Segredo
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço.
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1971
Teresa
acreditava que a escrita lhe pertencia por direito, mas queria fazer algo de
novo. E assim surgiu Minha Senhora de Mim. Procurava outras
possibilidades na escrita. E não descartava o risco de escrever algo que fosse
um vendaval, uma proposta em oposição à regra. Os poemas revelam a sexualidade feminina,
a mulher enquanto orientadora da acção que leva ao prazer. Mal terminou a
escrita, consciente de que os poemas escritos formavam um conjunto passível de
ser publicado num único volume (seria o seu nono livro de poemas), pediu a Luís
de Barros: «Quero que tu leias, por favor, estamos numa altura em que as coisas
estão complicadas, e quero que saibas o que sinto por ti. Ele disse: "Que
parvoíce, eu amo-te. Que disparate, não preciso de ler."» E não leu.
O
livro foi publicado, dedicado ao marido, e ele não leu um único poema. Não
mostrou interesse e Teresa optou por não o interpelar. Trata-se de um livro que
revela a paixão que Teresa então sentia, assumindo uma voz diferente, plena de
desejo, de ânsia e de sonho, procurando inspiração e rasgo na poética medieval,
nas canções de amor e de amigo. O livro começa com uma epígrafe de Marguerite
Duras: «J'ai le temps, que c'est long!»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, p. 206
Minha
Senhora de Mim (1971) compõe-se de cinquenta e nove poemas.
Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a
literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status
quo (neste caso, o pensamento patriarcal). Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é
subvertido (viria a acontecer o mesmo com Novas Cartas Portuguesas). Nas
cantigas de amigo medievais, escritas por homens, a voz era feminina e versava
quase sempre o sofrimento por amor, regra geral devido à ausência do “amigo”,
deixando as mulheres no estado de absoluta dependência em relação aos homens.
Contudo, na obra de Maria Teresa Horta, a mulher é o centro da narrativa dos
poemas, sendo ainda o centro do desejo sexual. Não raras vezes, o sujeito
poético usa o modo imperativo, comanda a relação heterossexual, não só rejeita
a submissão como submete.
Ana
Maria Domingues de Oliveira, em Quarenta anos de Minha Senhora de Mim,
fala precisamente da influência trovadoresca na obra:
Em
seus 59 poemas, Minha senhora de mim propõe uma releitura do
Trovadorismo português, sobretudo no que se refere às cantigas de amigo. (…) Ao
tomar as cantigas de amigo a partir de uma perspectiva crítica e paródica,
portanto, Maria Teresa Horta acabava por atingir de modo igualmente crítico a identidade
nacional, em razão sobreposição entre os conceitos de identidade literária e
identidade nacional (in Anais do XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário
Internacional Mulher e Literatura).
Assim,
ao alterar a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a preconizava,
instalava um novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o, desafiando a moral
instituída. A moral do fascismo, ao mesmo tempo, era afrontada pela
independência e pela liberdade das mulheres – estas seriam donas de si, não se
confinando ao quadro de dominação em que o Estado Novo as arrumava. Assim,
contra a dominação patriarcal, apresentada como prática política do regime,
Maria Teresa Horta, através da produção simbólica geralmente atribuída aos
homens, reclamou para si e para as outras mulheres um lugar social. Ao mesmo
tempo, Minha Senhora de Mim, pelas pontes que faz, evidencia o
patriarcado enquanto base da cultura ocidental. Afinal, traz para o seu tempo a
Idade Média, com a tradição literária que esta acarreta, que se mostra nas
cantigas.
Nos
poemas de Minha Senhora de Mim, a novidade não está apenas em dar-se voz
à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado nos poemas,
pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que deve fazer para
agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa e chega a
descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca pelo prazer,
esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para a mulher,
de uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recorde-se que, à época,
Portugal estava tolhido por uma moral católica: ainda que o prazer masculino
fosse permitido ou socialmente aceite, o da mulher, por motivos de moral
imposta ou religiosos, não o era. A vida pública regia-se pela ideia de que as
mulheres deviam reger-se por um espírito de sacrifício, e que este devia verificar-se
também no sexo. Por isso, a mulher devia estar subjugada. Foi contra isto que
Maria Teresa Horta criou uma voz de comando feminina, uma voz que ordena e
orienta. Com ela, precisa, incisiva, a procura pelo prazer sexual é clara,
indisfarçada, indisfarçável.
O
poema “O meu desejo” trará essa buscar de forma clara. Note-se:
Afaga devagar as
minhas
pernas
Entreabre devagar os meus
joelhos
Morde devagar o que é
negado
Bebe devagar o meu
desejo
(HORTA, 1971, p. 82)
Aqui, revela-se
aquilo a que já nos referimos previamente: a utilização do modo imperativo em
prol de uma relação de forças em prol da mulher. Para além disso, a acção é
explícita e, por sê-lo, rejeita o papel presumivelmente assexuado das mulheres.
Já no “Poema ao desejo”, que transcreveremos de seguida, em que existe o
mesmo modo imperativo, vê-se que está no cerne do poema uma relação erótica
mais violenta.
