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terça-feira, 30 de julho de 2024

Meu coração é como um peixe cego, Vitorino Nemésio

 

Obra artística de Vitorino Nemésio construída
na Escola Secundária Vitorino Nemésio, 2018






5





10





15

Meu coração é como um peixe cego,
Só o calor das águas o orienta,
E por isso me arrasta aonde me nego;
De puros impossíveis me sustenta.

O que eu tenho sentido é mais que mar;
Em força e azul, cinco oceanos soma:
Mas ainda há a tristeza a carregar
E as coisas que só pesam pelo aroma.

Há o país da espera e dos sinais,
Se feitos, apagados na neblina,
E a terra de tudo e muito mais,
Onde a minha alma é quase uma menina.

Sentada no jardim de nunca, a triste!
Se vale a pena em flor, essa ainda rego.
Tudo o mais – nem me agrava, nem existe:
Árida1 distração, lânguido2 apego.


Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste, 1940

_______

Notas: 1. árida: estéril, seca, pobre. 2. lânguido: que não tem forças, abatido, fraco.

 

QUESTIONÁRIO

De acordo com a leitura do poema, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas. 

1. O poema apresenta um esquema rimático fixo, com rima cruzada em todas as estrofes.

2. A comparação “Meu coração é como um peixe cego” (v. 1) sugere a desorientação do sujeito poético, que se sente perdido e sem direção.

3. A expressão “puros impossíveis” (v. 4) sugere que o sujeito poético se alimenta de esperanças realizáveis.

4. O sujeito poético sente que os seus sentimentos são comparáveis a um pequeno lago.

5. O poema utiliza a conjunção “Mas”, no verso 7, para introduzir a alegria e satisfação do sujeito poético.

6. A conjunção “Mas” no verso 7 indica que, apesar da vastidão dos seus sentimentos, a tristeza é uma presença constante.

7. O “país da espera e dos sinais” (v. 9) representa um lugar de certeza e realização.

8. A terceira estrofe refere-se a sinais claros e visíveis que guiam o sujeito poético.

9. A metáfora da alma “quase uma menina” (v. 12) indica a vulnerabilidade e a pureza do sujeito poético, que se sente exposto e frágil no meio das suas emoções.

10. O sujeito poético sente-se indiferente em relação a tudo, exceto às suas esperanças frágeis, conforme descrito na última estrofe.

11. A imagem do “jardim de nunca” (v. 13) na última estrofe simboliza um lugar de realizações e conquistas.

12. A expressão “árida distração, lânguido apego” (v. 16) sugere que a maior parte da vida do sujeito poético é estéril e sem vitalidade.

13. O uso do ponto de exclamação na última estrofe reforça a intensidade emocional do sujeito poético.

 

Respostas:

1. Verdadeiro.

2. Verdadeiro.

3. Falso. A expressão “puros impossíveis” indica que o sujeito poético se sustenta de sonhos e idealizações que não podem ser alcançadas, destacando a sua tendência para se nutrir de ilusões.

4. Falso. O sujeito poético utiliza a hipérbole para expressar a intensidade dos seus sentimentos, comparando-os a “cinco oceanos” em força e azul.

5. Falso. A conjunção “Mas” é utilizada para introduzir a tristeza como parte das emoções do sujeito poético, contrastando com a imensidão de sentimentos descritos antes.

6. Verdadeiro.

7. Falso. O “país da espera e dos sinais” representa um lugar de incerteza e expectativa, onde os sinais são “apagados na neblina”.

8. Falso. Na terceira estrofe, os sinais são descritos como “apagados na neblina”, sugerindo falta de clareza e orientação.

9. Verdadeiro.

10. Verdadeiro.

11. Falso. O “jardim de nunca” simboliza a eterna espera e a impossibilidade de concretização, um lugar onde os desejos e esperanças do sujeito poético nunca se realizam.

