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domingo, 4 de dezembro de 2022

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo, Alberto Caeiro




Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...

 

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. 

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10.ª ed. 1993).  - 32.

 

 

 

I - COMENTÁRIO DE TEXTO

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

  • oposição entre a "aldeia" e a "cidade";
  • importância do ato de ver;
  • recursos estilísticos relevantes;
  • traços da poética de Caeiro.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

  • Oposição entre a "aldeia" e a "cidade"

O poema organiza-se em torno da caracterização contrastiva da "minha aldeia" e das "cidades" ou da "cidade", caracterização essa que se desenvolve, porém, em termos inesperados. Assim:

- a "minha aldeia" é apresentada como lugar de eleição, na medida em que permite ao sujeito o grau máximo de visibilidade de "quanto da terra se pode ver do Universo" (v. 1); por esse motivo, ela supera o estatuto de povoação diminuta que por definição é o seu, tornando-se "tão grande como outra terra qualquer" (v. 2);

- a cidade revela-se limitativa, pois "as grandes casas" enclausuram o olhar, ocultam-lhe o céu e afastam-no da natureza (cf. vv. 7, 8), ou, por outras palavras, desapossam-nos da "nossa única riqueza", que "é ver" (v. 10).

Em suma, a cidade tem um efeito de fechamento e afasta "a vista" (v. 7) do "horizonte" e do "Céu" (v. 8), enquanto a aldeia propicia a abertura para o infinito ("Universo" - v. 1). Consequentemente, o poema associa, por um lado, cidade a pequeno e a pobre (vv. 9 e 10) e, por outro, aldeia a "grande" (v. 2) e, de forma implícita, a riqueza (v. 10), invertendo as noções tradicionais de aldeia e de cidade.

 

  • Importância do ato de ver

O desenvolvimento da oposição entre aldeia e cidade faz emergir, como ideia nuclear do poema, a importância do ato de ver, manifestada, desde logo, pela utilização de formas do verbo ver e de vocábulos com ele semanticamente relacionados ("vista", "olhar", "olhos" - vv. 7, 8, 9). Segundo o texto, a visão é um modo de conhecimento privilegiado, pois permite percecionar a imensidão do mundo, superando a dimensão física limitada do sujeito (vv. 3-4). Com efeito, é o olhar que determina a configuração do mundo e do próprio ser, na medida em que existe uma relação entre:

- a extensão do campo de visão e a do espaço em que o Eu se situa (cf. vv. 1, 2);

- o que o sujeito vê e a perceção que tem de si ("eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura..." - vv. 3-4);

- a possibilidade de visão e o valor da existência humana ("as grandes casas fecham a vista à chave", "Tornam-nos pequenos", "tornam-nos pobres", "a nossa única riqueza é ver" - vv. 7, 9, 10);

- …

 

  • Recursos estilísticos relevantes

São relevantes, entre outros, os seguintes aspetos estilísticos:

- presença de construções causais, evidenciando uma intenção explicativa do discurso ("Por isso", "Porque eu sou", "porque nos tiram", "porque a nossa única riqueza" - vv. 2, 3, 9,10);

- utilização da estrutura paralelística, amplificando a noção de perda ("Tornam-nos pequenos porque [...] / E tornam-nos pobres porque [...]" - vv. 9-10);

- recurso ao grau comparativo dos adjetivos com o intuito de caracterizar a "aldeia" por referência a outros espaços, realçando-se, por um lado, o nível idêntico de grandeza existente entre a "aldeia" e "outra terra qualquer" (v. 2) e, por outro lado, minimizando-se a vida na cidade para valorizar a vida na aldeia ("Nas cidades a vida é mais pequena / Que aqui na minha casa" - vv. 5-6);

- conjugação da metáfora ("fecham a vista à chave", "empurram o nosso olhar" - vv. 7-8) com a personificação de "casas" ("fecham", "Escondem", "empurram", "tiram"), para sublinhar a atrofia do ver como efeito do ambiente citadino;

- …

 

  • Traços da poética de Caeiro

O poema evidencia alguns dos traços representativos da poética de Caeiro. Exemplificando:

- apologia da visão como valor essencial;

- relação de harmonia com a Natureza;

- aparente simplicidade e natureza argumentativa do discurso poético, visível no recurso a uma linguagem corrente e a construções causais;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1999, 1.ª fase, 1.ª chamada)

 



II - QUESTIONÁRIO 

1. Mostre como a concepção do Universo é determinada pela imagem que o sujeito poético tem de si próprio.

2. Explicite a oposição entre a “aldeia” e a “cidadeexpressa no texto.

3. Identifique e aprecie o valor do deíctico presente na segunda estrofe.

4. Aprecie o valor expressivo da construção dos dois últimos versos do poema.

5. Classifique os articuladores de discurso sublinhados no texto.

6. Confronte o uso deste tipo de articuladores sublinhados no texto com a concepção de poesia que Alberto Caeiro defende na sua restante obra. Retire daí as devidas conclusões.

