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domingo, 25 de dezembro de 2022

Ascensão de Vasco da Gama (Mensagem, Fernando Pessoa)

 Mensagem, de Fernando Pessoa

Segunda Parte - Mar Português

Possessio maris



 

IX

ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA

 

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase , à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

 

10-1-1922

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2402

 

 

I - Leitura orientada do poema “Ascensão de Vasco da Gama”, de Fernando Pessoa:

O poema “Ascensão de Vasco da Gama” tem duas estrofes. A primeira tem sete versos e a segunda tem três. Vasco da Gama é um marco importante nos descobrimentos marítimos portugueses. Com ele, o grande império marítimo toma forma e tudo o que era incerto e duvidoso ganha formas precisas. Faz parte do grande ciclo das conquistas ultramarinas: iniciam-se as guerras que levariam à tomada de posse dos novos territórios descobertos. De salientar que, neste poema, não se fala propriamente da figura histórica, mas sim da sua “ascensão”. Somando todos os versos presentes neste poema, encontramos o número dez (7 + 3 = 10)

Na iconografia cristã existem numerosas representações do homem ascensional; símbolo do levantar voo, da elevação ao céu depois da morte. (…) Todas estas imagens representam uma resposta positiva do homem à sua vocação espiritual e, mais do que um estado de perfeição, é um movimento em direção à santidade. (Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain,ra, Artur, Dicionário de Símbolos, Trad. de Rodriguez, Cristina e Guerra, Lisboa: Editorial Teorema, 1994)

A palavra “ascensão” fala de um Vasco da Gama já não terreno, mas que iniciou o seu percurso em direção à santidade. Em Os Lusíadas, também Camões apresenta os homens a ascenderem ao estatuto de semideuses, confraternizando e contraindo matrimónio com as ninfas, numas bodas onde o terreno se mistura com o celestial.

Todo o início é involuntário e duvidoso e estes conceitos poderão ser aplicados a estes três poemas.

Quando D. Henrique fundou o Condado Portucalense não sonhou sequer que, embrionariamente, estava ali o futuro reino de Portugal. Quando Vasco da Gama iniciou a viagem marítima para a Índia não alcançou as reais consequências futuras dos seus atos, tendo por isso iniciado a sua derradeira viagem rumo ao divino. O poema “O dos Castelos” parece marcar o tempo antes da ação, podendo associar-se ao tempo antes da fundação do reino de Portugal (Conde D. Henrique) e antes da fundação do grande império ultramarino (Vasco da Gama).

A irregularidade estrófica destes poemas reforça esta ideia de caos inicial, de uma desorganização e desorientação que precedem o aparecimento de grandes realizações.

 

Maria Isabel Coelho, Mensagens de Mensagem, de Fernando Pessoa. Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2010

 


II - Questionário sobre o poema “Ascensão de Vasco Da Gama”, de Fernando Pessoa:

O poema que acaba de ler é dedicado a Vasco da Gama.

1. Refira e interprete os elementos textuais que o presentificam no poema.

2. A ascensão do herói aos céus vai sendo gradativamente replasmada na primeira estrofe. Baseando-se nos verbos, advérbios e locuções adverbiais, explicite a verdade desta afirmação.

3. No poema Horizonte lê-se:

Ó mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Transcreva um verso que mostre que esta situação do “mar anterior a nós foi ultrapassada.

4. A “chegada” aos céus provoca manifestações/reacções várias. Refira-as.

5. Numa composição que não deve ultrapassar as oito linhas, confronte este momento da Mensagem em que o “céu se abre” com a chegada dos “segundos Argonautas” à Ilha dos Amores no canto IX de Os Lusíadas.

