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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

E há poetas que são artistas (Alberto Caeiro)

 



Leia o poema XXXVI de «O Guardador de Rebanhos». Se necessário, consulte a nota.

 

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem construi um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.

 

Fernando Pessoa, Poesia de Alberto Caeiro, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 72

 

NOTA

construi (verso 5) – o mesmo que constrói.

 

QUESTIONÁRIO

1. Nas três primeiras estrofes, são abordados dois processos de criação poética.

    Explicite esses dois processos, tendo em conta, por um lado, as comparações presentes nos versos 3 e 5 e, por outro lado, o sentido do verso 4 e o conteúdo da terceira estrofe.

2. Interprete o verso «Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa» (v. 9), atendendo à especificidade da poesia de Alberto Caeiro.

3. Explique o modo como as sensações e a comunhão com a natureza são valorizadas na quarta estrofe do poema. Fundamente a sua resposta com elementos textuais pertinentes.



 


Explicitação de cenários de resposta

1. Descritor de desempenho: Explicita os dois processos de criação poética, desenvolvendo, adequadamente, o conteúdo dos quatro tópicos de resposta.

Tópicos de resposta

Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

– Processo de criação poética dos «poetas que são artistas» (v. 1):

• trabalho minucioso/rigoroso/artesanal, à semelhança do trabalho do carpinteiro e do pedreiro;

• poesia pensada/consciente.

– Processo de criação poética dos poetas que sabem «florir» (v. 4):

• ato involuntário/espontâneo;

• em harmonia com a própria natureza, «única casa artística»; logo, o único modelo de arte.

Exemplo de resposta

No poema, são apresentados dois processos distintos de criação poética. De acordo com o primeiro processo – o dos «poetas que são artistas» (v. 1) –, a poesia corresponde a um trabalho minucioso, rigoroso e artesanal. Neste contexto, as comparações com o carpinteiro (v. 3) e com o pedreiro – «como quem construi um muro» (v. 5) – enfatizam o trabalho formal e, por conseguinte, consciente do poeta. O segundo processo – defendido pelo sujeito poético – é o que se deduz do verso 4, em que o «eu» manifesta a sua tristeza e estranheza por haver poetas que não são capazes de «florir», ou seja, de fazer da criação poética um ato involuntário, espontâneo e tão natural quanto o ato de «florir».

Deste modo, o primeiro processo, o de uma poesia pensada, opõe-se à ideia de uma poesia espontânea e simples, dado que está em contradição com a própria natureza que, na sua diversidade e harmonia, constitui o modelo da verdadeira arte.

 

2. Descritor de desempenho: Interpreta o sentido do verso 9, desenvolvendo, adequadamente, o conteúdo dos dois tópicos de resposta.

Tópicos de resposta

Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

• Existência de uma contradição entre aquilo que o sujeito poético afirma («não como quem pensa, mas como quem não pensa») e o que ele faz («Penso nisto»).

• Recusa do pensamento puro e valorização das sensações.

Exemplo de resposta

No verso «Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa» (v. 9), o sujeito poético exprime a ideia de que o pensamento é algo natural e espontâneo, recusando, por isso, o pensamento puro, na medida em que se afasta das sensações. Ao pensar, incorre, porém, naquilo que combate: a intelectualização.

Assim, verifica-se a existência de uma contradição entre o que o «eu» poético afirma (pensar como se não pensasse) e o que faz (pensar).

 

3. Descritor de desempenho: Explica, com base em elementos textuais pertinentes, o modo como as sensações e a comunhão com a natureza são valorizadas na quarta estrofe, desenvolvendo, adequadamente, o conteúdo dos quatro tópicos de resposta.

Tópicos de resposta

Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes, devidamente fundamentados com elementos textuais.

– Valorização das sensações:

• privilégio da realidade captada pelos sentidos (vv. 10 e 17);

• negação/recusa do pensamento (vv. 11-12).

– Valorização da comunhão com a natureza:

• o «eu» é um elemento da natureza tal como as flores, partilhando com elas uma «comum divindade» (v. 14);

• a «Terra» é a mãe natureza, acolhedora e protetora (vv. 15-17).

Exemplo de resposta

Na quarta estrofe do poema, a valorização das sensações é evidenciada pelo facto de o sujeito poético privilegiar a realidade captada pelos sentidos, concretamente a visão e a audição, como se comprova nos versos «E olho para as flores e sorrio...» (v. 10) e «E deixar que o vento cante para adormecermos» (v. 17). Nega-se, assim, a necessidade de compreender algo mais além daquilo a que se acede através das sensações, atitude evidenciada nos versos «Não sei se elas me compreendem / Nem se eu as compreendo a elas» (vv. 11-12).

A comunhão com a natureza decorre, por um lado, do facto de o «eu» considerar que é um elemento da natureza tal como as flores, partilhando com elas uma «comum divindade» (v. 14) que permite aceder à «verdade» (v. 13) e, por outro lado, do facto de «a Terra» ser caracterizada como a mãe natureza, acolhedora e protetora. Por esta razão, o homem entrega-se à natureza, numa atitude de desprendimento e de aceitação, sem qualquer mediação reflexiva (vv. 15-17).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2017, 1.ª Fase

 

 

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