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sexta-feira, 14 de julho de 2023

O amor bate na aorta, Carlos Drummond de Andrade


Produções Fictícias, 2005

 

O AMOR BATE NA AORTA

 

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

 

Carlos Drummond de Andrade


 

 

Análise do poema “O amor bate na aorta”

O texto estrutura-se na dicotomia corpo vs. alma / concreto vs. abstrato, partindo de associações sonoras e de sentido:

associação sonora

porta/aorta/horta

associação de sentido

aorta/constipei/cardíaco

 

boca murcha/velho

 

corpos/almas/beijos/mãos

 

As associações de sentido criam imagens contraditórias:

uvas verdes

desejos maduros

ácidos

Adoçam

dentes

não mordem

braços

não prendem

 

O poema é construído do plano denotativo para o conotativo e o amor personificado vai ganhando novas dimensões, com base em um processo polissémico:

o amor bate na porta
o amor bate na aorta
o amor ronca na horta
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
o amor propõe uma geometria

e finalmente aparece o amor irritado, desapontado.

Como vimos, a metáfora pode ser definida como uma transferência de significado que tem como base uma analogia. Em “Amor é bicho instruído”, o campo de abrangência do vocábulo amor é ampliado e toda a sequência vai mostrar essa característica: amor = bicho instruído pulou o muro/subiu na árvore/se estrepou.

Na última estrofe do poema, os versos seguem esse processo de ampliação, através da repetição do verbo vejo, da presença de nome e verbo com o mesmo radical - beijos que se beijam - e de uma certa quebra ou desvio semântico - ouço mãos que se conversam / e que viajam sem mapa - em que as imagens sinestésicas mostram bem a abrangência a que nos referimos: ouço/mãos/conversam/viajam.

vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.

Outro ponto que nos chama a atenção no texto é o emprego dos tempos verbais. O modo é o indicativo, o modo da realidade. Um rápido levantamento mostra-nos o predomínio de verbos no presente, empregado no sentido atemporal, como forma de generalização. As poucas ocorrências de verbos no passado, no pretérito perfeito, portanto no aspecto concluso, apontam para as ações que se desenvolvem no texto: pulou/subiu/estrepou. Assim, podemos perceber no poema um lado descritivo, plástico, de quadro à nossa frente, e um outro lado, o narrativo, na penúltima estrofe. 

Disponível em: http://acd.ufrj.br/~pead/tema11/metafora.html (consultado em: 10-09-2007)

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