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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

O Infante: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce (Fernando Pessoa)

 Fernando Pessoa, Mensagem

Segunda Parte - Mar Português

Possessio maris


Mar é símbolo do português; é lição do ter sido; é metáfora de todo o navegar e procura; é fonte inspiradora do Portugal a haver.

 

Os doze poemas da segunda parte correspondem ao ciclo do zodíaco completo: ciclo do que se cumpriu (o mar), mas também o ciclo do eterno retorno.

 

Os poemas I e XII ligam-se em ciclo:

- « Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (I - «O Infante»[1])

- «E outra vez conquistaremos a Distância –
   Do mar ou outra, mas que seja nossa!» (XII - «Prece»)

 

 

Almada Negreiros (1893-1970). «O Infante» (Ilustração para Mensagem). 1934.



 

I

O Infante[2]






5





10


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce,
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

 Fernando Pessoa, Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

Linhas de leitura do poema “O Infante”, de Fernando Pessoa:

1.ª parte: v. 1 

O poeta usou o nome «homem» para conferir um valor universal à afirmação. Aliás, os verbos no presente do indicativo confirmam essa intenção.

 

O poema parte, pois, de uma concepção providencialista da vida humana (a vida humana é regida por interesses superiores).

 

O 1.º verso é a expressão lapidar da conceção messiânica que já vinha a ser afirmada e continuará a ser um tema-guia da obra. Os três termos da afirmação axiomática ou aforística (de tipo proverbial) encadeiam-se por uma ordem lógica de causa-efeito: «Deus quer» (é o agente primeiro), «o homem sonha» (capta a intenção divina, está em sintonia com o divino), «a obra nasce» (efeito de um agente primeiro e de um agente segundo). Se Deus não quisesse, o homem não sonharia e a obra não nasceria.

 

2.ª parte: vv. 2-8 

A missão para a qual se escolheu o Infante foi unir a terra e o mar (vv. 2-3: «que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse»). Trata-se de uma teofania, isto é, uma revelação divina. Assim, as palavras estão carregadas de simbolismo iniciático:

  • vv. 3, 10 e 11 «mar» (símbolo de desconhecido, mistério); v. 8, «o azul profundo» (do mar imenso, do fundo do mistério, a ideia de origem, profundidade);
  • v. 4, «Sagrou-te», v. 9, «Quem te sagrou criou-te português» (consagrou-te, ungiu-te, destinou-te, Sagres. O infante surge-nos aqui mais como o símbolo do herói português escolhido por Deus para ser agente da sua vontade do que um ser individual),
  • v. 4, «desfazendo a espuma» (desfazendo o mistério);
  • v. 4, «espuma» (branca), v. 5, «orla branca», v. 6, «Clareou», v. 8 «Surgir» - aparecimento (todas estas palavras exprimem a passagem do mistério para a plena luz, sair das sombras, revelar-se, desocultar-se, tornar conhecido o desconhecido);
  • v. 7, «de repente» (carácter súbito e miraculoso da Revelação);
  • v. 8, «redonda» (a esfera é símbolo da unidade, da perfeição cósmica; no texto, símbolo da totalidade da obra querida por Deus);
  • v. 10, «nos deu sinal» (dar um sinal da partida para a aventura é dar a chave para decifrar o mistério).

 

A segunda parte do texto (vv. 2-8) apresenta-nos a vontade de Deus que quer toda a terra unida pelo mar (que a separava), confiando essa missão ao Infante, que levou, como por encanto, essa «orla branca» até ao fim do mundo, surgindo, em visão miraculosa, «a terra [] redonda, do azul profundo».

Esta segunda parte do texto subdivide-se em três momentos:

  • vv. 2-4: «Deus quis» até «Sagrou-te»: a ação de Deus (Deus, o agente da vontade, quer a unidade da terra);
  • v.4: a ação do Infante, herói ungido por Deus;
  • vv. 5-8: e a realização da obra por Revelação (o grandioso feito que transcende as forças humanas, próprias de heróis).

