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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos (Álvaro de Campos)

 



 

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,

 

E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.

 

A minha vida passada misturou-se-me com a futura,

 

E houve no meio um ruído do salão de fumo,

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Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

 

 

 

Ah, balouçado

 

Na sensação das ondas,

 

Ah, embalado

 

Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,

10

De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,

 

De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,

 

Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

 

 

 

Ah, afundado

 

Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,

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Irrequieto tão sossegadamente,

 

Tão análogo de repente à criança que fui outrora

 

Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,

 

Nem as outras álgebras com x e y’s de sentimento.

 

 

 

Ah, todo eu anseio

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Por esse momento sem importância nenhuma

 

Na minha vida,

 

Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos –

 

Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,

 

Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender

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E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Lisboa, IN-CM, 1992

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o texto lido.

1. No poema, o sujeito evoca uma viagem de barco. Caracterize o espaço físico representado.

2. Explicite os efeitos de ritmo e de sentido produzidos pela repetição da interjeição «Ah» (vv. 6, 8, 13, 19, 22).

3. Interprete a comparação entre o «eu» e «um livro» (vv. 11-12).

4. Comente o sentido da alusão à infância (vv. 16-18).

5. Explique por que razão o sujeito poético anseia «por esse momento, como por outros análogos» (v. 22).

 

Explicitação de cenários de resposta

1. O espaço físico evocado é o convés dum navio, numa viagem marítima, em noite de luar.

A «cadeira de convés», em que o sujeito se representa recostado para trás, o «ruído do salão de fumo», onde «acabara a partida de xadrez» (vv. 4 e 5), a alusão à «sueca» (v. 12) são elementos indiciadores do ambiente requintado e cosmopolita dos paquetes de luxo. O movimento cadenciado das ondas, balouçando a cadeira de convés (vv. 6-7), e a presença do «luar» (v. 25) completam o quadro com a sugestão de um mar tranquilo.

2. A interjeição «Ah» ocorre, anaforicamente, nos versos 6, 8, 13, 19 e 22. Esta anáfora marca o ritmo do poema.

Por outro lado, pela associação aos adjetivos «balouçado», «embalado», «afundado», o repetir da interjeição «Ah» assinala um crescendo no estado de torpor em que o sujeito se encontra.

As duas ocorrências finais, em que esta anáfora se expande em unidades maiores («Ah, todo eu anseio / Por esse momento», «Ah, todo eu anseio por esse momento»), tornam mais claro o sentimento expresso pela interjeição: o desejo de reencontro, por parte do sujeito, desse instante e de «outros análogos» do passado.

3. A comparação entre o «eu» e «um livro» é interpretável de vários modos, nomeadamente:

• a casualidade banal do livro ali deixado é aproximada à sensação de estar ali, esquecido de si, liberto de cuidados e de obrigações;

• ao rever-se na imagem do livro deixado ali por acaso, o «eu» sublinha o seu desejo de quietude ou de anonimato – ele está ali na «cadeira de convés» como uma coisa em que ninguém repara;

• ...

Nota – A apresentação de uma linha de interpretação plausível é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspetos de conteúdo.

4. A alusão à infância é suscitada pela analogia entre o estado de espírito do sujeito lírico – recostado na «cadeira de convés» – e a criança que fora «outrora», «Quando brincava na quinta». Ignorante dos saberes e das convenções dos adultos, o «eu» da infância vivia o presente com a despreocupação da sua inocência. Essa pureza original é como que recuperada naquele instante privilegiado de semiadormecimento que permite ao sujeito abandonar-se à simples vivência do momento.

5. No final do poema, o sujeito poético expressa, reiteradamente, o seu anseio por aqueles momentos da sua vida em que, tal como na «cadeira de convés», se entregou, sem preocupações, ao presente, vivido e apreciado enquanto tal.

O anseio do sujeito poético por estes momentos «sem importância nenhuma» – em que nada acontece e a própria consciência do «eu» está como que suspensa, semiadormecida – funda-se, nomeadamente, nas seguintes razões:

– tais instantes possibilitam ao «eu» experienciar o próprio «vácuo da existência», sem o problematizar ou questionar dentro de si;

– esses momentos significam repentinas aproximações do «eu» adulto à sua infância perdida, quando viver fora, simplesmente, fruir em pleno cada instante.

