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domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.

 


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