 

«O que interessa a Pessoa é que o infante é agente sacralizado de uma missão de descobrir o Mundo, de estreitar os laços entre os continentes e de criar um mar português [aspectos que se ligam à simbologia do grifo]» (António Machado Pires, 1987).

 

3.ª parte: vv. 9-12 

A 3.ª quadra representa um momento de síntese[3] e reflexão. Retoma-se a trilogia: «quem [Deus] te [o homem] sagrou criou-te português» para reflectir sobre ela e o seu significado histórico: «Do mar e nós em ti nos deu sinal.» – e aqui retoma-se a ideia de sinal, signo, bandeira – «Cumpriu-se[4] o Mar» (resultado do sonho do Infante e da vontade divina).

 

Transpõe-se para o povo português a glória do Infante («Quem te sagrou criou-te português», v. 9). O povo português foi, pois, o eleito por Deus para esta façanha.

 

Bruscamente, em corte abrupto, o poeta assinala o desmoronar-se do império dos mares – «e o Império se desfez» – é a tristeza, o «nevoeiro» a ensombrar os nossos dias.

 

O que falta, então, no futuro? 

«Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (a “obra”). 

Como? É lícito, desde já, apontar a fórmula redentora: Que Deus volte a querer, que os homens (portugueses) voltem a sonhar – daí nascerá, certamente, a obra necessária a um novo ciclo histórico de grandeza.

 

Portanto, no último verso repete-se a dinâmica do primeiro: 

Deus –> homem –> acção = vontade de Deus –> sonho do homem –> epopeia.

  

O percurso do poema é do geral para o particular e do particular para o coletivo: 

O assunto evoluciona primeiro do geral (universal) para o particular: o «homem» e a «obra» do 1.º verso têm aplicação universal, ao passo que, na 2.ª parte, o «homem» se particulariza no Infante e a «obra» na epopeia marítima. Dá-se, depois, na passagem da 2.ª para a última parte do poema, uma mudança de sentido oposto: transição de um plano particular (Infante) para um plano geral/colectivo (Portugueses). 

 

Este é um poema onde se verifica a economia de linguagem e uma densidade de sentidos: 

  • o vocabulário próprio da Revelação, acima referido; 

  • a utilização das maiúsculas, que vem do Paulismo (Mar, Português) e procura chamar a atenção para a riqueza significativa das palavras; 

  • a rima, sempre cruzada, valoriza certas palavras que, aparecendo em fim de verso, vêem o seu significado alargado: «nasce» (v.1), «uma» (v. 2), «mundo» (v. 6), «português» (v. 9), «sinal» (v. 10), «Portugal» (v. 12).

 

O último verso só indiretamente formula uma súplica a Deus. Apenas se enuncia perante Ele um facto: «falta cumprir-se Portugal». Segundo a técnica simbolista, é mais belo sugerir do que afirmar por claro. Além disso, esta enunciação da súplica, não em forma imperativa, mas em forma informativa, relaciona-se com as características messiânicas do texto: o povo português é o eleito de Deus; basta que Deus veja o que falta a Portugal para na hora certa desencadear as acções necessárias para restabelecer a glória do seu povo.

 

As frases são curtas: seis frases correspondem cada uma a um verso. Isto está também dentro da técnica simbolista: exprimir muito em poucas palavras. Note-se, por exemplo, que o último verso do poema sugere mais do que claramente afirma. É uma frase aberta a muitos cambiantes de sentidos: não afirma claramente, sugere.

 

Bibliografia:
Aula Viva Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999.
Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo, Porto, Areal Ed., 2000, pp. 55-56, 147-148.
Fernando Pessoa e Heterónimos – o texto em análise, A. A. Borregana, Lx, Texto Ed., 1995, pp. 25-27.
Fernando Pessoa e Heterónimos. Propostas de Análise, Avelino Soares Cabral, Mem Martins, Ed. Sebenta, [1997], pp. 90-92.
“Os Lusíadas de Camões e a Mensagem de Fernando Pessoa”, António Machado Pires, Actas da III Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987.
Para Compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais, Porto, Areal Editores, 2001, pp. 131-132.



