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terça-feira, 1 de novembro de 2022

Esta gente, Sophia Andresen

Sophia e Francisco no jardim do Campo Alegre <https://purl.pt/19841/1/1960/1960-3.html>

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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ESTA GENTE

 

Esta gente cujo rosto

Às vezes luminoso

E outras vezes tosco

 

Ora me lembra escravos

Ora me lembra reis

 

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate

Contra o abutre e a cobra

O porco e o milhafre

 

Pois a gente que tem

O rosto desenhado

Por paciência e fome

É a gente em quem

Um país ocupado

Escreve o seu nome

 

E em frente desta gente

Ignorada e pisada

Como a pedra do chão

E mais do que a pedra

Humilhada e calcada

 

Meu canto se renova

E recomeço a busca

De um país liberto

De uma vida limpa

E de um tempo justo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço

 


Texto de apoio

Sophia Andresen cria em Grades essa união entre sua poesia e sua visão política. Isso ocorre, por exemplo, no poema “Esta Gente”, extraído do livro Geografia, no qual a voz poética relata e se posiciona sobre o alheamento e a manipulação do povo português.

A expressão “esta gente” faz uma referência a um povo, o qual pode ser lido como o povo português em razão do contexto de publicação da coletânea. Esse povo aparece descrito novamente pelo seu rosto, como vimos em “Regresso”, por meio de uma antítese entre os adjetivos luminoso e tosco, algo bruto, rústico. Da antítese, a voz poética parte para um quase paradoxo ao definir o povo ora como escravo, ora como rei.

Ao “escravo”, podemos relacionar a ideia de manipulação e de alienação política dessa gente, tornando-a escrava de um regime que se impõe pela força ideológica e física. É importante ressaltar que as ditaduras modernas “tendem sempre a apresentar-se como expressão legítima dos interesses e das necessidades do povo” (BOBBIO, 1998, p. 374), com o objetivo de manter o controle necessário para a manutenção da ordem e do poder. Assim, “o povo é forçado a manifestar uma completa adesão à orientação política do ditador a fim de que este possa proclamar que sua ação apoia-se na vontade popular” (Ibidem), pois o salazarismo «tentou, também ele, ‘resgatar as almas’ dos portugueses, integrá-los, sob a orientação unívoca de organismos estatais de orientação ideológica, ‘no pensamento moral que dirige a Nação’, ‘educar politicamente o povo português’ num contexto de rigorosa unicidade ideológica e política definida e aplicada pelos aparelhos de propaganda e inculcação do regime e de acordo com o ideário da revolução nacional. Neste contexto, sustenta-se a ideia de que o Estado Novo, à semelhança de outros regimes fascistas ou fascizantes da Europa, alimentou e procurou executar, a partir de órgãos do Estado especialmente criados para o efeito, um projeto totalizante de reeducação dos ‘espíritos’, de criação de um novo tipo de portuguesas e de portugueses regenerados pelo ideário genuinamente nacional de que o regime se considerava portador» (ROSAS, 2001, p. 1032). Desse modo, temos um povo controlado e submisso, por isso a imagem da escravidão.

Essa descrição acontece por meio de orações e construções alternativas, ora assumindo uma característica, ora outra, o que sugere, por um lado, um caráter mais instável dessas pessoas, e, por outro, qualidades opostas que, de certa forma, complementam-se, criando uma população que se caracteriza por suas fraquezas e suas virtudes. Esse caráter mais cindido do povo suscita na voz poética a vontade de lutar e resistir contra um Estado que tira da sua própria gente a liberdade e os direitos de construir sua pátria por meio da participação política.

Essa gente inspira o combate porque é moldada pela luta diária pela sobrevivência, seus rostos são desenhados “por paciência e fome”. Paciência de esperar que as condições de pobreza que Portugal apresentava na época em que se instaurou a ditadura do Estado Novo fosse modificada, como vimos no capítulo 1 deste trabalho. E a fome que talha o rosto desse povo como um escultor molda a madeira, esculpindo os detalhes do sofrimento e da miséria nas curvas da face.

É sobre esse povo que o poder se instaura e se impõe, e a imagem que a voz poética apresenta é novamente o país ocupado, o qual “escreve seu nome” à custa do controle da população. A noção de “escrever”, aqui, pode ser lida como a presentificação da ocupação. Tal ideia aproxima-se à de Sophia Andresen de escrever os poemas que escuta, tornando-os, assim, realidade. Assim como dizer, escrever seu nome é uma maneira de se tornar presente. O país ocupado, então, é real na medida em que escreve seu nome nos rostos, talhando-os pela miséria e pela alienação (palavra “alienação” é usada no trecho com o sentido de alheamento, controle e distanciamento daquilo que lhe é próprio, nesse caso, as liberdades e os direitos do cidadão).

