Se lermos
as biografias de Camões (as primeiras são do século XVII), encontraremos a
informação de que o poeta cumpriu serviço militar em Ceuta, onde a sua valentia
destemida levou à perda de um olho. No entanto, a primeiríssima biografia de
Camões (escrita por Pedro de Mariz e publicada em 1613) omite qualquer
referência a Ceuta. E também não menciona que Camões tenha perdido um olho.
A estadia
de Camões em Ceuta é referida pela primeira vez por Manuel Severim de Faria, na
sua biografia camoniana de 1624. E referida, problematicamente, em termos que
nos poderiam suscitar esta pergunta: será que Camões esteve mesmo em Ceuta?
A única
base em que o biógrafo de 1624 se apoia é uma extrapolação que ele próprio faz
a partir da Elegia 2 («Aquela que de amor descomedido»). Nesse poema, há uma
passagem onde o Eu lírico diz que está «gastando a vida trabalhosa... ao longo
de ũa praia saüdosa».
A praia
não é identificada. Mas, mais à frente, o poeta diz que sobe (como se fosse um
passeio regular) até ao monte de Hércules perto do mar Mediterrâneo, onde
imagina Hércules a matar a serpente que guardava o jardim das Hespérides. Diz
também que «estou afigurando / o poderoso Anteu», isto é, o gigante mitológico,
morto por Hércules, cujo alegado túmulo ficava perto de Tânger.
A base em
que assenta a ideia do serviço militar em Ceuta resume-se a estes versos de
sabor fantasista sobre Hércules; num poema, de resto, que nunca alude
directamente ao serviço militar; e onde não ocorre a palavra «Ceuta».
Dir-se-á
que, no conjunto de quatro cartas em prosa atribuídas a Camões, há uma carta
que, nas edições modernas, tem a epígrafe «Escrita de Ceuta». Mas essa epígrafe
está ausente da primeira edição (1598). E, na carta propriamente dita, não
ocorre a palavra «Ceuta».
Mas não
percamos de vista essas cartas escritas por Camões. Pois uma delas é
especialmente interessante: contém uma passagem que permitiu ao biógrafo de
1624 deduzir que o problema oftalmológico de Camões ocorrera em Ceuta. Trata-se
da carta escrita na Índia em 1553, onde Camões fala de um amigo lisboeta que,
«tal como eu, manqueja de um olho». (Já agora, note-se que Camões escreve «tal
como eu» em latim.)
O
biógrafo de 1624 deduziu, assim, que o problema oftalmológico não podia ter
acontecido na Índia, uma vez que Camões se refere a ele como facto já conhecido
em Portugal: Camões já teria feito a viagem até à Índia a «manquejar» de um
olho. O problema já vinha de trás.
Em que
circunstâncias é que Camões teria ficado a manquejar de um olho? O biógrafo
seiscentista deduziu que a lesão teria ocorrido em contexto militar,
baseando-se noutro poema de Camões, onde se lêem estes versos bastante difíceis
de entender:
«Agora,
experimentando a fúria rara / de Marte, que cos olhos quis que logo / visse e
tocasse o acerbo fruto seu; / e neste escudo meu / a pintura verão do infesto
fogo» (Canção 10.167-169).
Como
fazer sentido destes versos?
Tentemos.
O «escudo meu» pode equivaler a «rosto meu». A «pintura do infesto fogo» pode
ser a cicatriz provocada pelos estilhaços de um tiro de canhão. A «fúria rara
de Marte» será a guerra. Quanto às palavras iniciais da citação, talvez
signifiquem algo como isto: «Marte quis eu visse e tocasse logo com os olhos o
fruto amargo da guerra». Ou seja, «Marte quis que eu ficasse imediatamente com
um problema nos olhos por causa da guerra».
Repare-se
que, neste poema, Camões fala em «olhos», no plural. Mas, na carta escrita da
Índia, fala em manquejar de «um olho».
Independentemente
disso, temos dois problemas:
(1) O
primeiro problema é que inferência de que Camões esteve em Ceuta está ferida de
circularidade: o biógrafo chegou a essa ideia sem comprovação externa,
baseando-se somente na sua interpretação de um poema onde se fala de forma
muito vaga em Hércules e nas Hespérides. É um poema, ainda para mais, que
aposta insistentemente no vocabulário da imaginação, o que o torna ainda mais
vago («afiguro na lembrança»; «estou afigurando»; «nunca perderei da
fantasia»).
(2) O
segundo problema é o facto de a lesão oftalmológica, supostamente ocorrida em
Ceuta, também constituir uma extrapolação: para ela fazer sentido, temos de
juntar as peças de dois textos camonianos diferentes (a Canção 10 e a carta
escrita na Índia).
A questão
complica-se quando nos damos conta de que, na primeira edição (1595) do poema
alegadamente escrito em Ceuta, lemos esta epígrafe: «A D. António de Noronha
estando na Índia». Como assim, na Índia?! Se este D. António de Noronha é o seu
jovem amigo (que nunca esteve na Índia), a epígrafe só pode significar que é o
poeta que está a escrever na Índia. Nesse caso, estaria a lembrar (ou a
imaginar) a praia de Ceuta e os lugares míticos de Hércules. Ao contrário da
lua de Álvaro de Campos, diríamos que Ceuta começa a afigurar-se menos real.
Mais uma
complicação: José Hermano Saraiva achava que a tal carta escrita da Índia (que
é o único registo escrito no século XVI a dizer-nos que Camões «manquejava» de
um olho) era uma falsificação. Os estudiosos de Camões, de um modo geral, não
lhe têm dado crédito. Mas eu pergunto: e se se desse o caso de a carta da Índia
não ser autêntica? E de a elegia, supostamente escrita em Ceuta, ter sido um
devaneio escrito na Índia, a imaginar uma estadia em Ceuta?
Ficaríamos
ainda mais inseguros a respeito de um «facto» que todos pensamos saber sobre
Camões: que ele esteve em Ceuta, onde perdeu um olho.
Só mais
uma dúvida: qual dos dois olhos faltava a Camões? Desde o primeiro retrato
conhecido do Poeta (o de Fernão Gomes, ao que parece feito em vida do poeta,
talvez entre 1573 e 1576), o problema oftalmológico incide sempre no olho
direito.
O saudoso
Vasco Graça Moura comentava, porém, que alguns ilustradores mais tardios
transferiram a lesão para o olho esquerdo, dando a imagem de um poeta que - sim
- era cego num dos olhos: só que (se não estamos em erro...) no olho errado.
“Um olho
perdido em Ceuta | Camões: 500 anos”, Frederico
Lourenço, Coimbra, 14-04-2024
Texto partilhado na sua
página do Facebook
Sem comentários:
Enviar um comentário