O Dever de Deslumbrar. (Imagem: https://www.rtp.pt/acores/cultura/o-dever-de-deslumbrar-e-a-nova-obra-biografica-sobre-natalia-correia_79894) |
O Dever de Deslumbrar - Biografia de Natália Correia
Filipa Martins
Contraponto Editores, março de 2023
SINOPSE
Intimidando pela verve de aríete e pela beleza,
Natália Correia simbolizou, como poucos, as inquietações do século XX
português. Precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de
mitos, incompreendida e amada, lançou um olhar oracular sobre o seu tempo. Em
tertúlias, que eram verdadeiras olimpíadas da confraternização lisboeta, o seu
traço aglutinador envolvia, juntamente com o fumo dos cigarros, intelectuais e
admiradores, que se irmanavam com párias e malditos em ideias e poemas de
vanguarda.
Mulher deslumbrante e carismática, equiparada às
maiores pensadoras europeias e às estrelas de Hollywood, atacou o Regime onde
mais lhe doía - na moral caduca -, elegeu o erotismo como arma política e
tornou-se a autora mais censurada da ditadura. Já no bar que fundou em Lisboa,
fez e desfez governos à batuta da sua boquilha.
Nesta biografia, da autoria de uma das vozes mais seguras da nova literatura portuguesa, convivem a libertária e a conservadora, avessa a expor a sua atribulada vida íntima, a mulher que desprezava a política partidária e que nela viveu, inclusive como deputada; o espírito frágil e o temperamento intempestivo; o polémico exercício de funções diretivas em órgãos de imprensa e a defesa intransigente das causas maiores; e, em todas as páginas, as contradições e coerências de uma pensadora capaz de criar para si própria uma narrativa que não a torturasse pelas escolhas que fez.
Disponível
em: https://www.contrapontoeditores.pt/produtos/ficha/o-dever-de-deslumbrar/21332326
Natália Correia, Lisboa, 1963 (Arquivo de Ivo Machado) |
NATÁLIA, MAIOR DO QUE A VIDA
Livre, corajosa,
visionária, sedutora, complexa. São inesgotáveis os adjetivos que vão bem com
Natália Correia (1923-1993), a escritora, a editora, a política, a cidadã, a
mulher de armas, a figura maior do que a vida, que atravessou todo o século XX
português. “É a mátria portuguesa”, diz Filipa Martins, também ela escritora e,
agora, autora da muito aguardada nova biografia de Natália Correia, uma longa
investigação de quase seis anos que chega, nesta semana, às livrarias. “Era uma
mulher davinciana, que tocava todas as artes, até a política. E a sua história
confunde-se com a própria História do País”, acrescenta Filipa Martins, no
artigo assinado pela grande repórter da Visão Rosa Ruela, que faz a
nossa capa desta semana.
O ano de 2023 é um ano de
dupla efeméride no que toca a Natália Correia: a 16 de março, faz 30 anos que
morreu; a 13 de setembro, cumpre-se um século após o seu nascimento. Com um pai
ausente, Natália foi educada pelas mulheres da família, conforme conta Rosa
Ruela, seguindo o relato de Filipa Martins em O Dever de Deslumbrar, que
a jornalista pôde ler em primeira mão. Teve uma infância feliz “entre gargalhadas
e poucos ralhetes”, escreve a jornalista da Visão. “Natália-adulta iria
conseguir ver muito à frente do seu tempo. Era uma visionária, com uma
capacidade de antecipação, de perceber o que estava por vir, como quase
ninguém. E iria manter-se coerente com os seus princípios e valores, até ao
fim.” Uma figura que ainda hoje tem muito por revelar, num trabalho de fôlego
que o leitor pode ler a partir da página 32 desta edição.
Visão n.º 1657, editorial de 16-03-2023
Visão n.º 1657, 2023-03-16 |
NATÁLIA, A INDOMÁVEL
Para se perceber Natália, tem de se começar
por conhecer as suas origens. Era, aliás, algo que lhe interessava, respondeu
quando o escritor Victor de Lima Meireles, seu amigo, lhe propôs investigar a
sua genealogia.
Nas suas raízes, tinha, no lado
paterno, Duarte Galvão, cronista-mor do reino e embaixador da corte de Dom João
II à Etiópia (“Não poderemos dizer menos do que isso sobre Natália”, comenta
Filipa Martins). E, no lado materno, tanto houve um antepassado a traçar
pescoços numa batalha no Porto, em 1245, como uma sexta avó escrava, Inês de
seu nome.
