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sábado, 15 de julho de 2023

Mundo grande, Carlos Drummond de Andrade

 


MUNDO GRANDE

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...

Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.

Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
–– Ó vida futura! nós te criaremos.

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Obra completa. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964. p. 116-7.

 


1. Considerando a obra de onde se extraiu o poema “Mundo grande” e a temática nela trabalhada, pode afirmar-se que o sujeito poético, no texto, evidencia

A) a tomada de consciência de quanto ele se distanciou do seu semelhante, ao isolar-se numa atitude investigativa do próprio eu.

B) o comprometimento com uma arte de função eminentemente estética.

C) a autocrítica a uma postura anterior de isolamento em relação ao mundo coletivo.

D) a atitude de egoísmo e de abstração da realidade contemporânea, ao manifestar desejo de ilhar-se, seguindo as ideias e os costumes de uma geração desiludida.

E) a perceção de quehomens isentos da relação solidária com os seus semelhantes.

F) o crescimento humano, ao assumir um compromisso com uma arte de engajamento político-social.

G) a consciência do impasse em que se encontra a sociedade do seu tempo e da sua impotência para imprimir mudanças no processo histórico.

(Fonte: UFBA, 2004 – 1.ª fase – Português. Disponível em http://www.procampus.com.br/vestibular/ufba/provas/2004/1etapa/caderno1et1_04.pdf. Consultado em 10-09-2007)

 

2. Considere, agora, o seguinte poema de Tomás Antônio Gonzaga:

LIRA II (2.ª parte)

Esprema a vil calúnia muito embora
Enter as mãos denegridas, e insolentes,
Os venenos das plantas,
E das bravas serpentes.

Chovam raios e raios, no meu rosto
Não hás de ver, Marília, o medo escrito:
O medo perturbador,
Que infunde o vil delito.

Podem muito, conheço, podem muito,
As fúrias infernais, que Pluto move;
Mas pode mais que todas
Um dedo só de Jove.

Este Deus converteu em flor mimosa,
A quem seu nome dera, a Narciso;
Fez de muitos os Astros,
Qu'inda no Céu diviso.

Ele pode livrar-me das injúrias
Do néscio, do atrevido ingrato povo;
Em nova flor mudar-me,
Mudar-me em Astro novo.

Porém se os justos Céus, por fins ocultos,
Em tão tirano mal me não socorrem;
Verás então, que os sábios,
Bem como vivem, morrem.

Eu tenho um coração maior que o mundo!
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração..., e basta,
Onde tu mesma cabes.

 

Tomás Antônio Gonzaga. Marília de Dirceu, 1792.

 

2.1. Assinale a afirmação correta sobre os dois textos:

A) Por pertencer à fase heroica ou iconoclasta do Modernismo, Carlos Drummond de Andrade parodia o lirismo sentimental do árcade Tomás Antônio Gonzaga.

B) Enquanto o poeta do Arcadismo, Gonzaga, expressa seu sentimento pela musa Marília, o modernista Drummond reporta- -se, nesse trecho, às divergências ideológicas.

C) Gonzaga, como muitos árcades, é alheio ao que está a seu redor, já Drummond expressa um sentimento de revolta ante um mundo que não compreende as dores do poeta.

D) Em Gonzaga, o coração do poeta alcança a plenitude com a presença da amada. Em Drummond, o coração é insuficiente para abarcar as próprias dúvidas existenciais.

E) Tomás A. Gonzaga usa a imagem do “mundo” para instigar a musa Marília a aceitá-lo; Drummond retoma o procedimento do poeta árcade, ressaltando o sofrimento por causa da amada.

(Correção: alínea D. Fonte: ESPM, 2019/1. Disponível em https://www.aio.com.br/questions/content/considere-os-textos-que-seguem-eu-tenho-um-coracao-maior-que-o-mundo-tu - consultado em 2023-07-14)

 

2.2. Observe que Carlos Drummond de Andrade recupera a última estrofe de Tomás Antônio Gonzaga no seu poema. Considerando a relação intertextual entre ambos os poemas, explique, sem transcrever qualquer excerto do poema, por que Gonzaga julga o seu coração “maior do que o mundo”.

(Proposta de resposta: No poema de Gonzaga, o sujeito poético julga o seu coração “maior do que o mundo” porque o sentimento amoroso idealizado na figura de Marília vai além das injustiças do mundo. Há a supervalorização do amor e do protagonismo feminino. Já no poema de Drummond, o sujeito poético reconhece as suas próprias limitações diante dos problemas da vida. Para se vencer os obstáculos, uma visão coletiva e não individualista deve prevalecer.)

 

2.3. Ambos os poemas trazem uma segunda pessoa, “tu”, para quem cada sujeito poético confessa as suas angústias. No caso de Carlos Drummond de Andrade, estas angústias também se revelam quanto ao próprio processo da escrita. Transcreva do poema “Mundo grande” apenas um verso em que se faz claramente essa referência metalinguística, explicando, com suas palavras, de acordo com o contexto apresentado, o motivo da angústia.

(Proposta de resposta: Cita um dos seguintes versos com clara referência metalinguística: “Por isso gosto tanto de me contar” / “Por isso me dispo” / “por isso me grito” / “por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias”

Na segunda parte da questão, deve mencionar que o sujeito poético tem consciência das mazelas e dores do mundo, e que a sua angústia vem do sentimento de incapacidade perante os sofrimentos e injustiças dos homens, que ele considera maiores do que o seu coração.)

 

2.3. A partir da comparação entre os dois poemas, e considerando que o coração é metáfora para o sentimento amoroso, identifique qual o objeto de amor do poeta, tanto no poema “Lira I”, de Tomás Antonio Gonzaga, como no poema “Mundo grande”, de Carlos Drummond de Andrade.

(Proposta de resposta: O objeto de amor do poema de Tomás Antônio Gonzaga é Marília, a mulher que o sujeito poético ama. Já no poema de Carlos Drummond de Andrade, o objeto de amor é todo o mundo e as suas dores, que o seu coração, pequeno, não suporta.)

(Fonte: adaptado de UFJF– Módulo III DO PISM – Triénio 2012-2014 – Prova Literaturas. Disponível em https://www2.ufjf.br/copese/files/2010/04/LITERATURA.pdf - consultado em 2023-07-14)

 



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