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domingo, 12 de março de 2023

Ó retrato da Morte, ó Noite amiga, Bocage

 



Ó retrato da Morte, ó Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio1 agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel que a delirar me obriga.

E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

 

Bocage, Sonetos, Lisboa, Bertrand, s. d.

_________

1 pio: piedoso, compassivo.

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- modos de representação da Noite;

- relação entre a natureza representada e o estado emocional do sujeito poético;

- recursos estilísticos relevantes;

- traços característicos do Pré-Romantismo.

 

Explicitação de cenários de resposta:

Modos de representação da Noite

A Noite aparece como imagem («retrato») da Morte a que o «eu» aspira, como confidente («amiga», «testemunha», «secretária») e protetora («Dá-lhes pio agasalho no teu manto»), como rainha das trevas e dos seus habitantes (os «cortesãos da escuridade» ). Através da personificação, combinada com um conjunto de metáforas, a noite configura uma dupla alegoria: nas quadras, é a noite eterna e arquetípica, entidade maternal que envolve no seu piedoso «manto» os seres que sofrem; nos tercetos, é antes a noite terrível e infernal («horrores»), associada ao reino dos inimigos da claridade. Entre estas duas representações da Noite, ligadas pela omnipresença da Morte, estabelece-se uma relação de complementaridade.

 

Relação entre a natureza representada e o estado emocional do sujeito poético

A natureza é figurada como lugar de abrigo e de apaziguamento e também como locus horrendus, espelho do sofrimento amoroso do sujeito poético: uma paisagem noturna, tenebrosa, povoada de entidades hostis à luz do dia, com as quais o «eu» se identifica («Inimigos, como eu, da claridade»). Acompanha a expansão alegórica do simbolismo da Noite, atrás referida, um crescendo na expressão da dor. Essa expressão começa, em tom de lamento, pela metáfora inicial (vv. 1-2); transforma-se em súplica, quase numa prece (v. 6); irrompe em apelos aos «cortesãos da escuridade» (vv. 9-11 ); por fim, lança-se em invocações («Em bandos acudi aos meus clamores») dos «horrores» noturnos (vv. 12-14).

 

Recursos estilísticos relevantes

São relevantes, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:

- metáfora: «retrato da Morte», «cortesãos da escuridade»;

- personificação: «Morte»; «Noite»; «Amor»;

- apóstrofe: «Ó retrato da Morte, ó Noite amiga»; «E vós, ó cortesãos da escuridade»;

- anáfora: «Quero» (v. 13) /«Quero» (v. 14);

- …

 

Traços característicos do Pré-Romantismo

- representação da natureza como locus horrendus;

- obsessão da morte;

- confessionalismo;

- veemência dos sentimentos;

- exacerbação passional;

- misticismo;

- …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária). Portugal, 2000, 1.ª Fase, 2.ª Chamada

 

 

ó Noite amiga, picsart.com 2023-03-08


 

Comentário do poema “Ó retrato da Morte, ó Noite amiga”, de Bocage

 

I- Introdução

 

O soneto «Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga» é da autoria de Bocage, poeta pré-romântico do final do séc. XVIII.

II- Desenvolvimento:

tema e assunto

 

Nesta composição é abordado o tema do sofrimento por amor e, quanto ao assunto, comporta uma sucessão de apóstrofes a elementos noctívagos e medonhos, no sentido de só junto a estes o sujeito lírico conseguir algum alento para o seu desespero.

estrutura externa

Trata-se de um poema composto por duas quadras e dois tercetos, que se denomina soneto. Os versos são isométricos, sendo todos decassilábicos. O esquema rimático é o seguinte: abba/abba/cdc/dcd, havendo rima interpolada, emparelhada e cruzada, respectivamente, a, b, c e d. Todos os versos possuem rima grave e consoante. Apenas o grupo de versos 9, 11 e 13 contém rima completa; nos grupos de versos 2 e 3, 6 e 7, 10 e 12 a rima é rica, sendo pobre nos outros casos. Todas as rimas são perfeitas.

estrutura interna

e enunciado descritivo

 

As duas quadras pertencem à tentativa de contacto que o Eu estabelece com a noite, contendo a caracterização desta (amiga, escura, testemunha, confidente, protetora), assim como o pedido explícito que lhe é dirigido (compreensão, apoio, companhia); os tercetos correspondem igualmente a uma tentativa de contacto, sendo os recetores os «cortesãos da escuridade», seguindo-se a mesma estrutura: caracterização destes (assustadores, sombrios) e apelo que lhes é enviado (compreensão, companhia). Assim sendo, as estrofes pares, por serem apelativas, distinguem-se das ímpares, onde o poeta estabelece a identificação entre si e o ambiente noturno.

análise e interpretação:

importância do 1.º v. na mensagem do poema

 

O primeiro verso assume grande importância dentro da mensagem do poema, pois revela a presença de uma entidade abstrata («Noite») que adquire uma força concreta e humana, tendo papel de destaque dentro das relações do sujeito («amiga») – note-se a personificação – e fazendo a maiúscula inicial adivinhar o seu protagonismo. Conduz a uma identificação da noite com a morte – note-se a metáfora – o que deixa antever uma situação de sofrimento/desespero por parte do sujeito poético, pela invocação de duas entidades ligadas à escuridão, à solidão, à fuga; sugere o estado de pessimismo, dramatismo em que o Eu se encontra.

