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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Pátria, Sophia Andresen


 

 

PÁTRIA

 

Por um país de pedra e vento duro

Por um país de luz perfeita e clara

Pelo negro da terra e pelo branco do muro

 

Pelos rostos de silêncio e de paciência

Que a miséria longamente desenhou

Rente aos ossos com toda a exatidão

Dum longo relatório irrecusável

 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

 

E pela limpidez das tão amadas

Palavras sempre ditas com paixão

Pela cor e pelo peso das palavras

Pelo concreto silêncio limpo das palavras

Donde se erguem as coisas nomeadas

Pela nudez das palavras deslumbradas

 

— Pedra rio vento casa

Pranto dia canto alento

Espaço raiz e água

Ó minha pátria e meu centro

 

Me dói a lua me soluça o mar

E o exílio se inscreve em pleno tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.

 

 

O poema “Pátria” constrói-se pela anáfora da preposição “por”, indicando em razão de que a voz poética canta. Em seu canto, essa voz exprime aquilo que deseja para sua nação, ao mesmo tempo em que indica o que dói nela ao observar sua realidade. Na primeira estrofe, temos um país de pedra e de vento duro, mas a dureza da pedra e do vento não significa aqui uma metáfora para a ocupação do país pelo medo e pela injustiça.

Diferentemente da realidade, a voz poética expressa, na primeira estrofe, seu desejo de ter um país duro somente em seu aspeto natural: as pedras que formam os montes, que calçam as ruas e o vento que se impõe por sua força. Essa ideia se fortalece nos dois versos seguintes: o canto é pela luz perfeita, e não a luz cinza da noite ocupada. O muro é branco, é claro e limpo. Na descrição do país que deseja a voz poética, temos elementos importantes da poesia andreseniana: a presença do real e a busca pela limpidez e clareza no mundo. Temos também nesse trecho a descrição do espaço físico e da arquitetura de Portugal: o vento, a iluminação e a terra são traços da geografia do país, enquanto a pedra e os muros brancos relacionam-se ao aspeto arquitetónico.

A estrofe seguinte traz a recorrente metonímia do rosto para referir-se ao povo, novamente moldado pela dureza da miséria e da paciência de esperar por mudanças em sua vida. Assim como em “Esta Gente”, é por esse povo de rosto desenhado pela pobreza que a voz poética canta sua pátria. Mas, como em “Regresso”, esse povo também tem seu rosto claro, voltado para o sol e para o vento, como indica o único verso da terceira estrofe. De certa forma, é uma antítese: o povo é marcado pela miséria, porém tem seu rosto voltado para o sol. É essa oposição que forma a imagem de um povo ora escravo, ora rei que aparece no poema anterior. Um povo que condensa em si a força e a coragem, mas a miséria e a pobreza.

Na quarta estrofe, a voz poética inicia seu canto à pátria por meio de outro elemento fundamental para a constituição desta: a língua. O patrimônio linguístico é um dos princípios da formação dos Estados modernos, e, no contexto do Estado Novo português, a linguagem apresenta um viés importante. Roberto Vecchi, em sua análise do poema, insere-o como uma glosa da relação moderna entre nação e língua (VECCHI, R., 2002, p. 258). Ele observa que o fazer poético nesse texto se constrói não somente como um exercício lírico, mas também como um mecanismo de dizer a pátria, uma vez que a poética é parte da língua e das narrativas do país. O poema é então “Um exercício poético que se faz explorando o subtil limiar de dizer a pátria pelo seu não dizer, registrando a surda fricção produzida pelas desconjunções da nação com suas narrações” (Ibidem).

Por meio das palavras, Sophia Andresen engrandece a interpretação do poema a partir do deslocamento do “núcleo crítico do objeto declamado para o problema e sua representação (linguística)” (VECCHI, R., 2002, p. 259), valendo-se de uma construção que busca permanecer isenta, inicialmente, de subjetividade. Esse processo tem como base a “qualidade material” de Sophia para a qual Vecchi chama a atenção, pela nitidez do campo visual trabalhado, a materialidade concreta com a qual se trabalham os elementos.

A palavra, então, surge no poema com duas “funções”: em um momento, ela faz parte, juntamente com o ambiente e com o povo, da construção do imaginário da pátria – que aparece distante, dada a imagem do exílio que se inscreve nesse tempo, conforme indica o último verso –. Em outro momento, a linguagem torna real essa pátria distante por meio de sua força presentificadora. Assim, quando a voz poética fala “E pela limpidez das tão amadas / Palavras sempre ditas com paixão”, a língua se presentifica, em toda sua expressão livre e nítida, pois até seu silêncio é limpo. É a palavra que presentifica essa possibilidade de liberdade, de veemência e de transparência da língua, uma vez que o contexto apenas reproduz palavras manchadas pelo poder, pelo controle e pela demagogia.

Ademais, por meio do léxico variado temos construções que expressam de forma mais objetiva a necessidade do real da poesia andreseniana. Desde a primeira estrofe, a pátria é nomeada, ou seja, há construções que se valem dos substantivos que criam as imagens desejadas. A autora utiliza, além dos adjetivos, construções em que o adjunto adnominal apresenta uma condição ou explicação sobre substantivo nomeado, como ocorre em “país de pedra” e “rostos de silêncio e de paciência”. Esse recurso permite às palavras que aparecem como adjuntos adnominais oferecer ao leitor uma imagem mais concreta dos elementos formadores da nação.