Empurra a tua
espada
no meu ventre
enterra-a devagar até ao cimo
que eu sinta de ti a queimadura
e a tua mordedura nos meus rins
deixa depois que a tua boca
desça
e me contorne as pernas de doçura
Ó meu amor a tua língua
prende
aquilo que desprende de loucura
(HORTA, 1971, p. 84)
A
“espada” como símbolo do homem será ainda uma metáfora recorrente na poesia de
Horta. Vemo-la, aliás, no poema que se intitula precisamente “Minha espada”:
Solidão de terra
ferida
feita
planta ou jornada
ignorada e perdida
ou nos meus seios
entornada
Em retorno da partida
amigo de sua amada
Vazio que habito esquecida
Com meu ventre e sua espada
(HORTA, 1971, p. 24)
Aqui,
o título do poema, através do pronome possessivo usado, já revela uma
transgressão. O sujeito feminino, ao assumir a posse, é quem domina e manuseia,
recusa a subjugação. Contudo, isto contrastará com a imagem da terra, que
representa uma imagem de submissão, já que espera ser fertilizada, e cujos
abandono e solidão causam sofrimento. Para além disso, a última estrofe gira em
torno do símbolo fálico e a mulher é vista como um objecto, como o “repouso da
espada”. Esta, entornada, por sua vez revelará o sacrifício e o sofrimento do
sujeito poético.
Finalmente,
cabe aqui uma referência ao poema “As nossas madrugadas”, que encontrará
paralelo em textos prosaicos presentes em Novas Cartas Portuguesas:
Desperta-me de
noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito
pois suspeitas
que com ele me visto e me
defendo
É a raiva
então ciúme
a tua boca
é dor e não
queixume
a tua espada
é rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas
E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse
E queres-me de amor
e dás-me o tempo
a trégua
a entrega
e o disfarce
E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes
Despertas-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo
e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales
(HORTA,
1971, p. 86/87/88)
Este
poema refere-se a um domínio físico, por parte do homem, que termina em
violação. Na primeira estrofe, a mulher é acordada para a satisfação do homem.
É o desejo dele que a desperta, indiferente ao facto de ela dormir, “vergando”
o sono dela, suspeitando que é usado para defender-se dele (a contraposição de
vontades e o domínio dele sobre a dela já é a violação do desejo dela). De
seguida, mostra-se a condição de objecto do sujeito poético, mulher: o homem
tem “pressa de ter[es] o que só sente[s]”, quer possuir dela “o que não
sabe[s]”. Finalmente, descreve-se a relação sexual involuntária, mostrando-se a
condição de subjugação física, emocional e psicológica a que o sujeito poético está
submetido: o corpo do homem desperta-a até que ela, saindo “do sono/onde
resvala [resvalo]”, repila a noite. O homem, por sua vez, terá o que almeja
desde o início, ainda que contra os desejos da mulher: “vais descobrindo
vales”.
Maria
Teresa Horta traz, assim, para a poesia, um novo sujeito poético – só rompendo
com a tradição literária podia romper-se com a condição da subjugação das
mulheres, até porque a primeira compactuava com o silêncio, anulava sujeitos.
Até que aquelas que pareciam trazer sujeitos novos – as cantigas de amigo –
eram, na verdade, escritas por homens, e eram portanto estes quem moldava, na
tradição literária, as relações afectivas e sexuais. Os poemas que compõem este
livro são, portanto, veículos de actos políticos indispensáveis: afinal, eles
mesmos são actos políticos, é a apropriação da linguagem que funciona como
desafio ao instituído.
Escritoras Portuguesas e Estado Novo: as obras que a ditadura
tentou apagar da vida pública, Ana
Bárbara Pedrosa. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2017, pp.
359-366
«PARA
APRENDERES A NÃO ESCREVER COMO ESCREVES»
O
rastilho deixado por Minha Senhora de Mim não se apagou depressa e
causou inúmeros dissabores. Teresa vivia no bairro social do Arco do Cego, na
Rua Caetano Alberto. Certa vez, saia de casa para ir ter com o marido, iam
beber um copo algures – expressão usual, embora Teresa nunca bebesse álcool – depois
do fecho do jornal. Era sexta-feira, o filho estava em segurança em casa dos
avós paternos. Teresa atravessou a rua na direcção da estátua de José de
Almeida, a fim de apanhar um táxi. Quando chegou à curva da Rua Caetano Alberto
viu um carro, estacionado à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe
deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que
vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente
estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para
trás eu não podia ir, não podia correr para casa, portanto tinha de andar para
a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que
existisse por ali mais gente.» Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu
as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro
ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção.
Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles
ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a
não escrever como escreves.» Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os
murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria
levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça
aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo.
Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões.
Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O
trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir
dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia
de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu, ele que
fosse a casa telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal
e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se
com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo
politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não
batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até
hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi
uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não
têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»
Teresa
foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança
muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na
cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações.
Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem
de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se
autocensura.»
A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 219-221



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