Nesse país ocupado, a gente é “ignorada e pisada”, e essa ocupação lembra uma invasão de tropas estrangeiras que subjuga o povo e viola seus direitos, à maneira de um estado de sítio. A voz poética reifica o povo ao mostrar que o Estado o trata como um objeto, comparando-o a uma pedra, “E mais do que a pedra / Humilhada e calcada”. A coisificação do homem é um mecanismo pelo qual Sophia Andresen pode indicar o quanto a humanidade de seu povo é esmagada pelo Estado Novo, tanto pelo controle ideológico como pelo cerceamento das liberdades individuais. Essa ideia se reforça se considerarmos as condições de pobreza que grande parte da população portuguesa enfrentava.

A última estrofe rompe a denúncia do povo reificado pelo sofrimento e pelo poder do Estado e traz um aspeto positivo de esperança. É pelo povo que o canto da voz poética se renova e a busca pela liberdade da nação se reinicia. É interessante considerarmos esse reinício sob o viés temático do eixo 2, trabalhado anteriormente. Neste, havia poemas de denúncia, de um tempo dividido em que a nação aparecia ocupada e seu povo limitado. No eixo atual, ainda que haja essa denúncia, ela aparece inserida num projeto poético mais amplo do que a denúncia política sobre o contexto de Portugal. Assim, conseguimos observar de uma forma mais clara em “Esta Gente” o projeto poético que contempla o político, e não o político que aparece de forma preponderante.

A liberdade, por exemplo, aparece como um elemento importante na obra de Sophia Andresen, ao lado da clareza e da presença das coisas. A busca pela justiça também une-se à procura pela liberdade. No poema “Esta Gente”, observamos de forma explícita esse aspecto, e não por meio de seus valores opostos, como acontece nos poemas do grupo anterior. A voz poética deseja um “país liberto”, um país que deixe de ser ocupado por homens que não acreditam nesse direito. Salazar, em um discurso feito à imprensa em 1932, afirma que “autoridade e liberdade são dois conceitos incompatíveis... Onde existe uma não pode existir a outra” (SILVA, P., 2013, p. 1928). A voz poética, por sua vez, exibe ao leitor seu projeto: busca da liberdade, da clareza e de um tempo justo.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015





Questionário sobre o poema “Esta gente”, de Sophia Andresen:

1. O sujeito poético fala de um povo a partir da descrição do rosto.

1.1. Identifique a relação semântica que se estabelece entre as palavras “gente” e “rosto”.

1.2. Refira o recurso expressivo em que assenta essa relação de palavras.

2. Identifique o recurso expressivo comum aos versos 2 e 3, comentando a relação existente entre ambos.

3. Demonstre que entre os versos 2-3 e 4-5 se estabelece um quiasmo e comente a sua expressividade.

4. O caráter mais cindido do povo suscita no sujeito poético primeiro uma manifestação de vontade e depois uma transfiguração criativa e empenhada.

Refira em que estrofes se verifica essa manifestação e transformação, explicitando o seu conteúdo.

5. Decifre o simbolismo do bestiário enumerado nos versos 8 e 9.

6. Caracterize essa “gente” a partir da leitura da quarta e quinta estrofes.

 ***

Sugestões de correção do questionário sobre a leitura do poema “Esta gente”:

1.1. Há uma relação de inclusão que se estabelece entre a palavra “gente” que designa o todo (holónimo) e “rosto” que designa uma parte desse todo (merónimo).

1.2. O recurso expressivo que exprime a parte (“rosto”) pelo todo (“gente”) é a sinédoque (trata-se de um recurso expressivo de natureza metonímica).

2. O recurso expressivo comum aos versos 2 e 3 é a antítese, em que se estabelece uma relação de oposição entre os antónimos “luminoso” e “tosco” que faz destacar uma alternância entre a clareza da luz e o caráter rústico do tosco.

3. Há um paralelo ou uma dupla antítese cujos termos se cruzam, em que “luminoso” está para “reis”, assim como “tosco” está para “escravos”.

