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segunda-feira, 27 de março de 2023

Julga-me a gente toda por perdido, Camões


 






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Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quási que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n’alma.

Luís de Camões, Rimas, ed. de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994

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cuidado (v. 2): pensamento.
tratos (v. 4): convívio.
calma (v. 11): calor do sol.
gesto (v. 14): rosto.

 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Atente nas duas quadras do poema.

1.1. Com base na primeira quadra, indique três traços que caracterizam o modo como «a gente toda» vê o sujeito poético.

1.2. Analise as relações de sentido que aquelas duas estrofes estabelecem entre si.

2. Explicite um dos efeitos expressivos produzidos pela enumeração «a terra, o mar e o vento» (v. 9).

3. Comente o sentido do verso «que eu só em humilde estado me contento» (v. 12) no contexto dos dois tercetos.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1.1. De acordo com a primeira estrofe, «a gente toda» (v. 1) vê o sujeito poético como um indivíduo:

– «perdido» (v. 1), ou louco;

– ensimesmado («tão entregue a meu cuidado» – v. 2);

– sempre à margem, evitando deliberadamente a convivência com as outras pessoas (v. 3);

– desprendido de todas as regras do convívio em sociedade (v. 4).

1.2. A adversativa «Mas» instaura uma contraposição de sentido entre as duas quadras. Assim:

– à representação, na primeira estrofe, da aparência do «eu», tal como é visto pela «gente toda», sucede-se, na segunda, a expressão de uma profunda autoconsciência do «eu», que lhe permite classificar como errada a visão dos outros sobre si e sobre o mundo (vv. 7-8);

– na segunda quadra, o que parece aos outros loucura é apresentado como uma opção consciente e deliberada do «eu» que, conhecendo (vv. 5-6) e desprezando (v. 7) o «mundo», afirma a vivência interior do seu «mal» como o único modo válido de engrandecimento pessoal (v. 8).

2. A enumeração, incidindo na busca dos outros, produz diversos efeitos expressivos, tais como:

– assinala o carácter global dessa busca (convocando três dos elementos, Terra, Água e Ar);

– define tal busca como incessante e sem limite que a detenha;

– atribui à referida busca um carácter insaciável e insano, pois pretende sair do espaço humanamente mais controlável (a Terra) para o mar;

– cria uma impressão de movimento, num crescendo de dinâmica ascensional (da Terra-Mar para o Vento);

– sugere uma grande agitação, um desmesurado dispêndio de energia;

– …

3. O verso «que eu só em humilde estado me contento» apresenta, na relação com o primeiro terceto, entre outros, os seguintes sentidos:

– constitui a afirmação, por parte do sujeito poético, de uma opção de vida simples («em humilde estado me contento»), oposta à daqueles que buscam, por todo o lado, «riquezas»;

– marca o desinteresse do «eu» pelos bens materiais, colocando-se acima dos que são movidos por tais objetivos;

– ...

Na articulação com os versos finais do soneto, o verso 12 apresenta, entre outros, os seguintes sentidos:

– produz uma clarificação do significado de «humilde estado», revelando-o como o sentimento de dedicação amorosa que domina o sujeito lírico;

– é expressão da autoconsciência do sujeito relativamente à grandiosidade do sentimento que o domina, de entrega total ao ser amado e à contemplação da beleza deste, inscrita para sempre dentro de si («me contento, / de trazer esculpido eternamente / vosso fermoso gesto dentro n’alma» – vv. 12-14);

– constitui a afirmação da vivência interior da beleza e do amor como os valores da vida do «eu»;

– contribui para a enfatização do desprendimento do «eu» face aos bens materiais e da sua opção por um bem simbólico perene;

– …

Nota – Para a atribuição do máximo da cotação referente aos aspetos de conteúdo, considera-se suficiente a explicitação de duas articulações de sentido do verso indicado, sendo obrigatoriamente uma delas relativa ao primeiro terceto e a outra aos versos finais do soneto.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734. Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 10.º/11.º anos ou 11.º/12.º anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2007, 2.ª Fase


 


CARREIRO, José. “Julga-me a gente toda por perdido, Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 27-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/julga-me-gente-toda-por-perdido-camoes.html


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