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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego (Álvaro de Campos)


 


Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro-andar..
Não oiço já passos no segundo-andar.
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir…

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! –

Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel! - demasiado rápido! -
Os duplos passos em conversa falam-me
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa...

 

Álvaro de Campos, Poesias, Lisboa, Ática, 1993

 

Questionário sobre o poema “Começa a haver meia-noite, e a haver sossego”.

1. Este poema não apresenta regularidade métrica ou estrófica. No entanto, obedece a certas regras de composição.

1.1. Identifique as repetições que lhe marcam o ritmo.

1.2. Mostre como as sensações auditivas e visuais nele são referidas.

2. Explicite de que modos é sugerida, ao longo deste poema, a experiência da passagem do tempo.

3. Indique um sentido possível do verso 17: "Os duplos passos em conversa falam-me".

4. Descreva a imagem que o sujeito poético dá de si mesmo.

 

Explicitação de cenários de resposta

1.1. Essas repetições são de diferentes tipos:

- repetição simples:

v. 1 - "a haver";

vv. 3-5 - "andares", "terceiro-andar", "segundo-andar".

- repetição de tipo rima:

vv. 4-5 - "terceiro-andar", "segundo-andar";

vv. 13, 14 - "recluso";

vv. 20, 21 - "escutando", "Esperando" (jogando ainda, neste caso, com as aliterações nasais de "sonolentamente").

- repetição de tipo refrão:

vv. 7, 19 - "Vai tudo dormir...".

- repetição anafórica:

vv. 10-12 - "que de estrelas!" - "Que grandes silêncios maiores há no alto!" - "Que céu anticitadino!";

vv. 22, 23 - "Qualquer coisa".

Nota - A não classificação dos tipos de repetição não deve ser fator de desvalorização.

1.2. Há uma alternância na representação das sensações auditivas e visuais:

- primeira estrofe - predominam sensações auditivas: "sossego" - "Calaram o piano" - "Não oiço já passos" - "o rádio está em silêncio";

- terceira estrofe - predominam sensações visuais: "ir à janela" - "Se eu olhar" - "estrelas" - "no alto" - "céu";

- quarta estrofe - predominam sensações auditivas: "Escuto" - "ruídos da rua" - "Um automóvel" - "duplos passos em conversa" - "O som de um portão que se fecha";

- sexta estrofe - refere-se a atividade de escutar, sem se discriminarem sensações auditivas.

2. Essa experiência pode definir-se, em geral, como a de uma lenta passagem do tempo.

A - Pode notar-se, a este respeito:

- a ideia de um silêncio que, a pouco e pouco, se instala (primeira estrofe);

- a dispersão e a nitidez dos "ruídos da rua" (quarta estrofe);

- a repetição de tipo refrão "Vai tudo dormir", que sugere um abrandamento de ritmo;

- a repetição de "Qualquer coisa", marcando de modo especial a lentidão com que o tempo corre e o vazio que lhe está associado (sexta estrofe);

- (...)

B - Pode notar-se que a passagem do tempo é, desde logo, dada pela perifrástica "Começa a haver meia-noite, e a haver sossego". O tempo é também marcado pela utilização do:

- presente do indicativo (às vezes referido a um passado imediatamente anterior "Não oiço já");

- presente do indicativo com valor de futuro (perifrástica "Vai tudo dormir");

- gerúndio, assinalando o aspeto durativo do presente ("escutando, Esperando");

- …

Nota - A apresentação de uma das linhas de orientação da resposta (A ou B) é considerada suficiente.

3. Exemplos de interpretações possíveis:

- os passos que o Eu ouve são de duas pessoas que vão a conversar, ou então são os seus ritmos de passos que parecem "conversar" entre si;

- o barulho produzido pelos passos é percecionado como um tipo de linguagem;

- os passos "falam" no sentido em que sugerem ao Eu solitário que escuta uma presença ou uma companhia humanas;

- os passos que o Eu ouve são a sensação do exterior, do espaço não confinado, não "recluso";

- …

4. Traços do autorretrato do Eu:

- as suas sensações começam por ser todas do exterior e está atento à vida da cidade à sua volta;

- sente-se sozinho perante o universo imenso;

- sente-se recluso, como se estivesse preso na casa;

- os advérbios de modo "ansiosamente" e "sonolentamente" marcam, de forma contraditória, o estado de desassossego e de atenção ao exterior;

- o desejo de "alguma coisa" é tanto mais inquietante e ansioso quanto esse objeto de desejo é impreciso e vago;

- …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1998, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

 



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