12. Verdadeiro.

13. Verdadeiro.

 


segunda-feira, 29 de julho de 2024

Dança do Vento, Afonso Lopes Vieira

 



DANÇA DO VENTO

Cruel vento, cruel vento,
ah!, roubador maioral!

Romanceiro

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às flores, bailando:
— Bailai comigo, bailai!
E elas, curvadas, arfando,
começam, débeis, bailando,
e suas folhas, tombando,
uma se esfolha, outra cai,
e o vento as deixa, abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às altas ramadas:
— Bailai comigo, bailai!
E elas sentem-se agarradas,
bailam no ar desgrenhadas,
bailam com ele assustadas,
já cansadas, suspirando,
e o vento as deixa, abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às folhas caídas:
— Bailai comigo, bailai!
No quieto chão remexidas,
as folhas, por ele erguidas,
pobres velhas ressequidas
e pendidas como um ai,
bailam, doidas e chorando,
e o vento as deixa abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às ondas que rolam:
— Bailai comigo, bailai!
E as ondas no ar se empolam,
em seus braços nus o enrolam,
e batalham,
e seus cabelos se espalham
nas mãos do vento, flutuando,
e o vento as deixa, abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz à chuva caindo:
— Bailai comigo, bailai!
E ao de ela seu corpo unindo,
beija-a na boca, sentindo
que ela o abraça sorrindo
e desmaia, volteando,
e já verga ao beijo, e cai,
e o vento a deixa, abalando,
— e lá vai!...

 

Afonso Lopes Vieira, Canções do Vento e do Sol. Lisboa, Typ. «A Editora», [1911]. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7894

 

Typ. «A Editora», [1911]


De acordo com a leitura do poema “Dança do Vento”, de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas. 

1. O poema "Dança do Vento" retrata o vento como um elemento estático da natureza.

2. O vento é descrito como uma força destrutiva e violenta sem qualquer beleza ou graça.

3. O vento é personificado como um bailarino incansável.

4. No poema, as flores, ramadas, folhas, ondas e chuva são personificadas.

5. A repetição de frases e estruturas no poema cria um efeito de monotonia e estagnação.

6. A palavra “baila” é repetida várias vezes no poema, criando um ritmo dançante.

7. O poema sugere que o vento apenas causa destruição e não possui qualquer aspeto positivo.

8. As folhas caídas são descritas como envelhecidas, secas e inclinadas como um suspiro.

9. A personificação do vento cria uma ligação emocional entre o leitor e os elementos naturais descritos.

10. O poema termina cada estrofe com a imagem do vento a afastar-se, sugerindo um ciclo contínuo.

11. Cada estrofe termina com a frase "— e lá vai!...", sugerindo um ciclo contínuo de movimento.

12. O poema inclui um diálogo direto do vento com os elementos da natureza.

13. A dualidade entre a beleza e a crueldade do vento é uma temática presente no poema, ecoando a epígrafe que menciona o vento como "cruel" e "roubador maioral".

14. O vento simboliza a estabilidade e permanência da vida.

 

Respostas:

1. Falso. O poema retrata o vento como um elemento dinâmico - O título “Dança do Vento” sugere movimento e ritmo.

2. Falso. O vento é descrito como um "bom bailador" que se move com graça e leveza.

3. Verdadeiro.

4. Verdadeiro.

5. Falso. A repetição cria um efeito cumulativo que enfatiza a persistência e a presença constante do vento.

6. Verdadeiro.

7. Falso. Embora o vento cause algum impacto negativo, ele é também retratado de forma encantadora e graciosa.

8. Verdadeiro (As folhas caídas são descritas como “pobres velhas ressequidas e pendidas como um ai.”)

9. Verdadeiro.

10. Verdadeiro.

12. Verdadeiro.

12. Verdadeiro.

13. Verdadeiro

14. Falso. O vento simboliza a mudança constante e a efemeridade da vida.

 


domingo, 28 de julho de 2024

A rainha de Kachmir, Gomes Leal

 



A RAINHA DE KACHMIR

O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir1
Era a diamantes bordado,
Como luar num terrado2!...
Parecia o céu estrelado
Ou a visão de um faquir3
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.

Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince4!...
Nenhuma vista, nenhum
Jurará se é neve ou pluma,
Se é leite, ou astro, ou espuma,
Nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!

Levava, nas mãos patrícias5,
Leque de rendas e sândalo6...
Oh! que mãozinhas... delícias
Para amimar com blandícias,
Para beijar com carícias,
Que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo.

Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura7 e arminhos8,
Não rojava9 nos caminhos,
Pois sua cauda, aos saltinhos,
Levava-a um núbio muleque10.
Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!

Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
Da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
Fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...

Pegou no copo, com graça,
E brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
Como a um punhal que a trespassa,
Encheu de prantos a taça,
E o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixinho, ao ouvir, com graça,
Esse brinde, em língua estranha!

Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
Chorou, num pranto sumido,
O seu passado perdido,
Os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis.

Quem era o moço viajante
Que fez turbar11 a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
Tão leal e tão constante,
Que, do seu reino distante,
Brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
Que fez turbar a rainha.

Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
Ficou de pranto alagado
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!...

 

Gomes Leal (1848-1921)

 

____________

Notas: 1. Região da Índia. 2. Terraço, terreno. 3. Asceta indiano. 4. Desvende. 5. Nobres. 6. Madeira perfumada. 7. Tecido vermelho usado pelos nobres. 8. Pele branca e rara. 9. Arrastava. 10. Rapaz africano (da Núbia, Norte do Sudão). 11. Perturbar.

 

Leitura

O poema "A Rainha de Kachmir" é um texto lírico de Gomes Leal, um poeta português do século XIX e início do século XX, cujo estilo é marcado pelo simbolismo e pelo romantismo tardio.

Desde o início, o poema destaca a opulência e a beleza do vestido de noivado da rainha de Kachmir, bordado com diamantes, comparado a "luar num terrado" e ao "céu estrelado". Essa imagem estabelece um contraste entre a riqueza material e a fragilidade emocional que será explorada posteriormente. As descrições detalhadas dos acessórios e do vestuário da rainha - leque de rendas e sândalo, manto de púrpura e arminhos, sapatinhos de cor da lua - sublinham a estética visual, criando um cenário de grande esplendor e requinte. A repetição de frases e palavras-chave, como "O vestido de noivado" e "Levava, nas mãos patrícias", cria um efeito hipnótico e sublinha a importância desses elementos no contexto do poema. A repetição serve também para enfatizar a constante presença do passado e da dor emocional, que persiste apesar das circunstâncias presentes.

O clímax emocional do poema ocorre com a entrada do "moço estrangeiro", que interrompe a celebração da boda. Essa personagem, revelada posteriormente como o primeiro amante da rainha, simboliza o retorno de um passado não resolvido. A reação da rainha, descrita com detalhes sensíveis como "a vista baça" e o pranto que enche "a taça" e "os anéis", sugere uma dor profunda e um conflito interno entre o dever presente e os sentimentos passados.

A saudade é um tema central no poema, manifestada através do pranto da rainha que "encheu de pranto o vestido" e os "anéis". A presença do antigo amante reaviva memórias de um amor perdido, contrastando com a opulência do presente. O poema enfatiza que mesmo os bens materiais mais preciosos não podem suprimir a dor de uma perda emocional. O último verso, "Saudades de amor quebrado / Fazem lágrimas cair!", contém a essência melancólica do poema, refletindo a inevitabilidade do sofrimento amoroso.

