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terça-feira, 18 de março de 2014

AS VOZES DE LÍDIA


"Horacio y Lidia (estudio)", óelo sobre lienzo de Albert Edelfelt (Finland, 1854-1905)
     


Lídia é um nome feminino que surge nas Odes de Horácio. Na Literatura Portuguesa, o mesmo nome tem sido utilizado por vários escritores.    

Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
              Oferecendo a flor
              Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
              Não existe piedade
              Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
              Longo indelével rasto
              Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
              Vai sempre mais à frente
              Do que o teu próprio passo
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         

Com a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Quente e fagueira a passagem da vida.

Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Talvez no além precises do teu corpo.

Estima-o; e à beleza mais demora
Darão os fados na vida passageira.
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
De Paros seja o mármore da banheira.

Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Como uma humanizada flor aquática.

Não te esqueças porém de no amavio
Da água verter um brando óleo de malvas
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Te dá ao polimento das espáduas.

E saindo do banho como a deusa
Sai, das macias ondas, nacarada,
Ergue-te para o amor, estátua de seda
Toda coberta com pérolas de água.

Por fim veste a camisa mais picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.
         
Natália Correia, O Armistício, 1985



Em Dual, é convocado o poeta dos heterónimos no poema “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”, e é igualmente particularizada a memória de Ricardo Reis num conjunto de textos subordinados ao título geral “Homenagem a Ricardo Reis”.
Curiosamente, o interlocutor intratextual – quando existe de forma explícita – não é o homenageado mas as “suas criaturas”, nomeadamente Neera e Lídia. Cabe precisamente a Lídia a ode que abre o ciclo, e Sophia de Mello Breyner Andresen “fala” com Lídia num tom que só aparentemente é afim do de Ricardo Reis. Todo o vocabulário do poema – bem como a sua arquitetura estrófica – é devedor do léxico idiossincrásico de Ricardo Reis, não havendo, portanto, nenhum estranhamento vocabular; há, no entanto, uma espécie de “tom” particular que distingue radicalmente a voz de Sophia da do modelo que pretende homenagear. Dirigindo-se a Lídia, a poetisa não faz um convite amoroso – verdadeiro ou falacioso – mas alerta uma mulher para os perigos de um discurso que amolece a vontade de agir. No fundo, os conselhos de Sophia tentam contrariar os propósitos de ataraxia voluntarista procurados por Ricardo Reis; por isso, o poema abre com um imperativo negativo que pretende atingir Lídia, o próprio sujeito lírico e, de forma pedagógica, o leitor.
Repare-se na beleza e na força dramática da terceira estrofe: não pode haver momentos de hesitação, porque o presente da demora não existe; existe o passado, mas, ficando à beira do rio, como propõe Ricardo Reis, apenas se consegue carregar a memória com esse «Longo, indelével rasto/Que o não-vivido deixa». «Longo» e «indelével» são palavras serpentiformes e castigadoras; o rasto do não-vivido é o sinal que transforma o futuro num tempo duplamente amargo e confere à morte uma vitória impiedosa. Por isso, Sophia dirige-se a Lídia exortando-a a fazer do carpe diem não um projeto de vida lenificado pelo temor, mas uma imersão na corrente do rio. Reside aqui, creio, o centro do diálogo que Sophia de Mello Breyner estabelece com Lídia, com Ricardo Reis e com Pessoa, pois como diz Anna Klobucka, ao comentar outros textos, «o apelo à boda coroa o diálogo intertextual, oferecendo-se como uma solução para a viuvez, pessoana, e não só» (cf. "Sophia «escreve» Pessoa", Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 140/141, abril de 1996, p. 168.)



O convite à boda, isto é, à festa do corpo e à alegria dos sentidos, constitui também a essência da mensagem que Natália Correia dirige a Lídia. Em O Armistício, um livro extraordinário publicado em 1985, Natália Correia revisita a poesia de Ricardo Reis, sobretudo em dois momentos essenciais: quando, ao propor a descrucificação de Cristo, recorre a um vocabulário que, por vezes, se aproxima das odes em que Ricardo Reis considera Cristo apenas mais um deus, nem maior nem menor do que os que já existiam no panteão – apenas é mais novo e mais triste (Vd. as odes seguintes: “Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero”; “Não a ti, Cristo, odeio ou menos prezo”; “Não a ti, mas aos teus odeio, Cristo”) -, e quando, nos poemas que constituem o capítulo “Sete Motivos do Corpo”, invoca Lídia. O poema de Natália transforma completamente o intertexto nuclear e oferece a Lídia um cenário cultural e estético que a liberta das amarras filosofantes de Reis e lhe devolve a plenitude solar do corpo. O tema da morte - que obsidia Ricardo Reis, impedindo-o de fruir os breves prazeres da vida, e que, por outros modos, também constitui para Horácio um motivo de indisfarçável pavor – está presente no texto de Natália Correia; mas, ao contrário dos poetas que a antecedem, a voz da poetisa tem o encanto das feiticeiras e a destreza das pitonisas. O Orco, diz Natália, raptou Perséfone «rendido à graça», por isso, o corpo não deve ser negado, deve, sim, ser motivo de júbilo e de festa. Lídia, à semelhança de Vénus, a deusa que «sai, das macias ondas, nacarada», deverá perceber que são falsas e enganadoras as doutrinas que desprezam o corpo e transformam o amor num deus receoso, incorpóreo e punitivo. O belíssimo quadro, pintado com as palavras firmes e suaves de Natália Correia, é um convite e uma lição: convida-nos a participar na festa dos sentidos, e ensina-nos uma moral de gratidão.
                     
