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sábado, 3 de dezembro de 2022

Cantos da Tristeza / Setentrional, de Cesário Verde


 

 

Cantos da Tristeza1

 

I




II




III




IV




V




VI




VII




VIII




IX




X




XI




XII




XIII




XIV




XV




XVI




XVII




XVIII




XIX




XX




XXI




XXII







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Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.

Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que morámos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.

Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com prantos uma acácia.

Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.

Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.

Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados.

E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos.

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borboletas doudejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes.

E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas.

Quando, Helena, bebíamos, curvados,
As águas nos ribeiros remansosos,
E, nas sombras, olhando os céus amados
Contávamos os astros luminosos.

Quando, uma noite, em êxtases caímos
Ao sentir o chorar dalgumas fontes,
E os cânticos das rãs que sobre os limos
Quebravam a solidão dos altos montes.

E assentados nos rudes escabelos,
Sob os arcos de murta e sobre as relvas,
Longamente sonhamos sonhos belos,
Sentindo a fresquidão das verdes selvas.

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos
Que os rouxinóis teciam nas olaias.

E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais.
Devolvia-te os beijos que me deras.

Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda.
                                *
Talvez já te esquecesses dos poemetos,
Revoltos como os bailes do Casino,
E daqueles byrónicos sonetos
Que eu gravei no teu peito alabastrino.

De tudo certamente te esqueceste,
Porque tudo no mundo morre e muda,
E agora és triste e só como um cipreste,
E como a campa jazes fria e muda.

Esqueceste-te, sim, meu sonho querido,
Que o nosso belo e lúcido passado
Foi um único abraço comprimido,
Foi um beijo, por meses, prolongado.

E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia.

E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.

 

 

Cesário Verde

Porto, Diário da Tarde, 14 de fevereiro de 1874

Edição utilizada: “II - Poesias não incluídas em O Livro de Cesário Verde” in Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983, pp. 150-154

 


*** 

 

Esta poesia, amputada de 9 quadras, que se assinalam aqui, foi publicada em O Livro de Cesário Verde com o título «Setentrional». Acontece que todas as quadras dadas a lume por Silva Pinto - e só essas - haviam sido já transcritas num artigo da autoria do organizador de O Livro sob o título de «Cesário Verde», estampado em Diário da Tarde (20-03-1874), ou seja, pouco mais de um mês após a publicação integral dessa poesia no mesmo jornal. Em suma: em 14 de fevere1ro de 1874, Cesário publica a poesia Cantos da Tristeza, tal como agora se reproduz; em 20 de março do mesmo ano, sem qualquer menção a esse respeito, Silva Pinto exemplifica a poesia do seu amigo com as mesmíssimas quadras que 13 anos depois haveriam de aparecer em O Livro.

Nota de Joel Serrão, na edição de Obra completa de Cesário Verde. Lisboa, Livros Horizonte, 1983 (4.ª ed.), p. 150.

 

Helena de Tróia, Robert Wise (1956)


 

Numa perspetiva ainda romântica, Cesário vê no campo uma fonte de prazer único: o campo permite a aproximação entre dois seres.

A cidade, em contrapartida, é vista como um espaço de Morte, de Sofrimento, de Solidão calada.

Aliás, esta dicotomia campo/cidade é acentuada pelo contraste entre o tempo presente (o tempo da narrativa ou da escrita do poema) e o passado (o tempo recordado no poema): o presente é triste, o passado foi feliz, Dirigindo-se à mulher, o sujeito poético evoca o tempo feliz em que eta fugiu com ele da "Babel" e viveu só com ele, no campo. A fuga da cidade está, assim, imediatamente associada à felicidade amorosa passada, vivida no campo e recordada no poema na imagística tradicional do campo romântico: "brancas noites de mistério", "doce aragem", "borboletas doudejantes", "os meigos ditirambos / Que os rouxinóis teciam nas olaias".

