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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Acho tão natural que não se pense, Alberto Caeiro

 



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Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa

Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas…
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um dormente.

Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.

 

Alberto Caeiro, «O Guardador de Rebanhos», in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o poema “XXXIV - Acho tão natural que não se pense”, de Alberto Caeiro:

1. Explicite as características do «eu» reveladas na primeira estrofe.

2. Analise os sentimentos expressos no verso: «E então desagrado-me, e incomodo-me» (v. 8).

3. Atente na frase: «Que me importa isso a mim?» (v. 14). Explique o seu significado no contexto em que surge.

4. Refira os efeitos produzidos pelos traços de discurso oral presentes no poema.

5. «E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.» (v. 20). Comente o sentido deste verso enquanto conclusão do texto.

 

Explicitação de cenários de respostas:

1. Segundo a primeira estrofe, o «eu» caracteriza-se como alguém que:

- considera o ato de não pensar como seu traço constitutivo;

- se sente distanciado da «gente que pensa»;

- tem, por vezes, um sentimento tão forte do absurdo que constitui «haver gente que pensa», que se põe «a rir [...] sozinho»;

-

2. O verso «E então desagrado-me, e incomodo-me» exprime o descontentamento do «eu» consigo mesmo por se ter surpreendido a perguntar-se «cousas», isto é, a pensar, o que significa ter-se traído, por momentos, a si próprio, caindo no erro que critica nos outros. Mesmo que momentânea, esta contradição provoca-lhe, ao aperceber-se dela, um desagrado e um desconforto quase físicos (cf. v. 9).

3. A frase interrogativa «Que me importa isso a mim?», encerrando o discurso sobre a hipótese inverificável de as coisas terem pensamento, marca a distância do sujeito poético em relação a esse tipo de problemática. Depois de negar categoricamente essa hipótese (v. 11) e de manifestar a sua indiferença perante a eventualidade de a «terra» pensar (vv. 12-13), o sujeito poético, através desta última interrogação, prescinde de todas as interrogações, à imagem da própria natureza.

4. Pelas suas características oralizantes - vocabulário simples e corrente, repetições, frases curtas, frases interrogativas, reticências, recurso a perguntas e respostas - o discurso poético aproxima-se da fluidez coloquial da fala, recriando o aspeto de uma linguagem despojada de artifícios, coerente com a simplicidade comunicativa das ideias que apresenta.

5. O verso «E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.» surge formulado como a conclusão do poema e, em particular, da argumentação iniciada no verso 15, relativa ao que o sujeito poético perderia se «pensasse» e ao que ganha não pensando. Assim, pensar significaria deixar de ver a realidade para «ver só» as construções abstratas dos «pensamentos», que se interporiam, como uma cortina, entre o «eu» e «as árvores», «as plantas» e a «Terra», deixando-o «às escuras». Pelo contrário, não pensando, nada se interpõe entre o seu olhar e a realidade das coisas do mundo; em suma, não pensar é libertar de subjetividade a visão do real, é restituir ao olhar a capacidade de ver o mundo na sua plenitude, é sentir-se dono da «Terra» e do «Céu».

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2002, 1.ª fase, 1.ª chamada

 


 

Proposta de resolução da Associação de Professores de Português:

1. O “eu” caracteriza-se como alguém que se ri sozinho dos que pensam, pois para ele, o natural será não pensar. Existe uma recusa em pensar e um certo afastamento dos outros que pensam.

2. Esse verso exprime sentimentos de descontentamento e mal-estar pois o poeta , quando toma consciência de que poderá eventualmente pensar, sente-se “incomodado”.

3. Esta frase mostra o afastamento de tudo aquilo que possa conduzir ao “pensar”. O poeta, ao referir que para ele não é importante que “outros” pensem, está a tomar uma atitude de total indiferença.

4. O discurso oral presente no poema sugere uma linguagem simples e objetiva, que está de acordo com as ideias expressas no poema.

5. Enquanto conclusão do texto, esse verso reforça mais uma vez a importância do “não- pensar”. O poeta, se pensasse, deixaria de ver a realidade do mundo pois o pensamento impedi-lo-ia de olhar para a Natureza. Assim, como ele não pensa, consegue ver tudo o que o rodeia, quer seja a Terra, quer seja o Céu.

17-06-2002

 

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