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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Receitas de Ano Novo e uma definição de Poeta

 


Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

 

Carlos Drummond de Andrade, Discursos de Primavera e Algumas Sombras. São Paulo, Companhia das Letras, 1977

 

"Receita de Ano Novo" - ilustração de Sónia Oliveira (in Letras & Companhia 9, 2013)


Pode causar estranheza ao leitor porque a receita é um texto de caráter utilitário, normalmente utilizado para orientação de quem cozinha, e o título em causa pertence a um poema, que é um texto literário. Além disso, indica como se pode obter algo imaterial – um bom Ano Novo.

De acordo com o sujeito poético, quatro ingredientes um Ano Novo terá de ter para ser “belíssimo”: ter a cor do arco-íris ou a cor da sua paz; ser incomparável com outros anos mal vividos ou sem sentido; ser novo nas sementinhas e no coração, espontâneo; ser tão perfeito no dia a dia que passe despercebido.

O poeta dirige-se a quem pretende “ganhar um Ano Novo”, referindo, por exemplo, que não valerá a pena beber champanhe, enviar ou receber mensagens ou acreditar que, a partir de janeiro, as coisas mudam.

O interlocutor, para o conseguir, terá de lutar por ele, de merecê-lo e de procurá-lo dentro de si. 

Carla Marques e Inês Silva, Letras & Companhia - Português 9.º Ano. Lisboa, Edições Asa, 2013



Download do vídeo disponível aqui.

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Boas saídas e entradas

Ainda ontem

Tentei fazer uma crítica do que me aconteceu em 2023 como se estivesse a avaliar um telemóvel. De um lado do caderno listei os prós e, do outro, os contras.

Os prós esgotaram-se num instante e amaldiçoei a estrutura binária que dei à minha avaliação, levando ao desperdício da primeira metade do caderno, quase todo vazio.

E logo ali aprendi uma primeira lição. Esta mania dos prós e contras, de dividir tudo em dois, como se os positivos e negativos se equilibrassem e, pior ainda, como se fossem importantes, esta mania só mostra uma coisa: que já estamos a ditar a resposta que queremos (que é aquela que nos dá jeito, que dá pouco trabalho, e se compreende facilmente), mesmo antes de fazermos a pergunta.

Schopenhauer, condenado a ser lido quando estamos mais próximos dos vinte anos do que qualquer ser humano merece estar, fazia questão de dizer que o prazer, num mundo cheio de sofrimento, é apenas a ausência de sofrimento.

Mas que ausência! Que gloriosa ausência, a demonstrar a ironia daquele “apenas”!

Quando comecei a pôr nos “prós” os dias em que não acordei com dores, os dias em que não pus em causa o sentido da vida, e as manhãs e tardes em que nenhuma enxaqueca me visitou, o caderno encolheu de um momento para o outro.

É sempre bom ler os pessimistas. Mas há um género de pessoa que abomino: aquele que lê os pessimistas só para se sentir melhor. É o equivalente filosófico de começar a ler o jornal pela necrologia e pelas tragédias.

Essas pessoas não aguentam que haja quem seja menos miserável do que elas. Tendo os pessimistas por companhia exclusiva, asseguram-se que são os pintainhos menos deprimidos do curral.

Schopenhauer era um grande escritor, cheio de ideias, que falava de tudo e de alguma coisa, e que não tinha medo nenhum de se pronunciar sobre as grandes questões da vida. Foi condenado a ser julgado sem ser lido: uma tragédia (para os não-leitores) que nem o próprio Schopenhauer teria apreciado.

Boas entradas!

 

Crónica de Miguel Esteves Cardoso, jornal Público, 31-12-2023


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Antes de acabar o ano gostaria de deixar uma definição de poeta que pode ajudar a enfrentar as agruras do próximo ano.

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura cómica.

Obviamente haverá outras definições e também serão boas. Conheço muita rapaziada para quem poeta é quem está macambúzio, ou a vomitar as entranhas, de preferência à beira de uma sarjeta no Bairro Alto. Feitios.

E obviamente que ser poeta não nos protege de um tiro, uma conta da água, uma perna partida, uma expulsão do apartamento, uma perda de emprego, uma doença má tipo gripe, cancro ou joanetes.

Ainda assim, não desajuda. E com uma depressão é um pequeno mecanismo mental (traduzo para os mainovos: uma app) que pode fazer milagres, com a vantagem de não vir em comprimido. E o lado bom é que, com o treino, vicia.

Repito, até porque a repetição faz parte da poesia:

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura. De preferência, cómica.

Rui Zink, https://www.facebook.com/rui.zink.7/posts/10160374955862968, 30-12-2023



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