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sábado, 11 de março de 2023

Olha, Marília, as flautas dos pastores, Bocage


Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes1!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros2 brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se, os Amores3
Incitam nossos ósculos4 ardentes;
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores;

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha para,
Ora nos ares, sussurrando, gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira
Mais tristeza que a noite me causara.

 

Bocage, Obra Completa – Volume I, edição de Daniel Pires, 2.ª ed., Porto, Caixotim, 2008, p. 37

 

__________

1 cadentes (verso 2) – harmoniosas.

2 Zéfiros (verso 4) – divindades gregas que correspondem aos ventos do ocidente; ventos suaves e agradáveis.

3 Amores (verso 5) – divindades subordinadas a Vénus e a Cupido.

4 ósculos (verso 6) – beijos.

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Identifique quatro dos traços caracterizadores da paisagem descrita no poema.

2. Refira dois dos sentidos através dos quais Marília perceciona o espaço físico envolvente, justificando a resposta com citações do texto.

3. Explicite dois dos valores expressivos produzidos pelo uso da personificação no terceiro verso.

4. Analise o efeito que a presença de Marília causa no estado de espírito do sujeito poético.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Identifica, adequadamente, quatro dos traços caracterizadores da paisagem descrita no poema.

A paisagem, perfeita e idealizada, descrita no poema caracteriza-se, nomeadamente, como:

− bucólica («as flautas dos pastores» – v. 1);

− harmoniosa («Que bem que soam, como estão cadentes!» – v. 2);

− ribeirinha («o Tejo» – v. 3);

− florida («flores» – v. 4);

− colorida («borboletas de mil cores» – v. 8);

− animada pelo movimento dos seres da natureza («Ei-las de planta em planta as inocentes, / As vagas borboletas de mil cores» – vv. 7-8; «a abelhinha para, […] gira» – vv. 10-11) e pelos comportamentos quer das entidades mitológicas («Os Zéfiros brincar por entre as flores» – v. 4; «beijando-se, os Amores» – v. 5), quer do «rouxinol» que «suspira» (v. 9);

− campestre («campo» – v. 12);

− luminosa («Que manhã tão clara!» – v. 12);

− «alegre», refletindo a felicidade do «eu» («Que alegre campo!» – v. 12).

2. Refere dois dos sentidos através dos quais Marília perceciona o espaço físico envolvente, justificando, adequadamente, a resposta com citações do texto.

Os sentidos através dos quais a figura feminina perceciona o espaço físico envolvente são os seguintes:

− a visão, que se revela o modo de perceção predominante, permitindo a Marília captar a diversidade do «alegre campo» (v. 12): «Olha» (vv. 1 e 3); «Vê» (v. 5); «Tudo o que vês» (v. 13);

− a audição, tornando percetível a beleza e a variedade dos sons campestres: «as flautas dos pastores /Que bem que soam» (vv. 1-2); «o rouxinol suspira» (v. 9); «a abelhinha […] / sussurrando» (vv. 10-11);

− o tato, implícito na referência à brisa suave que sopra: «não sentes / Os Zéfiros brincar» (vv. 3-4).

3. Explicita, adequadamente, dois dos valores expressivos produzidos pelo uso da personificação no terceiro verso.

Os valores expressivos da personificação presente no verso 3 («o Tejo a sorrir-se») são, entre outros, os

seguintes:

− atribuir a um elemento da natureza uma emoção própria do ser humano;

− conferir ao rio Tejo o sentimento do «eu» enamorado, alegre pela presença da sua amada;

− representar a natureza como reflexo do estado de alma do sujeito poético, de acordo com os princípios do locus amoenus.

4. Analisa, adequadamente, o efeito que a presença de Marília causa no estado de espírito do sujeito poético.

O efeito que Marília causa no sujeito poético é muito intenso, dado que a presença dela determina o sentimento eufórico do «eu» e, consequentemente, o modo como ele visualiza a natureza. Na verdade, a beleza e a harmonia da paisagem descrita são valorizadas apenas quando o sujeito poético contempla a amada e se sente, por isso, feliz («Que alegre campo!» – v. 12). Ele, de resto, considera que na ausência dela tudo se desvaneceria, dando lugar à dor («Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira / Mais tristeza que a noite me causara.» – vv. 13-14). A presença da figura feminina tem, pois, o poder de transformar o estado emocional do «eu».