 


sábado, 27 de julho de 2024

Pastoral, António Gedeão


 

PASTORAL

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes,
nos atos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

 

António Gedeão, Teatro do mundo. Coimbra: Oficinas da Atlântida, 1958

 

Sobre o poema

António Gedeão começa por constatar que não há duas folhas iguais em todo o Universo, aludindo desta forma à grande diversidade biológica que também nelas se manifesta. Mesmo naquelas que parecem ser iguais, há com certeza uma diferença: é o que o poeta pretende dizer quando afirma “ou nervura a menos, ou célula a mais, não há, de certeza, duas folhas iguais”.

Depois passa à descrição da morfologia da folha e à sua classificação quanto ao recorte da margem, à forma da folha e à consistência. Na quadra seguinte reafirma que, apesar de as folhas poderem ser classificadas e separadas, mesmo entre aquelas que têm mesma forma − “semelhantes”− há sempre diferenças que as tornam únicas.

António Gedeão revela neste poema um bom conhecimento da morfologia e classificação botânica das folhas, mas comete um lapso comum ao afirmar que todas as folhas têm limbo. Embora seja verdade para a maioria, há algumas exceções, como por exemplo, as folhas da acácia.

Recorda que as folhas podem cair e …”jazem sem movimento”, referindose às folhas caducas, e às outras que “nem jazem, nem caem” as folhas perenes.

Por fim classificase a si próprio como pertencendo ao grupo das folhas que “não jazem, nem caem, nem gritam, apenas volitam nas dobras do vento”, isto é, como uma pessoa resistente e com personalidade.

 

Maria Cristina Gusmão Pinheiro, Ciência em poetas portugueses do século XX:

implicações na comunicação da Ciência. Universidade de Aveiro, 2007

 

Classificação das folhas quanto à constituição


De acordo com a leitura do poema “Pastoral”, de António Gedeão, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. O poema “Pastoral” celebra a diversidade e singularidade das folhas.

2. O poema destaca que não há duas folhas iguais em toda a criação e enfatiza a individualidade de cada ser.

3. O poema sugere que todas as folhas possuem limbo sem exceção.

4. No poema sugere-se que todas as folhas têm bainha.

5. As folhas que "jazem sem movimento" no poema referem-se às folhas perenes.

6. A enumeração é uma técnica estilística presente no poema, especialmente na descrição das diferentes formas das folhas.

7. As folhas mencionadas no poema representam apenas características botânicas, sem nenhuma alegoria para a condição humana.

8. As folhas que “não jazem, nem caem, nem gritam” representam a efemeridade da vida.

9. O poema sugere que as folhas que "volitam nas dobras do vento" são um símbolo de resignação e derrota.

10. O sujeito poético descreve folhas que se adaptam e resistem, comparando-as à sua própria personalidade.

 

Respostas:

1. Verdadeiro

2. Verdadeiro

3. Verdadeiro. Embora Gedeão escreva isso no poema, na realidade, há exceções como mencionado na análise de Maria Cristina Gusmão Pinheiro.

4. Falso. Afirma-se que "bainha nem todas," indicando que nem todas as folhas possuem bainha.

5. Falso. No poema, as folhas que "jazem sem movimento" referem-se às folhas caducas, que caem e ficam imóveis.

6. Verdadeiro.

7. Falso. As folhas simbolizam também diferentes formas de existência e individualidade humana.

8. Falso. Essas folhas simbolizam a resistência e a persistência diante das adversidades.

9. Falso. Estas folhas simbolizam resiliência e a capacidade de adaptação, qualidades com as quais o sujeito poético se identifica.

10. Verdadeiro.

 

sexta-feira, 26 de julho de 2024

O rio, Vinicius de Moraes

Big Bend National Park Texas. - NPS Photo/Ann Wildermuth


 

O RIO

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milénios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu.

 

Vinicius de Moraes, Rio de Janeiro, 1954

Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-rio

 


Leitura orientada do poema "O rio", de Vinicius de Moraes

Em "O rio", Vinicius de Moraes apresenta uma descrição poética da formação de um rio. No início do poema, o nascimento do rio é simbolizado por "uma gota de chuva". Esta gota, que fertiliza o "ventre grávido da terra", sugere o processo de infiltração da água no solo, crucial no ciclo hidrológico. A metáfora do "ventre grávido" evoca a ideia de fertilidade e criação, estabelecendo um elo entre o fenómeno natural e a gestação da vida.