 

Chave de respostas:

1. Os medos “ladeiam-no” (v. 6) a este “Argonauta”(v. 10) que encontrou o seu velo de ouro.

2. Explicitação da afirmação A ascensão do herói aos céus vai sendo gradativamente replasmada na primeira estrofe:

• Do espanto/expectativa dos Deuses — “suspendem” e ‘pasmam” (vv. 2 e 3);

• à progressiva ascensão — “vai ondeando” (v. 4), “primeiro” (v. 5), “depois” (v. 5);

até à assunção plena da chegada aos “céus” — “ao longe” (v. 7), “ruge” (v. 7).

3. Confrontar o v. 6: “Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro”

4. E ao longe, o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, (...) o pastor (pastor-poeta) gela, (...) em êxtase à luz de mil trovões.

Nota: Nas epifanias de várias religiões, os deuses manifestam-se pela luz e pelo som (ouro, fogo, trovões...).

5. Entre outros aspetos deve considerar n’Os Lusíadas:

• a descrição do espaço e a sua relação com o visualismo/naturalismo da Renascença;

• o prémio dos Argonautas;

• o prémio do Gama como umvelo de ouroem múltiplas dimensões.

No poema Ascensão de Vasco da Gama deve considerar:

• a abstracção própria do simbolismo (“sugerir: eis o sonho”);

• a ligação da aventura da viagem à aventura da escrita.

(in Preparar exames nacionais 12.º Português B, Areal Ed. 2003, p. 7 e p. 25)

 

Vasco da Gama - 5.º Centenário do nascimento (1969)


  

III – Comentário de texto

Proceda a um comentário crítico do poema “Ascensão de Vasco da Gama”, tendo em conta os seguintes tópicos de análise:

- significado da luta «Deuses da tormenta»/ «gigantes da terra»;

- sentido de véus/assombro;

- teofania (versos que a denunciam);

- relação Gama/Argonauta;

- imortalização do herói;

- relação abismo/alma.

(Artur Veríssimo, Ler a Mensagem de Fernando Pessoa – curso n.º 21/2001 do Centro de Formação de Associação de Escolas de S. Miguel e Santa Maria)

Vasco da Gama - selo de Portugal, 1945

 


IV - Textos de apoio

Vasco da Gama (1468?-1524)

Vasco da Gama nasceu em Sines.

Por ser perito em navegação, D. João II encarregou-o de várias missões de responsabilidade. D. Manuel nomeou-o capitão da armada de descobrimento do caminho marítimo para a índia, que partiu do Tejo em 8 de julho de 1497. Enfrentando as primeiras manifestações da hostilidade muçulmana no sultanato de Moçambique, não conseguiu que o rei de Calecute aceitasse as propostas de aliança e trato comercial feitas através da carta de D. Manuel, devido à oposição dos mercadores muçulmanos residentes na Corte do Samorim.

Partindo da ilha de Angediva em 5 de outubro de 1498, após uma toma-viagem acidentada por calmarias e doenças, desembarcou finalmente em Lisboa em fins de agosto de 1499, sendo recebido apoteoticamente pelo rei e pelo povo.

D. Manuel cumulou-o de honras e dádivas, concedendo-lhe o título de Dom e nomeando-o almirante do mar da Índia. Em 1502, [...] 0 almirante foi enviado de novo a Calecute, onde [...] firmou aliança com os reis de Cochim e Cananor e lançou as bases da hegemonia portuguesa no oceano Índico. [...]

Voltou à Índia em 1524 [...] com o cargo de vice-rei. [...]. Adoeceu gravemente em Cochim, onde faleceu a 24 de dezembro desse ano.

 

in Dicionário de História de Portugal. Porto, Figueirinhas, 1979


Vasco da Gama (1469-1524), selo de Portugal,1992

 

IX - «Ascensão de Vasco da Gama»

Sagitário (22 de novembro - 20 de dezembro) é o símbolo da dualidade entre os instintos («gigantes da terra») e as aspirações superiores («deuses da tormenta»). Do ponto de vista cosmogónico, é o regresso do homem a Deus, percetível no título do poema e na manifestação clássica da divindade: «o rastro ruge em nuvens e clarões» e «à luz de mil trovões» (M, 69). E poderíamos ficar por aqui.

