ideia de busca do amor, de construção de paz e de liberdade;

Objetivo a atingir: convencer da urgência do amor...

 

Recursos estilísticos:

anáfora (vv. l, 2,3)

repetições

metáfora (v. 2)

hipérbole (vv. 3-6) (vv. 11-12)

aliterações /s/ (vv. 3-6)

aliterações/r/(vv. 7-10)

antíteses (destruir / inventar) (amor / ódio)

personificação (v. 12)

sinestesia («descobrir rosas e rios»)

 

O poema à luz do título da obra (Até Amanhã).

Sem amor não há futuro...

Até Amanhã garante essa margem de esperança e reafirma a persistência na invenção do amor...

 

(adaptado de: Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação para a prova de exame nacional - 12º ano, pp. 187, 406, 407; Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 127-128)

 

 

II - Lê atentamente o poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade, e responde, de modo estruturado, às perguntas abaixo apresentadas.

 

1. Este é um poema que com certeza já conhecerás. Revisita-o através desta análise.

1.1. Propõe uma interpretação simbólica para o elemento “barco no mar”.

 

2. Explica o sentido do verso “É urgente destruir certas palavras”, clarificando o que “É urgente destruir”.

3. Interpreta a terceira estrofe, tendo em conta o valor simbólico e metafórico das palavras.

4. Relê a quarta estrofe.

4.1. Explicita o significado dos dois primeiros versos “Cai o silêncio nos ombros,/ e a luz impura até doer”, relacionando-os com o conteúdo da estrofe anterior.

4.2. Mostra como estes dois versos se poderão articular com a linha de leitura “Representações do contemporâneo”.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 36 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Green God" e "Canção", de Eugénio de Andrade, 2021-04-1. Atividade e Recurso Complementar disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/12o/portugues/36


III – Comentário de texto

Elabore um comentário global do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- tema e sua relação com o eufórico/disfórico;

- expressividade das formas verbais;

- simbologia dos nomes;

- recursos estilísticos relevantes.

 

Proposta de correção do comentário de texto:

Neste poema de Eugénio de Andrade ressalta um tom apelativo e são vários os elementos discursivos que revelam a sua intensidade.

Tendo como tema fundamental o apelo que lança a toda a humanidade, não será de estranhar que se percecione, desde o título, um grito que reclama a harmonia. Além do mais, é visível a oposição entre os aspetos negativos e os positivos, contrapondo-se, deste modo, os elementos eufóricos e disfóricos.

Além da repetição sistemática do vocábulo "urgente", os verbos "inventar", "multiplicar" e "descobrir" sugerem, também, a necessidade de expandir o amor e contribuem para reforçar a ideia que defende desde o início: espalhar a harmonia no mundo, começando pelos homens.

Há, ainda, outras expressões que remetem para a necessidade de fazer prevalecer o amor sobre a humanidade. É o caso da expressão "um barco no mar", a sugerir a salvação, uma vez que esse sentimento também pode salvar o Homem da destruição iminente; o mesmo é sugerido pelas expressões "inventar alegria", "multiplicar os beijos, as searas", "descobrir rosas e risos / e manhãs claras" que, para além de simbolizarem o eufórico, servem igualmente para despertar a vontade de aumentar a amizade, a felicidade e a fraternidade.

A última expressão simboliza ainda a beleza, a alegria e a presença do outro.

O verbo "permanecer" conota a insistência e a necessidade de se construir um ambiente fraterno e amigável.

Todavia, há muitos elementos que sugerem a oposição ao amor e que, por isso, é preciso destruir, destacando-se o "ódio / solidão e crueldade / alguns lamentos / muitas espadas", o "silêncio", a "luz impura". De facto, a negatividade ou disforia que envolve este vocabulário serve para destacar, novamente, a vantagem da sobreposição do amor, em detrimento destes aspetos negativos que pairam no mundo.

E se os vocábulos usados sugerem o disfórico, os verbos também adquirem valores opostos. Assim, “inventar" e "permanecer" remetem, respetivamente, para a necessidade de voltar a construir a amizade e a fraternidade, partindo dei nada para ai não existir impureza, e para a ideia de persistência, de luta constante, para que a esperança não se apague e "a luz impura" se imponha "até doer". Já o verbo "destruir" encerra uma conotação negativa, embora no contexto se reporte à destruição de todos os aspetos impeditivos à implantação desse amor, assumindo, deste modo, um valor positivo.

Há outros termos que convém descodificar, dado que o seu valor semântico se associa à mensagem que se pretende transmitir. Destaque-se, por exemplo, o substantivo "barco" como símbolo da viagem que permitirá a fuga e a consequente salvação, enquanto "espadas" Indicia sentimentos contrários e sugere a guerra, o ódio, a violência; a palavra "silêncio" remete para o isolamento, a solidão, a falta de comunicação; já "rosas" conotam beleza, harmonia, amor, pureza e os "risos" e as "manhãs claras" apontam para a felicidade, a alegria e a paz.

Sendo Eugénio de Andrade considerado o artista da palavra, não é de estranhar que utilize uma linguagem rica e variada, selecionando o vocabulário que lhe permita transmitir o seu apelo e as razões por que o faz. Além do mais, serve-se de um conjunto de recursos de estilo que servem a sua intencionalidade: a anáfora e as repetições, a traduzir a insistência do apelo; as antíteses, para apresentar duas realidades distintas e permitir a opção pela mais benéfica para a humanidade; as aliterações em "s" e em "r", a sugerirem a reflexão e a preocupação; as hipérboles, usadas primeiramente como forma de acentuar a destruição e depois para acentuar a urgência do amor; a metáfora, que serve para imprimir o valor simbólico à mensagem.

Em conclusão, poder-se-á afirmar que todos os processos usados pelo autor concorrem para clarificar a mensagem que o poema encerra: sem amor não há futuro nem harmonia no mundo. O próprio título da obra "Até amanhã" conota a esperança e a persistência da necessidade de inventar e construir o amor.

 

Dossier Exame ‑ Português A, 12º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003. ISBN: 972-41-3415-6

 



 IV - Oficina de escrita criativa 

O seguinte fragmento trata-se de uma transcrição incompleta do poema de Eugénio de Andrade.  Completa-o de forma expressiva. 


É urgente o Amor,

É urgente ……….…….

 

É urgente destruir certas palavras

……….……,

alguns ……….……,

muitas ……….…….

 

É urgente ……….……,

multiplicar ……….……,

é urgente ……….……

e ……….…….

 

……….……

……….…….

É urgente o amor,

É urgente ……….…….

 

 

Poderá também gostar de:



Urgentemente, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-17. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/urgentemente-eugenio-de-andrade.html



Sem comentários:

Enviar um comentário