Em “País de pedra”, por exemplo, há a imagem da “pedra”, e não somente uma qualidade. O elemento que forma esse território aparece de forma mais concretizada e mais ativa no poema. No verso “Pelos rostos de silêncio e de paciência” temos uma estrutura semelhante. Os adjuntos adnominais “silêncio” e “paciência” não são somente qualidades dos rostos, mas aspetos formadores do povo. A miséria desenhou silêncio e a paciência nos rostos, e não rostos pacientes e silenciosos. Nesse sentido, a presença de um léxico de substantivos nos leva a enxergar objetivamente a pedra, o silêncio e a paciência como vemos os rostos e espaço físico do país, formando uma noção concreta da pátria e de seu povo.

No verso “E pelos rostos iguais ao sol e ao vento”, o uso da comparação também possibilita a presentificação do sol, além da luminosidade por ele oferecida, e do vento. Se a autora, por exemplo, adjetivasse os rostos com o adjetivo “ensolarado”, a imagem do astro não seria tão fortalecida no poema. A partir dessa estratégia de construção, a autora intensifica a relação entre natureza e humanidade, o que configura uma temática importante do plano poético andreseniano. Além disso, ao construir o poema por meio de uma unidade semântica material, a autora relaciona-se com a busca pelo real que caracteriza sua obra poética.

Após construir sua pátria por meio da natureza, do povo e da língua, a voz poética insere-se como elemento de representação da nação. Mas, ao dizer “seu país e seu centro”, a realidade mostra-se: o tempo é de exílio. A lua lhe dói, assim como o mar nela soluça, imagens que oferecem nesse trecho a subjetividade da voz poética que se sente exilada de sua terra. O mar relaciona-se, como vimos, a um importante símbolo de Portugal, além de ser uma das imagens mais recorrentes da lírica andreseniana. Ao nomear a sua pátria, a voz poética depara-se com a dor, que a afasta de sua terra. O canto presentifica a nação e a opõe àqueles que a ocupam. O canto existe, mas sua presença é conflitante com o real, e isso dói na voz poética. Ainda assim, seu canto é dito, e sua pátria, de alguma forma, presentificada.

Nomear a nação em meio a um contexto sociopolítico conturbado é, de facto, uma função que não se configura como fácil para Sophia Andresen. Em uma correspondência a Jorge de Sena, datada de 1961, a autora afirma que sente aumentar a presença da raiva nas ruas de Portugal, pois as pessoas olham os escritores com ódio nas “grossas mãos fascistas” (ANDRESEN, S.; SENA, J., 2010, p. 51). Além disso, havia o cerceamento ideológico causado pela censura e pelo controle sistemático dos meios de comunicação, o que impedia drasticamente o debate político entre a sociedade e a formação de um senso crítico mais apurado em relação ao que se vivia.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

 

© José Carreiro, 2021


Pátria” tem, excecionalmente em Andresen, uma estrutura de estrofes bastante variadas: totaliza seis, porém de tamanhos sem paralelo com seus respetivos 3, 4, 1, 6, 4 e 2 versos cada. Quanto à métrica, predominam os versos longos entre 10 e 13 sílabas poéticas, não obstante a penúltima estrofe utilize versos heptassílabos em seu ato de nomear as coisas pelos seus substantivos concretos. Essa exceção é relevante porque a estrofe cita as “mesmas vinte palavras” repetidas na poesia de Sophia Andresen. Chegam quase literalmente às vinte se, às onze da quinta estrofe, somarmos outras relevantíssimas presentes no correr do poema: “país”, “luz”, “muro”, “sol”, “palavras” etc. Assim, é um poema em que os substantivos abstratos não têm grande manifestação, ainda que estejam supostos ou implicados na potência abstrata, (re)criadora de mundos, dos substantivos concretos.

Os substantivos concretos testemunham essa capacidade lírica de transformação. Andresen (2015, p. 575) já dizia em “Poema” que “A frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita”. Realmente, em “Pátria”, o eu-lírico parece enunciar sílaba por sílaba os substantivos concretos. A maior separação gráfica da penúltima estrofe reforça a importância da leitura pausada de cada palavra para construção de seu efeito de sentido. O travessão que dá início à estrofe e o vocativo final iniciado por “Ó” trazem o poema para o universo da declamação. O poema só se realiza no poder de uma ação, portanto: a do falar para que seja, nomeação que converte poesia em realidade. Toda a arquitetura do poema antecipa que o enunciar dos substantivos concretos se dá pelo “país”, pelos “rostos” dos cidadãos, pela “limpidez” das coisas, até pelas “palavras”. Fala-se em nome de outros, em testemunho deles: “país”, “rostos”, “limpidez” e “palavras”. Por fim, mesmo falando, o eu lírico sabe que seu projeto lírico está comprometido na pátria dividida. O exílio se inscreve em sua vivência e deve ser nomeado também, como cada coisa que foi enunciada antes, para daí se proceder à revisão do mundo. Ou isso, ou o tempo seguirá sendo de exílio (substantivo concreto para os que partiram; substantivo abstrato para os que ficaram).

 

Samuel Pereira, O testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aproximações entre ética e estética. Goiânia, UFG-FL, 2022

 

 

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“Pátria, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-02. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/patria-sophia-andresen.html


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