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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

AO PRINCÍPIO ERA O LIVRO (Natália Correia)

Tertúlia em casa de Natália Correia.

 

O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor. Mas esse percurso não seria possível se dele não fossem motores o editor e o livreiro, figuras por vezes obscuras, mas não menos importantes na marcha do livro para o seu destino universal.

Contudo não é sem razão que hoje se levanta um alarme. Agouros tecnológicos de entre os quais avulta a aldeia global de MacLuan vaticinam, se não a liquidação do livro pela hipnose dos meios dos meios audio-visuais, pelo menos a grande redução do seu espaço. Ai de nós se assim for. Porque a audiovisualidade por mais apuradamente cultural que seja e dificilmente o será, não permite a retenção da palavra, o voltar atrás que a escrita faculta, elementos indispensáveis à reflexão, do exercício da memória e ao despertar da subjectividade cada vez mais apoucada pela tirania da massificação.

Dignificar o livro e promover a sua expansão é, pois, obra de quantos se empenham em salvaguardar os valores individualizantes que poderão resistir à imbecilização de uma humanidade puerilizada pelo igualitarismo da quantificação tecnológica.

Quando Gutemberg inventou o prelo tipográfico, alguns viram nesse meio de democratização dos conhecimentos obra faustica de um pacto com o diabo. E ainda Lope de Vega nela denunciava o perigo de abandalhar pela quantidade o que devia ser património da qualidade. Contudo, hoje, por ironia da mudança dos tempos e das vontades, é nesse produto nobre da tipografia que residem as virtudes da defesa do qualitativo da tecnologia globalista que despersonaliza e que desidentifica, que anula os indivíduos. Bem hajam, pois, os que nesta ilha confirmam a tradição da bibliofilia que tanto a tem ilustrado e a dotam com mais um instrumento de cultura. Porque esta é a própria condição do fortalecimento da personalidade açórica e da sua invulnerabilidade à usura de um Estado centralizador, que no seu narcisismo, se condena a afundar-se nas águas fatais da autocontemplação, tragicamente alheio a realidades indefectíveis como esta: açorianidade!

Natália Correia, “Ao princípio era o Livro” - discurso proferido aquando da inauguração da livraria Nove Estrelas, dirigida por José de Almeida, em 07-12-1981.

(Partilhado por Carlos Melo Bento, em https://www.facebook.com/carlos.melobento, 23-09-2023)


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