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domingo, 14 de abril de 2024

Um olho perdido em Ceuta | Camões: 500 anos


 

Se lermos as biografias de Camões (as primeiras são do século XVII), encontraremos a informação de que o poeta cumpriu serviço militar em Ceuta, onde a sua valentia destemida levou à perda de um olho. No entanto, a primeiríssima biografia de Camões (escrita por Pedro de Mariz e publicada em 1613) omite qualquer referência a Ceuta. E também não menciona que Camões tenha perdido um olho.

A estadia de Camões em Ceuta é referida pela primeira vez por Manuel Severim de Faria, na sua biografia camoniana de 1624. E referida, problematicamente, em termos que nos poderiam suscitar esta pergunta: será que Camões esteve mesmo em Ceuta?

A única base em que o biógrafo de 1624 se apoia é uma extrapolação que ele próprio faz a partir da Elegia 2 («Aquela que de amor descomedido»). Nesse poema, há uma passagem onde o Eu lírico diz que está «gastando a vida trabalhosa... ao longo de ũa praia saüdosa».

A praia não é identificada. Mas, mais à frente, o poeta diz que sobe (como se fosse um passeio regular) até ao monte de Hércules perto do mar Mediterrâneo, onde imagina Hércules a matar a serpente que guardava o jardim das Hespérides. Diz também que «estou afigurando / o poderoso Anteu», isto é, o gigante mitológico, morto por Hércules, cujo alegado túmulo ficava perto de Tânger.

A base em que assenta a ideia do serviço militar em Ceuta resume-se a estes versos de sabor fantasista sobre Hércules; num poema, de resto, que nunca alude directamente ao serviço militar; e onde não ocorre a palavra «Ceuta».

Dir-se-á que, no conjunto de quatro cartas em prosa atribuídas a Camões, há uma carta que, nas edições modernas, tem a epígrafe «Escrita de Ceuta». Mas essa epígrafe está ausente da primeira edição (1598). E, na carta propriamente dita, não ocorre a palavra «Ceuta».

Mas não percamos de vista essas cartas escritas por Camões. Pois uma delas é especialmente interessante: contém uma passagem que permitiu ao biógrafo de 1624 deduzir que o problema oftalmológico de Camões ocorrera em Ceuta. Trata-se da carta escrita na Índia em 1553, onde Camões fala de um amigo lisboeta que, «tal como eu, manqueja de um olho». (Já agora, note-se que Camões escreve «tal como eu» em latim.)

O biógrafo de 1624 deduziu, assim, que o problema oftalmológico não podia ter acontecido na Índia, uma vez que Camões se refere a ele como facto já conhecido em Portugal: Camões já teria feito a viagem até à Índia a «manquejar» de um olho. O problema já vinha de trás.

Em que circunstâncias é que Camões teria ficado a manquejar de um olho? O biógrafo seiscentista deduziu que a lesão teria ocorrido em contexto militar, baseando-se noutro poema de Camões, onde se lêem estes versos bastante difíceis de entender:

«Agora, experimentando a fúria rara / de Marte, que cos olhos quis que logo / visse e tocasse o acerbo fruto seu; / e neste escudo meu / a pintura verão do infesto fogo» (Canção 10.167-169).

Como fazer sentido destes versos?

Tentemos. O «escudo meu» pode equivaler a «rosto meu». A «pintura do infesto fogo» pode ser a cicatriz provocada pelos estilhaços de um tiro de canhão. A «fúria rara de Marte» será a guerra. Quanto às palavras iniciais da citação, talvez signifiquem algo como isto: «Marte quis eu visse e tocasse logo com os olhos o fruto amargo da guerra». Ou seja, «Marte quis que eu ficasse imediatamente com um problema nos olhos por causa da guerra».

Repare-se que, neste poema, Camões fala em «olhos», no plural. Mas, na carta escrita da Índia, fala em manquejar de «um olho».

Independentemente disso, temos dois problemas:

(1) O primeiro problema é que inferência de que Camões esteve em Ceuta está ferida de circularidade: o biógrafo chegou a essa ideia sem comprovação externa, baseando-se somente na sua interpretação de um poema onde se fala de forma muito vaga em Hércules e nas Hespérides. É um poema, ainda para mais, que aposta insistentemente no vocabulário da imaginação, o que o torna ainda mais vago («afiguro na lembrança»; «estou afigurando»; «nunca perderei da fantasia»).

(2) O segundo problema é o facto de a lesão oftalmológica, supostamente ocorrida em Ceuta, também constituir uma extrapolação: para ela fazer sentido, temos de juntar as peças de dois textos camonianos diferentes (a Canção 10 e a carta escrita na Índia).

A questão complica-se quando nos damos conta de que, na primeira edição (1595) do poema alegadamente escrito em Ceuta, lemos esta epígrafe: «A D. António de Noronha estando na Índia». Como assim, na Índia?! Se este D. António de Noronha é o seu jovem amigo (que nunca esteve na Índia), a epígrafe só pode significar que é o poeta que está a escrever na Índia. Nesse caso, estaria a lembrar (ou a imaginar) a praia de Ceuta e os lugares míticos de Hércules. Ao contrário da lua de Álvaro de Campos, diríamos que Ceuta começa a afigurar-se menos real.

Mais uma complicação: José Hermano Saraiva achava que a tal carta escrita da Índia (que é o único registo escrito no século XVI a dizer-nos que Camões «manquejava» de um olho) era uma falsificação. Os estudiosos de Camões, de um modo geral, não lhe têm dado crédito. Mas eu pergunto: e se se desse o caso de a carta da Índia não ser autêntica? E de a elegia, supostamente escrita em Ceuta, ter sido um devaneio escrito na Índia, a imaginar uma estadia em Ceuta?

Ficaríamos ainda mais inseguros a respeito de um «facto» que todos pensamos saber sobre Camões: que ele esteve em Ceuta, onde perdeu um olho.

Só mais uma dúvida: qual dos dois olhos faltava a Camões? Desde o primeiro retrato conhecido do Poeta (o de Fernão Gomes, ao que parece feito em vida do poeta, talvez entre 1573 e 1576), o problema oftalmológico incide sempre no olho direito.

O saudoso Vasco Graça Moura comentava, porém, que alguns ilustradores mais tardios transferiram a lesão para o olho esquerdo, dando a imagem de um poeta que - sim - era cego num dos olhos: só que (se não estamos em erro...) no olho errado.

Um olho perdido em Ceuta | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 14-04-2024

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