 

(Adaptado de Abordagens 12.º, Zaida Braga et alii. Porto Ed., 2005, pp.80-81)

 

Explicitação de cenários de resposta 

1. A imagem que o sujeito poético tem de si próprio é a de alguém que é do “tamanho do que ” e não do “tamanho da sua altura”.

Assim, o Universo pertence ao domínio do concreto, perceptível através dos sentidos, da visão; o Universo não é apenas uma construção abstracta e, por isso, ao sujeito poético apenas interessa a parcela do Universo que se vislumbra da sua aldeia. [Há uma ligação de contiguidade (osmose, interligação…) entre ambos.]

 

OU 

O sujeito poético, sendo sensacionista e dando primazia à visão, entende que infinito como o próprio Universo, pois não há nada a limitar as sensações que sente; nem a nível físico, pois não existem as “grandes casas” que “fecham a vista à chave”, nem a nível psicológico, pois o sujeito poético limita-se a ver a realidade que o rodeia sem racionalizá-la, nem criar pensamentos que o limitariam.

 

2. A aldeia aparece aqui como o espaço que possibilita a “visão” do Universo, enquanto na cidade “as grandes casas fecham a vista à chave”, “Escondem o horizonte” e “empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”. Assim, a cidade constrange, aniquila, porque nos tira aquiloque os nossos olhos nos podem dar”, tornando-nos “pobres porque a nossa única riqueza é ver”, enquanto a aldeia, porque nos deixa ver, nos enriquece através do contacto directo, da comunhão com o Universo.

 

OU

A “aldeia” é um cenário rico em sensações: é um espaço mais aberto, em comunhão com a Natureza e livre de barreiras para os sentidos. A “cidade”, por outro lado, limita as experiências sensoriais (com os seus edifícios que escondem o céu e o horizonte) e torna as pessoas mais distantes da Natureza.

 

3. O deíctico espacialaqui” sugere, para além da relação de proximidade entre o sujeito emissor do discurso e o contexto da sua produção, uma relação de afectividade possívelaqui” — na sua aldeia e na sua casa.

(Atenção: também existe o deíctico “deste” [“minha”] que no contexto tem o mesmo valor que o deíctico “aqui”)

 

 

4. Os dois últimos versos apresentam uma construção simétrica (“Tornam-nos pequenos porque (...)“; “E tornam-nos pobres porque (...)“) que, mais uma vez, e dentro da linha temática do poema, valoriza a importância daquilo que “os nossos olhos nos podem dar”, que “a nossa única riqueza é ver”. Saliente-se a expressividade da adjectivação (“pequenos”, “pobres”) que reforça esta última ideia. Note-se, ainda, a musicalidade presente nestes versos conseguida através do ritmo binário.

 

OU

Como conclusão do poema, os dois últimos versos completam um raciocínio silogístico:

1ª premissa: “sou do tamanho do que vejo” (v. 3).

2ª premissa: Não vemos o que devíamos ver (“nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar”).

Logo, somos pequenos e pobres (“tornam-nos pequenos […] / E […] pobres”).

Se a nossa única riqueza é ver e vemos pouco, logo somos pobres. É este o raciocínio que o poeta utiliza para justificar que a vida no campo é rica e na cidade é pobre.

 

 

5. POR ISSO (v. 2): locução subordinativa consecutiva.

COMO (v. 2), QUE (v. 6): conjunções subordinativas comparativas.

PORQUE (v. 3): conjunção subordinativa causal.

 

 

6. Caeiro defende que o ato poético deve ser tão natural como a própria Natureza, pelo que seria desnecessário trabalhar os versos como os artífices trabalham as suas obras. Assim, o poeta não deveria ocupar a mente com a especulação filosófica sobre as causas ou finalidades das coisas.

No entanto, há uma contradição entre os propósitos de Caeiro e a sua prática, na medida em que os articuladores de discurso utilizados neste poema estão ao serviço de um discurso complexo, filosófico onde se estabelecem as tais relações de causalidade / consequência (as relações comparativas de valor analógico-dedutivo).