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        
                        

António Manuel Ferreira, As Vozes de Lídia” 
Ágora.  Estudos Clássicos em Debate 3, 2001, pp. 263-267  

 

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  • SOPHIA, A «FREIRA», E NATÁLIA, A «CORTESû

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 – 2004) não era uma pessoa com quem fosse fácil lidar. E quando detestava alguém, detestava a sério. Era capaz da maior secura no trato. Agustina Bessa-Luís, com quem Sophia tinha uma relação também nada fácil, cúmplice, mas muito ambivalente, de admiração, mas também de picardia, desculpou-a dizendo: «Há mulheres que têm virtudes de rainha e por isso são mal compreendidas».

Natália Correia (1923 – 1993) era um dos seus ódios de estimação. A aristocrata não tolerava a agitadora militante, chocava com ela, não a queria nem por perto.

Acontece que essa antipatia era mútua. Natália embirrava igualmente com Sophia, não a suportava. Oriunda da Ilha de São Miguel, nos Açores, de estatuto social muito mais baixo (era filha de uma professora primária e de um comerciante que emigrou para o Brasil quando esta tinha seis anos), estava sempre de pé atrás relativamente ao facto de Sophia, vinda da alta burguesia do Porto e católica, ter uma posição oposicionista ao fascismo e ser de esquerda.

«Para Sophia, Natália era uma “cortesã”. Para Natália, Sophia era uma “freira”», comenta Isabel Nery na biografia que escreveu da poetisa Sophia.

Sophia, de humores, com uma ironia muito difícil de entender, com muito medo das doenças, obcecada com a limpeza e a desinfeção (tinha pavor de micróbios), e Natália, com um sentido de humor muito especial, polémica, irascível, cheia de excentricidades, tão extraordinária quão assustadora, eram duas mulheres grandiosas, porém, nada fáceis.

Sempre que se cruzavam em atividade literárias ou políticas, se davam de caras uma com a outra, era de fugir. Dialogavam o mínimo e indispensável e sempre com palavras cortantes. Todavia, tinham de se cruzar várias vezes, já que viviam na mesma cidade, Lisboa, tinham muitos amigos em comum e percursos muito semelhantes: duas destacadas poetisas; duas escritoras com papel social, posicionando-se como artistas intervenientes e não isoladas nas suas torres de marfim; duas grandes figuras da cultura portuguesa; duas intelectuais para quem a escrita, a leitura e a vida eram inseparáveis; duas mulheres que se bateram toda a vida pela liberdade e pela democracia; duas mulheres defensoras da cultura ao serviço do Homem e não do poder, Sophia argumentando: «A política é que é um capítulo da cultura e não o contrário», Natália, que chegou a ser consultora para os Assuntos Culturais da Secretaria de Estado da Cultura e, mais tarde, deputada, dizendo: «Fui deputada porque me pediram para introduzir o discurso cultural no Parlamento»; duas oposicionistas ao Estado Novo, ambas apoiantes, em 1969, da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), que estaria na génese do Partido Socialista; duas mulheres ativistas que passaram pela política, com presença na Assembleia da República (Sophia pelo PS de Mário Soares e Natália pelo PPD de Sá Carneiro e, mais tarde, pelo PRD do general Ramalho Eanes)...

As duas eram incompatíveis. Provavelmente por terem tanta coisa em comum... Duas mulheres destemidas, corajosas, rebeldes, insubmissas, inconformistas; de personalidade muito forte, carismáticas; ambas vaidosas e orgulhosas; ambas muito egocentradas; ambas com o invulgar dom da palavra; ambas nada vocacionadas para a lida da casa; ambas com uma sensibilidade e imaginação invulgares; tiveram ambas mães muito presentes, com forte influência na sua personalidade, que zelaram para que tivessem uma educação acima do comum e uma cultura privilegiada.


Sophia, princesa da Ética e da Estética, uma diva distante e fria, muito contida, avessa ao contacto físico, distraída, de cabeça nas nuvens, etérea, fumando o seu cigarro fino e longo entre os dedos esguios, Natália, uma Madona de sensualidade, desafiadora, fogosa, de pose deslumbrante, enigmática, fumando um cigarro na sua icónica boquilha segura com a mão papuda.

Tão diferentes e tão iguais, tão iguais e tão diferentes...

(Paulo Marques, Facebook, 01-04-2023)



CARREIRO, José. “As vozes de Lídia”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 10-03-2014 (última atualização: 02-04-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2014/03/as-vozes-de-lidia.html


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