A descrição dos "antigos / Sedimentos, rochas / Ignoradas, ouro, / Carvão, ferro e mármore" indica que o rio percorre diversas camadas geológicas, desde os sedimentos mais recentes até aos minerais mais antigos do subsolo. Esta passagem sugere um processo lento de erosão e sedimentação, moldando a paisagem ao longo de milénios e criando o leito por onde o rio fluirá. Aliás, a escolha de palavras como "antigos", "distante milénios" e "sequioso de espaço" sublinha a ideia de que o nascimento de um rio é um evento que transcende gerações e até eras geológicas

O rio é retratado como um ser vivo, com uma trajetória e um propósito. O sujeito poético atribui características humanas ao rio nascente, descrevendo-o como "fragilmente / Sequioso de espaço / Em busca de luz". Essas expressões conferem ao rio desejos e necessidades humanas, como a sede ("sequioso") e a busca por luz, que simboliza vida, crescimento e direção. 

O poema termina com o verso "Um rio nasceu" que marca o culminar do processo descrito no poema. Ele representa o momento em que todas as forças e elementos naturais se combinam para dar origem ao rio. Esse nascimento é o resultado de uma série de eventos e transformações, desde a gota de chuva inicial até à passagem por sedimentos e rochas.

O poema de Vinicius de Moraes ilustra como um pequeno começo pode levar a algo grandioso. O nascimento do rio representa não apenas o início de uma nova entidade, mas também o culminar de um processo de transformação e crescimento. É um ponto de partida que carrega consigo a história e a energia de tudo o que veio antes. Neste sentido, o poema pode ser interpretado, ainda, como uma metáfora para a vida humana. Assim como o rio, cada pessoa nasce de uma pequena mudança e atravessa desafios e obstáculos em busca de crescimento e realização. A busca por “luz” pode ser vista como a busca por conhecimento, verdade ou propósito.


quinta-feira, 25 de julho de 2024

Balada do rei das sereias, Manuel Bandeira


 

BALADA DO REI DAS SEREIAS

O rei atirou
Seu anel ao mar
E disse às sereias:
- Ide-o lá buscar,
Que se o não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

Foram as sereias,
Não tardou, voltaram
Com o perdido anel
Maldito o capricho
De rei tão cruel!

O rei atirou
Grãos de arroz ao mar
E disse às sereias:
- Ide-os lá buscar,
Que se os não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

Foram as sereias
Não tardou, voltaram,
Não faltava um grão.
Maldito capricho
De mau coração!

O rei atirou
Sua filha ao mar
E disse às sereias:
- Ide-a lá buscar,
Que se a não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!

Foram as sereias...
Quem as viu voltar?...
Não voltaram nunca!
Viraram espuma
Das ondas do mar.

 

Manuel Bandeira, Lira dos Cinquent’Anos, 1940

 

Leitura orientada da "Balada do rei das sereias", de Manuel Bandeira 

A "Balada do rei das sereias" é um poema de crítica social em que o sujeito poético conta a história de um rei que, na sua crueldade e arrogância, desafia as sereias do mar.

O texto inicia com o rei a atirar o seu anel ao mar e a ordenar às sereias que o recuperem, sob a ameaça de transformá-las em espuma caso falhem. Este gesto inicial estabelece o tom de tirania do monarca, que usa o seu poder para impor tarefas absurdas e desumanas. As sereias, figuras mitológicas associadas ao encanto e à sedução, aqui são reduzidas a serviçais, obedecendo aos caprichos do rei. O anel, símbolo de poder e aliança, é recuperado sem demora, o que demonstra a competência e a submissão das sereias ao poder régio.

