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segunda-feira, 7 de julho de 2025

Minha Senhora de Mim, Maria Teresa Horta


 

Segredo

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço.
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

 

Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1971

 

 

Teresa acreditava que a escrita lhe pertencia por direito, mas queria fazer algo de novo. E assim surgiu Minha Senhora de Mim. Procurava outras possibilidades na escrita. E não descartava o risco de escrever algo que fosse um vendaval, uma proposta em oposição à regra. Os poemas revelam a sexualidade feminina, a mulher enquanto orientadora da acção que leva ao prazer. Mal terminou a escrita, consciente de que os poemas escritos formavam um conjunto passível de ser publicado num único volume (seria o seu nono livro de poemas), pediu a Luís de Barros: «Quero que tu leias, por favor, estamos numa altura em que as coisas estão complicadas, e quero que saibas o que sinto por ti. Ele disse: "Que parvoíce, eu amo-te. Que disparate, não preciso de ler."» E não leu.

O livro foi publicado, dedicado ao marido, e ele não leu um único poema. Não mostrou interesse e Teresa optou por não o interpelar. Trata-se de um livro que revela a paixão que Teresa então sentia, assumindo uma voz diferente, plena de desejo, de ânsia e de sonho, procurando inspiração e rasgo na poética medieval, nas canções de amor e de amigo. O livro começa com uma epígrafe de Marguerite Duras: «J'ai le temps, que c'est   long!»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, p. 206

 


 

Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de cinquenta e nove poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo (neste caso, o pensamento patriarcal). Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é subvertido (viria a acontecer o mesmo com Novas Cartas Portuguesas). Nas cantigas de amigo medievais, escritas por homens, a voz era feminina e versava quase sempre o sofrimento por amor, regra geral devido à ausência do “amigo”, deixando as mulheres no estado de absoluta dependência em relação aos homens. Contudo, na obra de Maria Teresa Horta, a mulher é o centro da narrativa dos poemas, sendo ainda o centro do desejo sexual. Não raras vezes, o sujeito poético usa o modo imperativo, comanda a relação heterossexual, não só rejeita a submissão como submete.

Ana Maria Domingues de Oliveira, em Quarenta anos de Minha Senhora de Mim, fala precisamente da influência trovadoresca na obra:

Em seus 59 poemas, Minha senhora de mim propõe uma releitura do Trovadorismo português, sobretudo no que se refere às cantigas de amigo. (…) Ao tomar as cantigas de amigo a partir de uma perspectiva crítica e paródica, portanto, Maria Teresa Horta acabava por atingir de modo igualmente crítico a identidade nacional, em razão sobreposição entre os conceitos de identidade literária e identidade nacional (in Anais do XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura).

Assim, ao alterar a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a preconizava, instalava um novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o, desafiando a moral instituída. A moral do fascismo, ao mesmo tempo, era afrontada pela independência e pela liberdade das mulheres – estas seriam donas de si, não se confinando ao quadro de dominação em que o Estado Novo as arrumava. Assim, contra a dominação patriarcal, apresentada como prática política do regime, Maria Teresa Horta, através da produção simbólica geralmente atribuída aos homens, reclamou para si e para as outras mulheres um lugar social. Ao mesmo tempo, Minha Senhora de Mim, pelas pontes que faz, evidencia o patriarcado enquanto base da cultura ocidental. Afinal, traz para o seu tempo a Idade Média, com a tradição literária que esta acarreta, que se mostra nas cantigas.

Nos poemas de Minha Senhora de Mim, a novidade não está apenas em dar-se voz à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado nos poemas, pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que deve fazer para agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa e chega a descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca pelo prazer, esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para a mulher, de uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recorde-se que, à época, Portugal estava tolhido por uma moral católica: ainda que o prazer masculino fosse permitido ou socialmente aceite, o da mulher, por motivos de moral imposta ou religiosos, não o era. A vida pública regia-se pela ideia de que as mulheres deviam reger-se por um espírito de sacrifício, e que este devia verificar-se também no sexo. Por isso, a mulher devia estar subjugada. Foi contra isto que Maria Teresa Horta criou uma voz de comando feminina, uma voz que ordena e orienta. Com ela, precisa, incisiva, a procura pelo prazer sexual é clara, indisfarçada, indisfarçável.

O poema “O meu desejo” trará essa buscar de forma clara. Note-se:

Afaga devagar as minhas
pernas

Entreabre devagar os meus
joelhos

Morde devagar o que é
negado

Bebe devagar o meu
desejo

(HORTA, 1971, p. 82)

 

Aqui, revela-se aquilo a que já nos referimos previamente: a utilização do modo imperativo em prol de uma relação de forças em prol da mulher. Para além disso, a acção é explícita e, por sê-lo, rejeita o papel presumivelmente assexuado das mulheres. Já no “Poema ao desejo”, que transcreveremos de seguida, em que existe o mesmo modo imperativo, vê-se que está no cerne do poema uma relação erótica mais violenta.