 

OU

Este tipo de articuladores denota um raciocínio, um pensamento complexo, que vai contra  as ideias sensacionistas e panteístas defendidas por Caeiro na sua restante obra. Cria-se, assim, um paradoxo: o poeta critica a racionalização das coisas, mas para poder fazê-lo tem de servir-se dessa mesma racionalização. Pode-se, assim, concluir que Alberto Caeiro, apesar de tentar ser um sensacionista, não consegue sê-lo realmente, desviando-se da pureza das sensações e caindo nas “armadilhas” do pensamento racional.

 

 

Poderá também gostar de:

 

  • Intertextualidade com um poema do início do século XXI:

A minha casa tem uma varanda
Dela vejo um pedaço de mar
Copas de algumas árvores e
Quando as nuvens estão altas
Vejo mesmo o alto do monte
Em que sei que para lá dele
Está a lagoa do fogo. Também sei que isto
Pouco tem de interessante
E por isso o escrevo e de tudo o que há a dizer
Fico-me por dizer o que disse.
A varanda tem nas grades uns vasos dependurados
(estou convencido de que a imagem é fácil de construir)
Ignoro os nomes das plantas e ervas que estão nos vasos
E por isso dou-lhes os nomes que me surgem no momento
Cacto, rúcula, coentro e salsa
Algo no pedaço de mar me distrai das plantas e ervas
E de seguida são outros os nomes que lhes dou
É por causa destas coisas talvez
Que se diz que o mundo é feito de mudança

Fernando Martinho Guimarães, poema XVIII da terceira parte (“O lugar dos caminhos”) do livro é o mar e tudo o que nele cabe. Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2023 (Coleção 12catorze, n.º 67). Disponível aqui: https://edicoeshumus.pt//index.php?route=product/product&product_id=1524

 

Proposta de escrita

Elabora uma análise comparativa dos dois poemas apresentados, tendo em conta os seguintes itens:

  • Visão e tamanho do mundo
  • Restrições das cidades
  • Observação e nomes das coisas
  • Mudança e impermanência

 

Sugestão de resposta:

O poema de Fernando Martinho Guimarães dialoga intertextualmente com o poema VII de "O Guardador de Rebanhos", em alguns aspetos:

No poema de Alberto Caeiro, o sujeito poético menciona que a sua aldeia é tão grande quanto qualquer outra terra, pois ele é do tamanho do que vê, não do tamanho da sua altura. Isto relaciona-se com o segundo poema, em que o eu lírico observa a sua casa a partir da varanda e vê o mar, as árvores e o alto do monte. Ambos os poemas abordam a noção de que a perceção individual do mundo determina a sua extensão e importância.

No primeiro poema, Caeiro descreve como a vida nas cidades é limitada e pequena, com grandes casas que bloqueiam a visão do horizonte e empurram o olhar para longe do céu. Essa restrição é contraposta ao segundo poema, onde o eu lírico está em sua casa e vê um pedaço de mar, mas reconhece que isso pouco tem de interessante. Ambos os poemas sugerem a ideia de que as cidades e as suas restrições podem diminuir a experiência e a conexão com o mundo.

Enquanto Caeiro enfatiza a importância da visão e da capacidade de ver como a única riqueza verdadeira, o eu lírico do poema do século XXI observa os vasos de plantas na sua varanda, mas confessa ignorar os nomes das plantas e dá-lhes nomes que surgem no momento. Ambos os poemas exploram a relação entre a observação, a capacidade de nomear e a construção da experiência do mundo.

Caeiro menciona que a única certeza é a mudança, e essa ideia é retomada no outro poema, onde o eu lírico afirma que é por causa dessas coisas que o mundo é feito de mudança. Ambos os poemas refletem sobre a transitoriedade da existência e a constante transformação do mundo ao nosso redor.

Em síntese, o poema de Fernando Martinho Guimarães dialoga intertextualmente com o poema de Alberto Caeiro na medida em que ambos apresentam uma visão da vida que valoriza a simplicidade e a beleza da natureza. Ambos os poemas sugerem que a vida é mais rica e significativa quando se valoriza a perspetiva individual e se aprecia a beleza simples da natureza.



Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo, Alberto Caeiro” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 04-12-2022 (última atualização: 31-03-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/da-minha-aldeia-vejo-quanto-da-terra-se.html


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