A situação repete-se com grãos de arroz, um símbolo de fertilidade e vida, atirados ao mar. Novamente, as sereias cumprem a tarefa dificílima ao retornarem com todos os grãos, reforçando, assim, o domínio do rei e a extensão da sua crueldade. Este segundo ato do poema intensifica a sensação de injustiça e abuso de poder, enquanto as sereias continuam a cumprir as suas ordens, agora sem o mesmo significado de resistência ou contestação.

É na terceira e última parte do poema que se revela o verdadeiro clímax da narrativa. O rei, na sua insensatez máxima, joga a própria filha ao mar, exigindo que as sereias a tragam de volta. Este ato extremo de desumanidade não é atendido; as sereias desaparecem, transformando-se na espuma das ondas. A metamorfose das sereias em espuma pode ser interpretada como um ato de vingança e liberdade final contra a tirania do rei. Elas escolhem não retornar, não aceitar mais as ordens absurdas, e assim subvertem a relação de poder que o rei imaginava imutável.

A conclusão do poema, com a ausência das sereias e a transformação em espuma, evoca a lenda do nascimento de Afrodite, a deusa grega do amor e da beleza, que surgiu da espuma do mar. Esta referência mitológica adiciona uma camada de profundidade ao poema, sugerindo que há forças e poderes além da compreensão e controle do rei, e que a beleza e a justiça podem surgir dos atos de resistência e sacrifício.

Manuel Bandeira, através desta balada, tece uma crítica àqueles que abusam do seu poder e não percebem a resiliência e a força daqueles que eles subjugam. O poema é uma alegoria sobre a ilusão do controlo absoluto e a inevitável consequência da opressão. O jogo de submissão revela-se uma armadilha para o próprio rei, que perde algo infinitamente mais valioso do que um anel ou grãos de arroz: a sua própria filha e a fidelidade das sereias. Portanto, o autor alerta para os perigos da arrogância e da crueldade, mostrando que o verdadeiro poder reside na liberdade e na justiça.


quarta-feira, 24 de julho de 2024

Neologismo: teadoro, Teodora, Manuel Bandeira

(teadoro, Teadora, in Diálogos 7.
Ilustração: Luís Henriques, Manuel Cruz/WHO, Maria Fernand)

 

NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana1.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.

 

Manuel Bandeira, Petróplis, 1947

Poesias completas, acrescidas de Belo belo. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1948

_________

1 A palavra “cotidiana” corresponde a “quotidiana”, na variedade do português europeu (isto é, português de Portugal).

 


Questionário sobre o poema "Neologismo", de Manuel Bandeira

1. O poema chama-se “Neologismo”, pois:

a) dá ideia de coisa ultrapassada;

b) encerra uma mensagem otimista;

c) apresenta características de versos soltos;

d) introduz palavras novas na língua.

e) contesta as regras gramaticais.

 

2. Manuel Bandeira é um dos nomes mais importantes da poesia da primeira fase do modernismo brasileiro; em seu poema “Neologismo”, o eu lírico

a) fala de situações inusitadas da vida do ser humano.

b) expressa a abundância em seu quotidiano.

c) denota acanhamento em suas atitudes.

d) demonstra falta de produtividade.

e) encontra reciprocidade em seus sentimentos.

 

3. “Beijo pouco, falo menos ainda” (verso 1)

3.1. Considerando estas palavras do “eu” poético, como o caracterizas?

3.2. De que forma exprime, então, o sujeito poético os seus sentimentos?

4. O sujeito poético inventou o verbo teadorar, que afirma ser um verbo intransitivo. Justifica esta classificação.

 

Respostas

1. Chave de correção: D

(Fonte: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-gramatica/exercicios-sobre-neologismo.htm)

2. Chave de correção: C

A alternativa A está incorreta, pois o eu lírico inventa palavras que traduzem a “ternura mais funda e mais cotidiana”, ou seja, não traduzem situações inusitadas e incomuns, falam de situações do dia a dia.