Empurra a tua espada
no meu ventre
enterra-a devagar até ao cimo
que eu sinta de ti a queimadura
e a tua mordedura nos meus rins

deixa depois que a tua boca
desça
e me contorne as pernas de doçura

Ó meu amor a tua língua
prende
aquilo que desprende de loucura

(HORTA, 1971, p. 84)

A “espada” como símbolo do homem será ainda uma metáfora recorrente na poesia de Horta. Vemo-la, aliás, no poema que se intitula precisamente “Minha espada”:

Solidão de terra ferida
feita
planta ou jornada

ignorada e perdida
ou nos meus seios
entornada

Em retorno da partida
amigo de sua amada

Vazio que habito esquecida
Com meu ventre e sua espada

(HORTA, 1971, p. 24)

Aqui, o título do poema, através do pronome possessivo usado, já revela uma transgressão. O sujeito feminino, ao assumir a posse, é quem domina e manuseia, recusa a subjugação. Contudo, isto contrastará com a imagem da terra, que representa uma imagem de submissão, já que espera ser fertilizada, e cujos abandono e solidão causam sofrimento. Para além disso, a última estrofe gira em torno do símbolo fálico e a mulher é vista como um objecto, como o “repouso da espada”. Esta, entornada, por sua vez revelará o sacrifício e o sofrimento do sujeito poético.

Finalmente, cabe aqui uma referência ao poema “As nossas madrugadas”, que encontrará paralelo em textos prosaicos presentes em Novas Cartas Portuguesas:

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É a raiva
então ciúme
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales

(HORTA, 1971, p. 86/87/88)

Este poema refere-se a um domínio físico, por parte do homem, que termina em violação. Na primeira estrofe, a mulher é acordada para a satisfação do homem. É o desejo dele que a desperta, indiferente ao facto de ela dormir, “vergando” o sono dela, suspeitando que é usado para defender-se dele (a contraposição de vontades e o domínio dele sobre a dela já é a violação do desejo dela). De seguida, mostra-se a condição de objecto do sujeito poético, mulher: o homem tem “pressa de ter[es] o que só sente[s]”, quer possuir dela “o que não sabe[s]”. Finalmente, descreve-se a relação sexual involuntária, mostrando-se a condição de subjugação física, emocional e psicológica a que o sujeito poético está submetido: o corpo do homem desperta-a até que ela, saindo “do sono/onde resvala [resvalo]”, repila a noite. O homem, por sua vez, terá o que almeja desde o início, ainda que contra os desejos da mulher: “vais descobrindo vales”.

Maria Teresa Horta traz, assim, para a poesia, um novo sujeito poético – só rompendo com a tradição literária podia romper-se com a condição da subjugação das mulheres, até porque a primeira compactuava com o silêncio, anulava sujeitos. Até que aquelas que pareciam trazer sujeitos novos – as cantigas de amigo – eram, na verdade, escritas por homens, e eram portanto estes quem moldava, na tradição literária, as relações afectivas e sexuais. Os poemas que compõem este livro são, portanto, veículos de actos políticos indispensáveis: afinal, eles mesmos são actos políticos, é a apropriação da linguagem que funciona como desafio ao instituído.

 

Escritoras Portuguesas e Estado Novo: as obras que a ditadura tentou apagar da vida pública, Ana Bárbara Pedrosa. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2017, pp. 359-366

 



 

«PARA APRENDERES A NÃO ESCREVER COMO ESCREVES»

 

O rastilho deixado por Minha Senhora de Mim não se apagou depressa e causou inúmeros dissabores. Teresa vivia no bairro social do Arco do Cego, na Rua Caetano Alberto. Certa vez, saia de casa para ir ter com o marido, iam beber um copo algures – expressão usual, embora Teresa nunca bebesse álcool – depois do fecho do jornal. Era sexta-feira, o filho estava em segurança em casa dos avós paternos. Teresa atravessou a rua na direcção da estátua de José de Almeida, a fim de apanhar um táxi. Quando chegou à curva da Rua Caetano Alberto viu um carro, estacionado à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para trás eu não podia ir, não podia correr para casa, portanto tinha de andar para a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que existisse por ali mais gente.» Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção. Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a não escrever como escreves.» Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo. Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões. Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu, ele que fosse a casa telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»

Teresa foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações. Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se autocensura.»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 219-221

 


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