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2015, 2.ª Fase

 


 

II - Comentário de texto

Elabore um comentário do poema «Olha, Marília, as flautas dos pastores», de Bocage, que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- partes lógicas constitutivas do texto;

- processos usados na descrição da paisagem;

- relação entre a representação da natureza e o estado emocional do sujeito;

- marcas da estética arcádica.

 

Explicitação de cenários de resposta:

Partes lógicas constitutivas do texto

O poema divide-se em duas partes, correspondendo a primeira aos vv. 1 -12 e a segunda aos vv. 13-14, separadas pela conjunção adversativa «Mas», que introduz uma mudança no discurso.

Na primeira parte, o sujeito poético convida Marília a deleitar-se com os encantos da paisagem, que lhe descreve. Na segunda parte, ao imaginar a natureza na ausência hipotética de Marília, o sujeito é levado a desvalorizar a beleza do cenário: sem a presença da mulher amada, a visão da natureza causar-lhe-ia «mais tristeza que a morte».

 

Processos usados na descrição da paisagem

A descrição da paisagem é, toda ela, uma oferenda a Marília, chamada, por meio de imperativos («Olha», «Vê») e do vocativo inicial, a comprazer-se na sua contemplação.

Nos vv. 1-11, a descrição realiza-se pelo processo de enumeração dos elementos que compõem o cenário («flautas», «Tejo», «Zéfiros», «Amores», «borboletas», «rouxinol», «abelhinha»), caracterizados por verbos («soam», «sorrir-se», «brincar»... ) e por adjetivos («cadentes», «inocentes», «vagas»). Essa enumeração analítica dá lugar, no v. 12, à síntese («campo», «manhã») que contém, resumindo-os, os elementos antes especificados. A dupla conclusiva que encerra a descrição põe em evidência os atributos gerais da natureza: alegria e claridade.

Os elementos paisagísticos surgem quase todos dotados de vida. Para isso contribuem as prosopopeias («o Tejo a sorrir-se», «beijando-se, os Amores», «o rouxinol suspira»... ) e as sugestões luminosas («Que manhã tão clara!»), cromáticas («flores», «borboletas de mil cores»... ), sonoras («as flautas dos pastores», o sussurrar da «abelhinha»...) e de movimento (as borboletas «de planta em planta», a «abelhinha» que ora pára, ora gira…).

 

Relação entre a representação da natureza e o estado emocional do sujeito

A paisagem é descrita como locus amoenus, um ambiente bucólico, pastoril, em que tudo se combina de modo a criar um cenário propício ao deleite e à contemplação. Dos processos descritivos acima mencionados, resulta a evocação de uma natureza alegre e cheia de vida, que apela à fruição através dos sentidos: visão («Olha o Tejo a sorrir-se»... ), audição («as flautas», «o rouxinol», o sussurrar da «abelhinha»), tato («não sentes/ os Zéfiros brincar por entre as fl0res?»).

Os elementos naturais, plenos de força anímica e simbolicamente carregados de sensualidade, manifestam-se em toda a sua exuberância primaveril; a natureza enamorada torna-se alegoria do idílio amoroso. A euforia ambiente harmoniza-se com o estado emocional do sujeito, feliz graças à presença de Marília.

Na segunda parte do poema, sobre a felicidade do sujeito apaixonado perpassa, trazida pela imaginação, uma nuvem de adversidade que o leva a conceber a paisagem na ausência da mulher amada. Todavia, sendo essa ausência puramente retórica, a sombra da morte não é suficiente para obscurecer a luz clara da manhã nem a alegria do sujeito poético.

 

Marcas da estética arcádica

  •  temáticas

- locus amoenus

- idealização da mulher

- …

  •  formais

- soneto

- personificação alegórica da natureza

- léxico greco-latino

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária). Portugal, 1998, 1.ª Fase, 2.ª Chamada

 

 

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