Mas não é despiciendo notar a coincidência desta caracterização do sagitariano com o conjunto de valores para que o poema estudo nos reenvia:

[...] na origem do tipo sagitariano, distingue-se um Eu em expansão ou em intensidade, que procura os seus próprios limites e aspira a ultrapassá-los, e isso sob pressão de uma espécie de instinto de força e de grandeza. Daí a aspiração a uma certa elevação ou dimensão que ele procura num arrebatamento, que pode ser um impulso de participação, de assimilação ideal à vida coletiva, ou, pelo contrário, revolta estimulante contra um poder que tem de ser dominado [...] (cf. CHEVALIER/GHEERBRANT, 581).

Note como o texto se aplica, grosso modo, a Vasco da Gama, pelo que esta figura representa de superação dos próprios limites, pelo instinto de força e de grandeza, pela elevação, pelo que nela se lê de aspiração individual e coletiva.

Constitui, por isso, um convite à exploração das profundezas da alma, para a libertar dos medos e soltar-lhe a imaginação e o sonho, já que a alma do herói é pertença do nosso inconsciente coletivo, como a simbologia do abismo, presente no último verso, denuncia.

Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000, p. 150

 


moeda portuguesa de 200$00


Argonauta/Gama (Vasco da)

O termo aparece ligado a Vasco da Gama e significa «navegador arrojado». Porém, temos de, metaforicamente, associá-lo aos tripulantes da nau Argo («os Argonautas»), que, segundo a lenda grega, foram, sob o comando de Jasão, a Cólquida em demanda do velo de ouro, símbolo do poder e da prosperidade. Uma viagem de heróis eleitos, recheada de peripécias, bafejada pelos deuses.

Uma das façanhas mais conhecidas de Jasão é a de ter feito a nau Argo passar incólume entre os dois rochedos flutuantes que, à entrada do mar Negro, chocavam, esmagando entre eles as naus. Note como este verso do poema «Ascensão de Vasco da Gama» poderia servir também para ilustrar aquela proeza do Argonauta grego:

Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro

(M,69)

A aproximação simbólica da viagem de Vasco da Gama à viagem dos Argonautas da lenda grega surge já n'Os Lusíadas. Os marinheiros portugueses, momentos antes da partida,

Foram de Emanuel remunerados,

[…]

E com palavras altas animados

Pera quantos trabalhos sucedessem.

Assi foram os Mínias ajuntados,

Pera que o Véu dourado combatessem,

Na fatídica Nau, que ousou primeira

Tentar o mar Euxínio, aventureira.

(C. IV, 83)

Tornando à Mensagem, a ideia de Argonauta liga-se à ideia de ascensão, i. e., à superação espiritual das condições materiais da existência. Vasco da Gama é alma, torna-se símbolo e arquétipo e, como tal, ganha direito à existência eterna (v. Ocultismo). A sua alma penetra no abismo dos céus, sob o pasmo e o assombro de todas as forças cósmicas:

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra

Suspendem de repente o ódio da sua guerra

E pasmam.

(M,69)

É em êxtase que o pastor (imagem repleta de simbolismo religioso) vê superada a sabedoria terrena e os segredos encantatórios da sua flauta diante da teofania (manifestação da divindade) que acompanha a ascensão de Vasco da Gama: «vê, à luz de mil trovões / O céu abrir o abismo à alma do Argonauta) (M,ibid.); o pastor assiste (e nós com ele), dir-se-ia, à integração suprema do herói na união mística.

Bibl.: Jöel Schimdt, «Argonautas», in Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Edições 70, 1994, pp.41-42.

 

Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 11-12

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


Ascensão de Vasco da Gama (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/ascensao-de-vasco-da-gama-mensagem.html


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