«A partir do termo “escravo”, podemos pensar na ideia de manipulação e alienação política desse povo, o qual se torna escravo de um governo autoritário que se impõe física e ideologicamente. […]

O outro lado da alternância sugere que essas pessoas são como “reis”, o que pode ser lido no viés das virtudes dessa gente descrita. A “realeza” dessas pessoas pode, aliás, indicar que eles são quem, de facto, devem ter o poder, devem ser os governantes, em oposição à centralização de poder pelo Estado.»

Portanto, na condição de escravos essa “gente” afigura-se com um rosto “tosco” do qual só se libertando e sendo senhora de si mesma poderá revelar-se luminosa.

4. «O caráter mais cindido do povo suscita na voz poética, como mostra o início da terceira estrofe, a vontade de lutar e resistir contra um Estado que tira da sua própria gente a liberdade e os direitos de construir sua pátria por meio da participação política.»

«É nessa impossibilidade que surge o canto da voz poética e dela retira sua força, expondo ao leitor seus ideais: a busca pela liberdade, pela clareza e por um tempo justo.» Por isso, na última estrofe o sujeito poético afirma que o seu canto se renova.

5. «As referências àqueles que estão no poder são feitas a partir de animais que têm, no imaginário popular, algumas características vistas como pejorativas.

O abutre é um ser que se alimenta de carnes em decomposição e dejetos, ou seja, ele busca a podridão. Ele pode ser lido como uma analogia ao próprio governante Salazar, uma vez que é uma imagem reincidente na obra andreseniana. No poema “O Velho Abutre”, publicado em Livro Sexto, já temos uma relação metafórica entre essa ave e o ditador: “O velho abutre é sábio e alisa suas penas / A podridão lhe agrada e seus discursos / Têm o dom de tornar as almas mais pequenas” (Andresen 2011, 439). Assim, a autora retoma tal figura no presente poema, mostrando que o povo a instiga a lutar e a combater o abutre, isto é, o próprio Salazar.

A cobra simboliza a traição no imaginário popular, pelo seu caráter venenoso. Assim, por extensão de sentido, esse animal representa as pessoas que são falsas, que estão à espreita “para dar o bote”.

O porco também suscita a ideia da sujeira, dada a situação como ele é comumente criado.

E, por último, surge o milhafre, uma ave da família do gavião e da águia que representa a astúcia, a perspicácia, por ser um pássaro que vive no alto calculando maneiras de “roubar” sua caça. O caráter de caçador astucioso relaciona-se negativamente àqueles ligados à corrupção, que estão sempre a raciocinar meios e modos de obter o que desejam, como se caçassem sua presa.» 

6. «A voz poética, então, relata a condição desse povo: à mercê de governantes ligados à imundície, à ameaça e à podridão. Essa gente, além disso, tem “O rosto desenhado / Por paciência e fome”. […]

É pela fome e pela paciência que o país, o qual é “ocupado”, “escreve seu nome”. A noção de “país ocupado” aparece também em outros poemas mais políticos de Sophia de Mello Breyner e fazem clara referência àqueles que governam em situação de autoritarismo, que tomam o poder para si, controlando o povo e cerceando-lhe a liberdade e a vida digna. É sobre justamente essa gente que a ditadura se consolida, se torna real – por isso a ideia de escrever o nome. Pela escrita, a voz poética faz uma alusão à presentificação do poder e da ocupação desse governo. O “país ocupado”, então, é real na medida em que escreve seu nome nos rostos, talhando-os pela miséria e pela alienação.

A penúltima estrofe reforça a condição em que essa gente vive, “Ignorada e pisada / Como a pedra do chão”. A comparação entre o povo e a pedra mostra o processo de reificação dessa gente, tratada como objeto, privada de direitos básicos e controlada ideologicamente. A “coisificação” do povo indica de forma mais intensa o modo como essa população é tratada, sendo “humilhada e calcada” – termo esse que significa literalmente aquilo em que se pisou com força, que se comprimiu Nesse verso, os dois particípios, na condição de adjetivos, mostram uma situação abstrata de sentimento (a humilhação) e uma ação concreta (ser pisado com força), o que sugere esse caráter ambivalente do povo, visto ora como gente, ora como coisa.» 

Adaptado de: “Poema-resistência: a denúncia e o combate às mazelas sociais na poesia de Carlos de Oliveira e Sophia de Mello Breyner Andresen”, Nathália Macri Nahas. EOLLES Identités et Cultures n.º 9, 2018

   

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“Esta gente, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-01. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/esta-gente-sophia-andresen.html


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