No campo, o sujeito poético e a amada estiveram "unidos ambos / Num amor grande como um mar sem praias". Esta imagem, que caracteriza a experiência do amor, em termos espaciais, como uma ausência de limites, sugere que, ao deixarem a cidade, os amantes escaparam ao confinamento que a cidade significa e que, ao fugirem para o campo, entraram num espaço intemporal, livre de todos os confinamentos.

Mas o sujeito poético regressou á cidade e a amada entrou num equivalente "claustro das Fiéis emparedadas". E nota-se um paralelismo entre a situação dos dois:

- a amada é emparedada num claustro; o eu regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade;

- ela sepultou-se viva; ele anda na cidade como um morto;

- ela escondeu a face num véu negro; ele passa numa cidade que é sombria.

Na última quadra, há uma súbita viragem de tom: a imagem irónica de um frade. Esta abrupta mudança é característica da poesia da juventude de Cesário, onde a ironia é usada como um travão ao sentimentalismo romântico. Traia-se de um desejo de autocorreção emocional num poema cujo tom é predominantemente romântico.

Nota: Veja-se que ao contrapor-se cidade e campo não se está a contrapor duas realidades objetivas. Trata-se de dois espaços vividos subjetivamente porque relacionados com experiências individuais subjetivas.

 

MACEDO, Helder. Nós: uma leitura de Cesário Verde. 4.ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999 (adaptado)

 

Busto de Helena de Troia, Antonio Canova. 
Victoria and Albert Museum, Londres


 

O poema “Cantos da Tristeza”, também conhecido n’ O Livro de Cesário Verde com o título de “Setentrional”, introduz a dicotomia cidade-campo na poesia de Cesário. […]

A primeira quadra introduz a questão da solidão. Apesar da possibilidade de a leitura considerar um monólogo dirigido ao Outro (no caso a ‘triste Helena’), é uma rememoração que já se sabe ausente de solidariedade. E esta questão repetir-se-á por diversas vezes: “Talvez já te não lembres, triste Helena,” / “Talvez já te não lembres, pesarosa,” / “Talvez já te esquecesses, ó bonina”, só para citar as três primeiras quadras. Das vinte e duas quadras (considerando o poema na integra), oito delas tem, literalmente, expressões que demonstram que o Outro já se esqueceu ou não se lembra mais.

Este Outro, nomeado Helena por este Eu reminiscente, é descrita como uma “Mulher como não há nem na Circássia”, de “boca purpurina”, “cabelos de âmbar, desmanchados”. O aspeto da cor do cabelo é repetido na quadra adiante: “Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,/ Pousarem borboletas doudejantes/ Nas tuas formosíssimas madeixas,/ Daquela cor das messes lourejantes”. Ela acompanha o Eu nesta fuga da Babel,70para o locus amenus que o campo representa, descrito como “terra amena”, de “ribeiros remansosos”, das “verdes selvas”, e no “tempo da colheita dos bons vinhos”, do “tempo em que eu vivia nos teus seios/ quando as aves cantando entre as ramagens/ O teu nome diziam nos gorjeios.” […]

Encarando-se então que tais imagens poéticas são fugas não só da Babel-cidade, mas também desta Babel-homem, em direção à conciliação com o Outro, tem-se o testemunho deste desconcerto duplo: ao mergulhar em si, ele encontra não a saudade de um passado objetivamente real, mas o devaneio que romantiza estas recordações, e ao mesmo tempo, coloca em dúvida o caráter de tais lembranças enquanto ‘sinceras’.

