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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Poema à mãe, Eugénio de Andrade


 

POEMA À MÃE

 

No mais fundo de ti,

eu sei que traí, mãe.

 

Tudo porque já não sou

o menino adormecido

no fundo dos teus olhos.

 

Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais.

 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura.

 

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos.

 

Mas tu esqueceste muita coisa;

esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

 

Olha — queres ouvir-me? —

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

 

ainda oiço a tua voz:

Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal…

 

Mas — tu sabes — a noite é enorme,

e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

 

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas.

 

Boa noite. Eu vou com as aves.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 



 

Linhas de leitura do “Poema à mãe”, de Eugénio de Andrade

O poeta sente-se dividido entre a necessidade vital de cortar o cordão umbilical que prendia a criança à esfera protetora da mãe e a pena de ter de o fazer.

Por isso, o seu discurso é meigo, persuasivo, justificativo, e não um grito impetuoso de adolescente que rompe abruptamente com as amarras da servidão.

O fantasma da traição filial persegue o sujeito, que se debate com a dificuldade de se desembaraçar do abraço superprotetor e narcísico de quem devia conceber a maternidade como uma dádiva ao mundo e não como a posse egoísta de um objeto. Daqui a consciência da relação filial como um amor infeliz (v.11), em face da incompreensão do natural crescimento. As queixas, ainda que duras (v. 10), acerca dessa incompreensão, expressas através de imagens visuais do retrato adormecido (v. 4) e da perda das rosas brancas no retrato da moldura (vv. 12-13), são compensadas pela reiteração de fidelidade filial, apesar das mudanças verificadas; «às vezes ainda sou o menino / que adormeceu nos teus olhos; // ainda aperto contra o coração / rosas tão brancas / como as que tens na moldura.» (vv. 23-27)

As rosas brancas da inocência, se bem que perdidas, ainda são nostalgicamente recordadas, juntamente com os sinais auditivos da voz materna, associada à memória do conto popular: «ainda oiço a tua voz: Era uma vez, uma princesa».

E, apesar do impulso natural de crescer e da sedução dos novos «leitos onde o frio não se demora» (v. 7) apesar da imensidade da noite, a emancipação adolescente é negativamente conotada com a exploração dos olhos pelas aves (v. 34).

Por isso, ao sair da moldura (v. 33) do quadro infantil, ao deixar as rosas (v. 37) da inocência, ao partir com as aves (v. 38), o sujeito guarda no seu interior a voz materna como símbolo da persistência de um passado. 

(Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 122-123)

 ***

Note que a diferença fundamental é a atividade passada do Eu/Tu em confronto com a fixidez (confinada ao espaço da «moldura») do presente.

Note o conservar do passado «dentro de mim» (v. 36), ou seja, a transformação dada apenas como exterior («todo o meu corpo cresceu» (v. 32)). Assim se justificará a presença dessa mãe irremediavelmente perdida, mas mantida presente, como a chama de Vesta1, em toda a obra de Eugénio de Andrade.

(In Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 76)

__________

Vesta – brilhante e pura como a chama que a simboliza, é a mais bela das divindades romanas. Para os Latinos personifica a Terra e o Fogo; mas os Romanos conservaram-lhe apenas a segunda atribuição, reduzindo-a, todavia, ao lume exclusivamente familiar e dos templos. (in Mitologia Geral I, Mª Lamas, Ed. Estampa, 1991, p. 362)

 

 

Maria dos Anjos Fontinhas
(mãe de Eugénio de Andrade)

 

Texto de apoio

O trabalho contínuo de transubstanciação que a poesia eugeniana realiza da própria sensação de perda do instante − frequentemente agregada à dor da separação da mãe − revela-se em imagens fugidias e evanescentes como essa (bem como os “sonhos tresmalhados” do poema), ou como, por exemplo, as “pedras” lançadas ao horizonte em “Abril”, poema imediatamente posterior a “Os amantes sem dinheiro”, no qual novamente encontramos uma criança em meio às primeiras descobertas:

Abril

Brinca a manhã feliz e descuidada,

como só a manhã pode brincar,

nas curvas longas desta estrada

onde os ciganos passam a cantar.

Abril anda à solta nos pinhais

coroado de rosas e de cio,

e num salto brusco, sem deixar sinais,

rasga o céu azul num assobio.

Surge uma criança de olhos vegetais,

carregados de espanto e de alegria,

e atira pedras às curvas mais distantes

– onde a voz dos ciganos se perdia.

(ANDRADE, 1966, p. 66)

Embora o cenário seja de infância e de êxtase paradisíaco, em que a própria manhã de “Abril” brinca junto à criança, enleada aos elementos da paisagem “no cio”, há o contraponto da fugacidade do tempo. A estrada impõe a movimentação do espaço e nela “ciganos” passam a cantar, cujas vozes já se perdem na “curva”. “Ciganos”, sem morada permanente, são passageiros como as “aves” e, no poema, produzem música que se confunde com imagem, já que o menino lança pedras ao espaço como se pudesse, literalmente, enxergar o som subindo aos ares. Música e imagem são novamente distinguidas como unidades essenciais da poesia e, desintegradas aqui, operam, assim como a “ave” no poema anterior, um retorno à enformação básica da palavra poética, permitindo que o leitor tenha acesso à emoção pura, à intuição, a uma dada excitação espiritual ou perceção sensorial que estão na base de qualquer formação simbólica.127

Desse modo, o poema poderia sugerir a visão do menino-poeta diante da descoberta de sua vocação, que atira pedras à música-imagem, como se pudesse tocá-la, e vislumbra um horizonte em ascensão, desmanchando a plenitude de “abril à solta nos pinhais”.

