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terça-feira, 28 de março de 2023

Quando o Sol encoberto vai mostrando, Camões

O Nascimento de Vénus (pormenor), Botticelli, 1483

 






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Quando o Sol encoberto vai mostrando
ao mundo a luz quieta e duvidosa,
ao longo d’ ũa praia deleitosa,
vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;
ali, co a mão na face tão fermosa;
aqui, falando alegre, ali cuidosa1;
agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
erguendo aqueles olhos tão isentos2;
aqui movida um pouco, ali segura;

aqui se entristeceu, ali se riu;
enfim, nestes cansados pensamentos
passo esta vida vã3, que sempre dura.

 

Luís de Camões, Rimas, edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994

 

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1 cuidosa (verso 7) – meditativa; pensativa.
2 isentos (verso 10) – puros.
3 vã (verso 14) – vazia.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Explicite a relação que se pode estabelecer entre o sujeito poético e o cenário físico.

2. Refira um dos valores expressivos da repetição de «aqui», «ali» e «agora» (versos 5-9 e 11-12).

3. Apresente quatro traços do retrato da figura feminina.

4. Comente o sentido que a conclusão do soneto produz (versos 13-14).

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. É importante a relação entre o sujeito poético e o cenário físico na construção do sentido do soneto. Assim, o «Sol encoberto» (v. 1) e a «luz quieta e duvidosa» (v. 2) criam um ambiente propício ao devaneio e à rememoração, naquela «praia» (v. 3) que se torna «deleitosa» (v. 3) por ser o espaço em que o «eu» se move, «imaginando» a sua «inimiga» (v. 4).

2. A repetição de «aqui», «ali» e «agora» (vv. 5-9 e 11-12) tem, entre outros, os seguintes valores expressivos:

− criar uma atmosfera de grande tensão subjetiva, uma vez que está associada ao processo de rememoração, de reconstrução mental das imagens da sua «inimiga» (v. 4) por parte do sujeito poético;

− acentuar a diversidade das imagens que representam a figura feminina;

− realçar o modo de composição do retrato por traços contrastados par a par (vv. 5 e 6; vv. 6 e7; v. 8; vv. 9 e 11; v. 12);

− imprimir aos versos um ritmo cadenciado.

3. Traços do retrato que no poema é feito da «minha inimiga» (v. 4): a beleza («face tão fermosa», v. 6); a alegria («alegre», v. 7); a melancolia («cuidosa», v. 7); a candura («olhos tão isentos», v. 10); a instabilidade (quer «movida», ou inquieta, quer «segura», ou calma, v. 11; ora triste, ora risonha, v. 12). De notar também os gestos graciosos, vivos e espontâneos («os cabelos concertando» – v. 5; «a mão na face» – v. 6).

4. Os dois versos finais constituem uma meditação sobre a distância intransponível entre a ilusão que a memória é capaz de criar e a realidade da vida presente – sem perspetiva de mudança, porque «sempre dura» (v. 14) – do sujeito solitário, reduzido às suas imagens ou «pensamentos» (v. 13).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - Prova Escrita de Literatura Portuguesa 10.º e 11.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Lisboa, Governo de Portugal – Ministério da Educação e Ciência /GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2012, 1.ª Fase

 

 


CARREIRO, José. “Quando o Sol encoberto vai mostrando, Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 28-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/quando-o-sol-encoberto-vai-mostrando.html


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