 

André Ozawa, Cesário Verde e o desconcerto do eu. São Paulo, FFLCH-USP, 2008

 

Helena de Tróia, Anthony Frederick Augustus Sandys, 1866 
(Walker Art Gallery, Liverpool, Reino Unido)


 

A última estrofe escrita no tempo passado [estrofe XX], declara a razão da separação dos amantes. A mulher entrou num equivalente claustro das Fiéis emparedadas e escondendo o seu rosto de marfim/No véu negro acabou por ser sepultada. Podemos ver também um certo simbolismo no seu desaparecimento. Ela era uma flor, bonina, que passou com o seu amado até os momentos da brisa outoniça, mas é certo que uma flor dessas não é capaz de sobreviver o tempo frio de inverno, e assim, é predestinada a desaparecer. Neste sentido o véu negro pode implicar uma mortalha mas também uma capa de terra que sepulta as flores mortas. É preciso acrescentar que podemos sentir uma certa passividade desta mulher ou pelo menos resignação com o seu destino.

Os amantes fugiram juntos da cidade mas ele sozinho regressou ao lugar ausente de amor e neste paralelismo metafórico do poema podemos observar que “a amante é emparedada num claustro, o poeta regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade; ela sepultou-se viva, ele anda na cidade como um morto; ela escondeu a face num véu negro, a cidade onde ele passa é sombria; finalmente, a resignação religiosa atribuída à amante corresponde ao não menos religioso cálix da agonia prelibado pelo poeta na cidade.” (MACEDO, Helder: Nós uma leitura de Cesário Verde. Editorial Presença, Lisboa, 1999, p. 52).

Na última estrofe o eu lírico confessa que se pudera na terra achar suplícios, também se faria gordo frade e podemos dizer que, embora ele passasse pela cidade como a Morte, acha um certo otimismo na vida que lhe impede ultrapassar as paredes da cidade, para as paredes de um claustro. Ele não se resigna com o seu destino como o fez ela. Fugindo ao sentimentalismo, termina o poema virando a última estrofe para a ironia. Segundo Helder Macedo, este procedimento é “uma táctica de choque que sacode o leitor desprevenidamente embalado no sentimentalismo fácil.” (ibidem, p. 54). Podemos dizer que já neste poema imaturo, Cesário sente uma necessidade de se afastar do Romantismo. A última quadra representa uma “autonegação de uma poesia sentimental por um desfecho de farsa.” (SACRAMENTO, Mario: Lírica e dialectica em Cesário Verde – folheto. Separata dos nº 163, 165 e 166 da revista Vértice, p. 4).

Segundo Joel Serrão este poema é “a evocação de um amor quase infantil desenrolado no ambiente campesino. Os adolescentes teriam vivido uma experiência de que os ribeiros remansosos, os astros luminosos, o chorar das fontes, os cânticos das rãs, a fresquidão das verdes selvas comparticiparam largamente.” (SERRÃO, Joel: Interpretação, poesias dispersas e cartas. Editorial Minerva, Lisboa, 1957, p. 53). Esta opinião pode ser sublinhada não só pelo facto da idade do poeta, mas também por ele não ter feito neste poema nenhuma referência às qualidades pessoais da mulher mas, pelo contrário, há várias indicações às características físicas dela. A bonina “não tem personalidade verdadeira, somente uma identidade física, aliás estilizada e cheia de encanto.” (TORRES, Alexandre Pinheiro: A paleta de Cesário Verde, Estudos de literatura portuguesa. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, p. 61)

Neste poema, a cidade está presente só na medida em que evoca uma infelicidade que se opõe à felicidade dos momentos de campo que o poeta revive. O poeta remete-nos para uma cidade que ainda não é especificamente Lisboa, mas sim uma cidade moderna qualquer. Ao nomeá-la Babel, Cesário parece ver o campo como espaço positivo em contraste com a cidade, vista como lugar de vício ou de corrupção.

 

Olga Poláková, Mulher na poesia de Cesário Verde. Brno, Faculdade de Filosofia da Universidade de Masaryk - Instituto de Línguas e Literaturas Românicas, 2008

  

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Cantos da Tristeza / Setentrional, de Cesário Verde” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 03-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/cantos-da-tristeza-setentrional-de.html



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