Em suma, nestes momentos realiza-se o anseio do sujeito poético pelo abrandamento da racionalidade, pela vivência do imediato apreendido pelos sentidos («Na sensação das ondas», v. 7; «sentir-me ali», v. 11).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2000, Prova Modelo (baseada na Prova n.º 139 de 1999, 1.ª fase, 2ª chamada)

  


II – Comentário de texto

Elabore um comentário global do poema transcrito, tendo em conta os níveis formal, fónico, morfossintático e semântico, de modo a evidenciar, entre outros, os seguintes aspetos:

- o confronto de uma situação concreta com o sentimento intimo de vida expresso;

- a dialética temporal na sua relação com uma determinada vivência do 'eu ';

- as marcas de expressão do desejo de um "momento sem importância nenhuma";

- relação com a poesia de Álvaro de Campos por si estudada.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 1997, 1.ª fase, 2.ª chamada


Sugestão de comentário textual:

O poema "Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos" de Álvaro de Campos apresenta um confronto entre a situação concreta em que o eu lírico se encontra (no convés de um navio) e o sentimento íntimo de vida do eu-lírico, que se assemelha a um "precipício" (v. 2). A vida passada mistura-se com a futura (v. 3), e o eu lírico encontra-se num estado de transição entre o que foi e o que ainda será. A sensação de balanço das ondas (v. 6) e a ideia de que hoje ainda não é amanhã (v. 9) oferecem uma sensação de conforto e segurança para o eu lírico.

O ruído do salão de fumo, onde a partida de xadrez acabara, é o único som que o eu-lírico ouve, e ele sente-se balançado pela sensação das ondas, embalado na ideia reconfortante de que hoje ainda não é amanhã e que, pelo menos neste momento, ele não tem nenhuma responsabilidade.

A dialética temporal na relação com a vivência do eu é uma característica marcante do poema. O eu lírico encontra-se num estado de transição, em que o passado e o futuro se fundem e se confundem. A alusão à infância (v. 16) sugere a presença de um eu primordial, livre da responsabilidade e das preocupações adultas. Esse eu primordial é como que recuperado no momento presente em que o eu lírico se encontra, em que ele anseia por um "momento sem importância nenhuma" (v. 23), em que possa se entregar à vivência do imediato apreendido pelos sentidos.

As marcas de expressão do desejo por um "momento sem importância nenhuma" (v. 23) são uma constante ao longo do poema. O eu lírico anseia por um momento de abrandamento da racionalidade, em que possa se entregar à vivência do presente de forma simples e despreocupada. Ele deseja sentir-se como um livro deixado na cadeira de convés por alguém que joga sueca (v. 12), sem personalidade propriamente dita, mas sentindo-se presente ali, em cima da cadeira. Esse desejo de um momento sem importância nenhuma é expresso de forma intensa, como uma ânsia que percorre todo o poema.

O poema "Encostei-me para trás na cadeira de convés" contém várias características típicas da última fase do heterónimo Álvaro de Campos. A seguir, listarei algumas delas:

Sensação de vazio e angústia existencial: O poema reflete a sensação de vazio e de uma existência sem sentido que permeia a última fase da obra de Álvaro de Campos. Isso fica evidente nos versos "A minha vida passada misturou-se-me com a futura, / E houve no meio um ruído do salão de fumo" (vv. 4-5) e "Ah, todo eu anseio / Por esse momento sem importância nenhuma / Na minha vida" (vv. 19-21).

O poema reflete a preocupação de Álvaro de Campos com a falta de sentido da vida e a inevitabilidade do vazio existencial, como indicado pela referência ao "vácuo da existência" (v. 24) e à "solidão" (v. 25).

Consciência da fugacidade do tempo: No poema, há uma forte consciência da passagem do tempo e da fugacidade da vida, como indicado pela mistura da vida passada com a futura e o anseio por momentos sem importância, em que o sujeito é capaz de se livrar das responsabilidades e sentir-se como uma criança novamente.

Desejo de escapar da racionalidade e da rotina: O poema reflete o desejo de Álvaro de Campos de escapar da rotina e da racionalidade da vida quotidiana e se entregar à simples vivência do momento. Essa necessidade de escapar é representada pela imagem do sujeito lírico recostado na cadeira de convés, balançando suavemente com o movimento das ondas, e pela analogia com a criança que brinca na quinta.

Em suma, o poema de Álvaro de Campos apresenta uma reflexão sobre a passagem do tempo e a pressão da responsabilidade na vida adulta. O sujeito poético procura, através do desejo pelo "momento sem importância nenhuma", escapar a essa pressão e regressar a um estado de inocência e despreocupação. No entanto, o confronto entre a situação concreta e o sentimento interno revela a complexidade e a inevitabilidade da dialética temporal.

 

ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-20 (texto adaptado)


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