A alternativa B está incorreta, pois o eu lírico utiliza os termos “pouco” e “menos”, revelando parcimônia e moderação no beijar e no falar, demonstrando uma postura de humildade em seu dia a dia.

A alternativa C está correta, pois o eu lírico declara que beija pouco e fala menos ainda, o que pode ser entendido como timidez e acanhamento, permitindo, ainda, a inferência de que há um certo constrangimento; conhecendo a história de Manuel Bandeira, da tuberculose que o acometeu ainda jovem, debilitando-o durante toda a vida, também, podemos entender o poeta expressa, através desse eu lírico, a convivência com uma debilidade que o impede de viver plenamente.

A alternativa D está incorreta, pois o eu lírico inventa palavras que traduzem os sentimentos do cotidiano, elaborando uma metáfora sobre o fazer poético; portanto, há produtividade.

A alternativa E está incorreta, pois o eu lírico criou um verbo intransitivo, ou seja, que não tem um complemento; desse modo, entende-se que não há reciprocidade, não há correspondência para o verbo que criado, o verbo “teadorar”.

(Fonte: https://vestibulares.estrategia.com/public/questoes/Neologismo-Beijo-pouco523c4356e7/ Elisabete Ana)

3.1. O “eu” poético apresenta-se como tímido, introvertido.

3.2. O sujeito poético inventa palavras “Que traduzem a ternura mais funda / E mais cotidiana.” (versos 3-4).

4. O verbo teadorar é intransitivo, porque nele aparece “incorporado” o ser adorado: teadorar significa adorar Teodora. Isto é, pode-se “adorar” qualquer pessoa, mas teadorar designa uma ação exclusiva, que não transita.

(Fonte: Diálogos 7, Fernanda Costa e Luísa Mendonça. Porto Editora, 2011, p. 199)

 

Texto de apoio

No poema "Neologismo" de Manuel Bandeira, o eu-poético começa com uma confissão: "Beijo pouco, falo menos ainda." Esta declaração inicial sugere uma introspeção que revela a dificuldade em demonstrar afeto através de gestos comuns e da fala. A seguir, o sujeito poético revela a sua solução para essa limitação: "Mas invento palavras que traduzem a ternura mais funda e mais cotidiana." Aqui, é introduzida a ideia central do poema: a criação de palavras como meio de expressar sentimentos que a linguagem quotidiana não consegue captar plenamente.

A invenção do verbo "teadorar" é o ápice do poema. Esta palavra combina o pronome pessoal átono "te" e o verbo "adorar", criando um neologismo que, segundo Eduardo Guimarães, no seu artigo Sentidos no texto - uma análise de “Neologismo”, de Bandeira, é formado a partir da expressão de um sentimento específico ("dizer te adoro") e não simplesmente pela combinação de palavras existentes. Assim, "Teadoro, Teodora" não é apenas um jogo de palavras, mas uma manifestação de amor e afeto entre o eu-lírico e a amada.

Pasquale Cipro Neto afirma que “ao inventar a palavra teadorar, nosso grande poeta inclui nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é intransitivo porque já contém seu suposto objeto.” (…) E por que eu disse uma das razões? Porque outra delas talvez seja o facto de que, sendo intransitiva, a adoração não se materializa, fica presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser adorado. Não custa lembrar que, em ‘Beijo pouco, falo menos ainda, o próprio poeta dá uma pista dessa intransitividade de seus sentimentos.” (Folha de São Paulo22-05-2003).

A estrutura do poema também é relevante. Começando com a constatação de limitações pessoais, seguido por uma adversativa que introduz a criação linguística, e culminando com o neologismo que encerra o poema, o sujeito poético guia o leitor através de um processo de autoconhecimento e expressão. Essa progressão estrutura o poema de forma a enfatizar a inovação linguística como um meio essencial de expressão emocional.