Dentre todas essas imagens fluidas e recorrentes, a “ave”, sendo o elemento nuclear nesse livro, encaminha, assim como o “fruto” no volume anterior, a uma visão da conceção poética eugeniana. Se considerarmos a themata da arte poética tal como listada por Lubomir Dolezel128, a “ave” oferece uma reflexão bastante vasta sobre os domínios e alcances da linguagem poética, além de apontar para o problema da criatividade, já que ela frequentemente se associa à mãe, figura identificada, desde o prefácio, como principal motivação do poético nesse segundo livro da coletânea.129

No quarto poema do livro, “Canção para minha mãe”, em que a figura materna é diretamente nomeada, encontramos novamente a imagem de um pássaro, porém ligado agora a uma cena de outono e esterilidade − ainda que a criança apareça juntando os cabelos destrançados da mãe, triste a cantar. Dos braços dessa mulher escorriam “frutos maduros de outono” e “águas mortas de abandono”: “Era o tempo das gaivotas / mas o mar tinha secado”, e depois: “Gaivotas não as havia / e o mar tinha secado.” (1966, p. 67).130

O ambiente de esterilidade e ceticismo também está presente em “Apenas um rumor”, poema 20, em que a “palavra” é equiparada ao “rumor” de um bando de “gaivotas”:

Apenas um rumor

... E no teu rosto aberto sobre o mar

cada palavra era apenas o rumor

de um bando de gaivotas a passar.

(ANDRADE, 1966, p. 88)

A expressão adverbial “apenas” denota a fragilidade e talvez a impermanência do canto e do instante pleno. Esse poemeto assemelha-se aos versos do poema 19, intitulado “Outro poema para o meu amor doente”: “Outono − pássaro de melancolia/ num céu sem cor que não promete nada” (1966, p. 87), em que o “céu”, como o “mar” do poema acima, afigura-se como espaço de abertura, mas que, desta vez, não encontra o fluir expansivo da “ave”.

Em “Canção breve”, encontramos uma referência indireta aos “gestos” do poema “Os amantes sem dinheiro”, agora inseridos no contexto de um amor triste e antigo, que poderia muito bem incluir a relação materna:

Tudo me prende à terra onde me dei

[...]

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança ou o calor

de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

(ANDRADE, 1966, p. 71)

“Amor a escorrer melancolia” lembra a imagem da mulher triste de “Canção para minha mãe”, de cujos cabelos, braços e pernas também escorriam, como vimos, elementos melancólicos, como “frutos de outono” e “águas mortas de abandono”. Os “dedos com restos de ternura” e o “triste amor que há em saber que a vida pouco dura” trazem à cena a imagem do pássaro a nascer dos dedos dos amantes e a sensação de passagem e transformação que o poema “Os amantes sem dinheiro” suscita, de modo que, tanto naquele quanto neste poema, a figura materna permanece como elemento fulcral, mesmo quando não nomeada.

Do mesmo modo, “Elegia”, poema 13, parece se dirigir à mãe e às lembranças desse amor doído, já que estabelece diálogo direto com “Poema à mãe”, 15 do livro:

[...]

Ainda sabemos cantar.

Só a nossa voz é que mudou:

somos agora mais lentos,

mais amargos,

e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha

de um corpo a latejar de plenitude.

Tu quebraste-lhe o ritmo

ao partires um a um

os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:

setembro traz ainda

um fruto em cada mão.

Mas os homens, as aves e os ventos

já não bebem em ti a direção.

(ANDRADE, 1966, p. 77)

Novamente há alusões aos “gestos”, porém aqui acompanhados de ceticismo e melancolia. As “aves” reaparecem, assim como os “ventos” e os “frutos” do poema de abertura do livro (“Conselho”), entretanto, já deslocados do antigo e prometido furor poético, apontando agora para os desgastes dos mecanismos outrora associados à plenitude na infância e à relação materna: “Os homens, as aves e os ventos/ já não bebem em ti a direção”.

O primeiro verso do trecho selecionado acima também poderia sugerir relações com a mãe do poema, frequentemente associada à “primeira música” que tanto motiva a gênese de sua poesia. Contudo, as condições favoráveis à poesia agora são descritas em termos de cansaço e esgotamento. Há uma mudança de direção dos mecanismos de inspiração. A “mãe” não provê mais o “fruto”, embora ele ainda esteja presente em “cada mão”. Há uma certa “quebra de ritmo” e quebra dos “ramos da juventude” que oferecem agora ao eu lírico uma reflexão dolorida sobre os efeitos da velhice, do esquecimento, da distância natural entre mãe e filho.