[1] Sob o signo de Carneiro: Carneiro (21 de março a 20 de abril) é o signo da impulsão criadora, sob os desígnios de Deus, a «força genésica que desperta o homem e o mundo (Chevalier e Gheerbrant; Dicionário de Símbolos, p. 160): «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.» Corresponde «à elevação do Sol, à passagem do frio para o calor, da sombra para a luz; o que não deixa de estar relacionado com as buscas do Velo de Ouro» (ibid.), isto é, com as Descobertas:

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

 

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo

 

[2] O Infante D. Henrique surge anteriormente na Primeira Parte (Brasão), em O Timbre, como «A Cabeça do Grifo», onde é visto como criador de civilização e como mentor espiritual da ideia de navegar.

[3] Na 3ª estrofe, verifica-se a dinâmica da tese, antítese e síntese. Tese = epopeia marítima foi realizada por vontade de Deus e dos portugueses: «cumpriu-se o mar»; antítese: «o Império se desfez» (decadência); síntese: «falta cumprir-se Portugal» (nova acção Deus e do homem português para uma nova tese: uma nova epopeia, a última fase de Portugal, o Quinto Império).

Deus quer

o homem sonha

a obra nasce

quem

te

cumpriu-se o Mar

Senhor

 

falta cumprir-se Portugal

 

[4] A “obra”.







Questionário sobre o poema “O Infante”, de Fernando Pessoa:

1. O primeiro verso enuncia o sopro criador do sonho.

1.1. Identifique o sonho e o detentor desse poder.

1.2. Explicite o significado da sequência, nesse primeiro verso.

1.3. Identifique a construção sintáctica e refira a sua expressividade.

2. O vocabulário da segunda quadra é sugestivo de um caminho da perfeição. Mostre como, semanticamente, é possível essa leitura.

Identifique o recurso estilístico presente no verso 8 e refira a sua expressividade.

3. Em que medida o poeta considera a missão cumprida, se há um desejo presente que não se consumou?

4. Que análise faz o autor da importância de ser "português"?

 

Chave de correção:

1.1. O sonho: desvendar novos mares e continentes e ir "até ao fim do mundo".

Deus é o detentor do poder criador, enquanto o homem consegue sonhar.

1.2. A obra é fruto do sonho, graças ao poder e vontade de Deus.

1.3. Coordenação assindética a sugerir gradação e ação.

2. O branco da orla e a claridade sugerem pureza; o azul é símbolo do amor e da harmonia; a terra inteira e redonda remetem para a imagem do círculo, representativo da perfeição e da plenitude; os verbos ir (no pretérito perfeito) e correr (no gerúndio) lembram a existência de um caminho a percorrer para que no fim possa participar do conhecimento; o verbo ver (v. 3 da 2.a quadra) significa conhecer, compreender, saber.

Há uma metonímia ao substituir o horizonte pela sua cor de "azul profundo". Esta associação por contiguidade permite salientar a beleza e a harmonia sugerida pela cor do horizonte.

(A nível fónico é possível encontrar uma aliteração da dental d, que, associada às nasais e à vogal fechada u, remete para o misterioso e recôndito; também as sibilantes s, z evocam a ideia de continuidade, enquanto as líquidas r, l, sugerem o deslizar ou o aparecer da terra redonda.)

3. Cumpriu-se a missão marítima; mas, após a queda do Império, não houve a sua renovação; faltava "cumprir-se Portugal", ou seja, realizar-se e engrandecer-se num novo império civilizacional (a que chamou de "Quinto Império").

4. O "português" apresenta-se como o escolhido, o homem que sonha, que se lança à aventura e que conquista os mares.

(Nota informativa: o aluno, para responder ao questionário, não tem, obrigatoriamente, de conhecer toda a obra de Pessoa. Como apoio para uma melhor compreensão da mensagem deste texto, elucida-se que o poeta afirma, em alguns textos, que a raça portuguesa buscará uma nova Índia em naus construídas "daquilo de que os sonhos são feitos" e considera que a futura civilização europeia será portuguesa.) 

Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Mensagem/textoMensagem.htm (Consultado em 04-02-2003)


 

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O Infante: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce (Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 19-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-infante-deus-quer-o-homem-sonha-obra.html


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