papel da noite

 

O facto de este ansiar pelo momento da noite deve-se à sua vontade de estar só, isolado e afastado daquela que perturba o seu estado de espírito («[] a cruel que a delirar me obriga», v. 8), à necessidade de encontrar a tranquilidade e a acalmia próprias da noite, propícias à introspeção, à intenção de pretender refletir e analisar os seus sentimentos («meu pranto», v. 3; «[] meus desgostos []», v. 4) e de desejar conviver com elementos noturnos («Fantasmas vagos, mochos piadores», v. 10) que, pelo seu aspeto assustador e sombrio, não convivem com elementos diurnos, o que os torna recetores para quem não deseja ver os seus sentimentos divulgados (v. 3).

função apelativa

 

Regista-se a função apelativa da linguagem nas estrofes pares na medida em que o sujeito lírico apela a alguém/algo, neste caso à «Noite amiga», por incumbência de «Amor», aqui também personificado, para que o ampare, deixando-o desabafar na sua presença («Dá-lhes pio agasalho[]», v. 6, «Ouve-os», «ouve», v. 7), bem como aos elementos da noite, pedindo-lhes que o deixem fazer parte do seu grupo para com eles exteriorizar a sua mágoa («Em bandos acudi aos meus clamores», v. 12). Usa, assim, num tom pesaroso, nesta situação, um discurso apelativo, cujas formas verbais estão no imperativo; o discurso é de 2ª pessoa, uma vez que é direcionado para o destinatário das palavras proferidas.

causa do sofrimento

 

Para além da repetição retórica do verbo ouvir no v. 7, o tom lamentoso é acentuado com o uso do vocábulo «pio» que vitimiza o sujeito perante «a cruel». A angústia do sujeito poético ocorre em simultâneo com a tranquilidade, despreocupação da amada («delirar» vs. «dorme»), aqui apresentada com o convencional traço da típica mulher fatal. Note-se a ambiguidade existente no verbo dormir que é sinónimo de sossego para um e desassossego para outro, surgindo reforçado pela expressão «me obriga» – não é voluntário, não é pacífico, não é indolor. Note-se, ainda, que a forma verbal «dorme» pode referir-se também à própria morte ou ausência da amada.

masoquismo

 

 

 


 

ultrarromantismo

 

Pode considerar-se masoquista o conteúdo dos dois últimos versos, nos quais o sujeito manifesta o desejo de se encontrar no meio de fantasmas e mochos, apesar de ter consciência do carácter horrível e mórbido que lhes é inerente: «Quero a vossa medonha sociedade» (v. 13). Na base deste masoquismo, está o desejo de se flagelar, talvez numa tentativa de exteriorizar a sua revolta, a sua angústia ou até de acabar com o sofrimento («Quero fartar meu coração de horrores», v. 14). O sujeito deseja castigar o seu coração, provavelmente por se ter deixado envolver numa relação que o desiludiu e arruinou psicologicamente ou que abruptamente foi quebrada (pela morte/ausência). Hernâni Cidade, a este propósito, afirma que «o último verso deste soneto ultrapassa as medidas românticas, chega aos excessos do ultrarromantismo, de cuja poesia podia ser adotado como legenda».

pré-romantismo

 

Bocage é um autor de transição, assumindo a sua obra e este texto também características neoclássicas e românticas: por um lado, a forma poética (o soneto); a presença da mitologia («Amor»); as alegorias maiusculadas que correspondem à personificação dos conceitos de «Morte» e «Noite»; o hipérbato e quiasmo («Calada testemunha de meu pranto/ De meus desgostos secretária antiga»); as repetições retóricas («Ouve-os, como costumas, ouve []»); a adjetivação e substantivação convencional («calada testemunha», «secretária antiga», «pio agasalho», «cruel»). Por outro lado, a predileção pelos elementos noctívagos, soturnos, fantasmagóricos e inspiradores de medo e horror («locus horrendus») está em clara evidência ao longo de quase todos os versos do soneto (por exemplo, vv. 9-14); o sofrimento advindo de desgosto amoroso é também uma temática frequente da produção desta corrente estética. Este conduz a estados de solidão, isolamento, os quais são propícios a reflexão, a introspeção, canalizando a atenção para si, para ao seu estado de espírito e sentimentos; note-se, por exemplo, a presença no poema de cinco formas verbais e seis pronomes/determinantes na 1.ª pessoa do singular («suspiro», v. 2; «diga», v. 5; «obriga», v. 8; «Quero», vv.13-14; «meu», v.3; «meus», v. 4; «me», v. 8; «eu», v. 11; «meus», v. 12; «meu», v. 14).

III - Conclusão

 

 

O sujeito poético encontra-se em estado de espírito de profunda angústia e desilusão, daí a obsessão pela morte, solução derradeira para os seus problemas.

(Adaptação de: Sugestões de análise com propostas de resolução de textos líricos, Dulce Teixeira e Lurdes Trilho, Porto Ed., 1999)

 


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