Em “Poema à mãe”, 15 do livro, as queixas sobre a relação viciada entre mãe e filho são explícitas: o sujeito lamenta o esquecimento por parte de ambos, em que talvez haja se perdido o conhecimento do “verdadeiro ser” que os dois experimentaram intensamente durante o período pleno de descobertas e encantos. Esse conhecimento profundo e rico já não cabe mais na imagem rígida e intacta de um “retrato”.

menino que “ama as rosas brancas”, signo de pureza que remete à inocência da infância131. Ele ainda ouve a “voz”, o cantar da mãe, mas o presente é distinto e requer novos gestos. O sujeito então se despede e, em um ato de transfiguração de signos do passado, ou de rasura do “retrato”, permuta “as rosas brancas” por “aves”. Eis dois signos que se associam tanto à relação materna, como vimos, quanto ao cantar poético132, sempre vinculado à questão da memória neste livro.133

A memória é referida por meio de um paradoxo: de um lado é representada por retratos, recordações rígidas e imóveis que mal interferem no presente; e de outro por certas imagens “móveis” do passado, como as “aves” a se desprenderem dos gestos, capazes de evocar certa lembrança do poético, da vivência da totalidade dos elementos, da movimentação da palavra, cuja natureza metamórfica atualiza a experiência e supera a corrosão do tempo, apreendendo a multiplicidade da vida. Assim, por meio de um signo concreto como “aves”, a poesia eugeniana sugere o abstrato material da memória em suspensão, capaz de ser mobilizado pelo fazer poético. Nesse espaço silencioso e confuso “voam” imagens e sons primitivos que segredam os primeiros milagres. No impreciso ponto de encontro entre o presente e o passado acham-se as aves suspensas de outrora, vigiando a promessa de um dia se realizarem.

Ao despedir-se da mãe e dizer que segue “com as aves”, o eu lírico toma a determinação de sair da “moldura” do retrato para transfigurar-se em canto. Afirma a sua vocação de poeta e opta pelo caminho incerto e instável das “aves”, porém de imensurável libertação.

Por conseguinte, na imagem que a mãe tem do filho já não cabe o erotismo de “leitos onde o frio não se demora”, tanto quanto a perda da juventude da mãe se tornou insuportável ao filho (como o verso “tu quebraste [...] os ramos todos da tua juventude” do poema anterior também sugere). Contudo, tal esquecimento (tanto da mãe que esquece que o filho cresceu quanto do filho que também esquece que ela envelheceu) é superado pelo canto: “Queres ouvir-me? / Às vezes ainda sou o retrato [...] / ainda aperto contra o coração rosas tão brancas [...] / ainda oiço a tua voz. / Não me esqueci de nada mãe”.

O eu lírico simbolicamente mata a mãe, deixando-lhe as “rosas brancas”, como em um ritual fúnebre, mas somente para poder rememorar e recriar tudo de novo no espaço do poema. Na permuta das “rosas brancas” por “aves”, o canto atualiza a rica experiência do passado, mobilizando a memória, que oferece resistência à implacabilidade do tempo quando vivida de maneira a atuar sobre o presente. Assim, o canto pretende reconfigurar o passado e atribuir-lhe novos sentidos pertencentes à vida adulta, de modo a manter-lhe a potência criadora.

Em Eugénio de Andrade, as representações da memória confundem-se com as representações da palavra poética, o que evidencia a conexão profunda entre o processo de rememoração e o fazer poético. A palavra depende da plenitude vivida pelo sujeito, que, motivado pelo amor e pela entrega, colhe os registros de um presente absoluto. A memória preserva os instantes ontológicos − pois é a memória que constitui o ser − , e o germe da palavra nasce para o poeta: levanta voo como aves, penetra os espaços, assim como a “luz”, “o rumor”, “o canto dos ciganos” sumindo ao longe. Das imagens revisitadas pelo sujeito poético depreendem-se elementos fugazes, que partem do momento registrado para penetrar em uma espécie de hiato que a memória produz na relação entre o passado e o presente.

É a consciência do próprio ato poético que estabelece a união ontológica entre os tempos de outrora e os tempos recentes, para que o sujeito instaure o sentido de sua própria existência. A confeção da poesia é feita a partir dessas correspondências estabelecidas pelo sujeito poético, que, ao atuar sobre as memórias, resgata esses elementos transitórios como elos entre o passado e o presente, e reconstitui, em seu cantar, a unidade perdida, experimentada na infância.

Desse modo, a palavra poética marca essa ausência, ao mesmo tempo que refaz o passado paradisíaco: preenche e produz ausência, sempre. Eugénio de Andrade firma a sua vocação de poeta ao reconstituir-se como sujeito liberto da mãe e ao tomar consciência do próprio ato do fazer poético, o qual demanda mobilização da memória e atuação sobre ela. É para esse novo espaço de consciência que segue o poeta em perpétua busca de sua própria sentença: “Boa noite. Eu vou com as aves!”. 

Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012

  

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Poema à mãe, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-16. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/poema-mae-eugenio-de-andrade.html



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