“Não deixa de ser curioso saber que o
sangue de Natália fluiu de paragens distantes”, nota a biógrafa. Talvez viesse daí,
aventa, a sua curiosidade pelas calafonas (expatriadas que viviam na Califórnia) e pelos
gestos que elas faziam quando fumavam. Em pequena, imita-as às escondidas com
papelinhos enrolados, “os antepassados precoces das longas boquilhas
imortalizadas na pose que lhe conhecemos”.
O pai, Manuel Medeiros Correia, herdara
da mãe, professora, “algum traquejo cultural”, que terá encantado Maria José.
Apresentava-se como administrador de estufas de ananases e teria prosperado não
fosse o gosto por uma vida mundana. Tanto fez que, “carregado de dívidas, deu o
salto, indo para o Brasil”, contaria a própria Natália.
Manuel sai dos Açores em 1929, tem ela
6 anos, mas já antes se ausentara, nomeadamente para as Bahamas. Do Brasil, há
de enviar-lhe algumas cartas e muitos rosários, bentinhos e missais, até se
remeter ao mais completo silêncio. Mesmo Maria José passa décadas sem saber do
marido, conseguindo divorciar-se só nos anos 50. “Não tinha pai como todos tinham”,
resumirá Natália em Onde
Está o Menino Jesus?
Conservador nos costumes, Manuel deixara
a gestão das rendas das propriedades ao irmão, Francisco, vigário, o que era
uma forma de controlar os comportamentos morais da família. Maria José
detestava o cunhado, achava-o “capaz de abençoar com a mesma mão com que às
escondidas apalpava o rabo à criada”, lemos.
A escritora seria sempre dura ao falar
do pai. Aos amigos, dizia-se traumatizada pelo seu comportamento de alcoólico.
Em entrevistas, limita-o ao papel de fecundador e resume-o a pândegas e a playboiadas. Em várias obras, sintetiza-o sem
paninhos quentes, nota a biógrafa.
UMA CASA DE MULHERES
Os dois só voltam a encontrar-se nos anos
50, em Lisboa, na mesma altura em que Maria José está de partida para o Brasil,
acompanhando a filha Cármen. Seria um reencontro “dolorosamente cerimonioso”,
descreveria Natália, já fragilizada com a perspetiva da ausência da mãe, de
quem se sentia muito dependente.
Maria José era filha de um liberal com
ligações à secreta Carbonária. Professora desde os 21 anos, garantira, até
casar, o sustento da sua mãe viúva e das três irmãs solteiras, Santo Cristo, Hortênsia
e Amância.
Era uma mãe culta, que educou as filhas
para o paganismo e a liberdade. Dava prioridade à mitologia da Antiguidade, à
leitura dos clássicos, à criatividade. “A minha mãe alinhava em tudo o que
fosse, na altura, modernidade subversiva”, contaria a escritora.
Na ausência do pater familias, a casa “tornou-se um ‘gineceu’”,
escreve Filipa Martins. A avó, já com 81 anos quando Natália nasceu, era “a matriarca
delirante”, que passava os dias na penumbra do seu quarto, na companhia do Príncipe Sublime, como chamava ao manequim de
costureira vestido com um traje de características maçónicas que pertencera ao
marido. A tia Hortênsia flagelava-se com cilícios, tendo embora sido sufragista
em nova. E a tia Santo Cristo “era a tia boa”, que acabaria por morrer numa casa
de saúde mental, na sequência de um desgosto de amor.
Quanto a Cármen, não liga às leituras como
ela e a mãe, mas tem ouvido para a música. Nos vários relatórios da PIDE,
enquanto Natália é nomeada escritora ou, o mais das vezes, doméstica, a irmã
chega a constar como pianista.
As duas tratam-se por “minha adorada
irmãzinha” quando se escrevem, mas teriam sempre uma relação ambígua, “entre o
amor e o ciúme, a estranheza e a admiração”, conclui a biógrafa. Natália
sofreria quando Cármen desapareceu sem deixar rasto no Brasil, depois de se
juntar a uma seita religiosa obscura.
MACAMBÚZIA E INDOMÁVEL
Em 1934, vai ser apenas com a mãe e a
irmã que ruma a Lisboa, aos 11 anos. A avó teria morrido, a tia Santo Cristo fora
internada e as outras duas tias haviam emigrado para o Brasil. Ela própria só
voltaria a Ponta Delgada mais de três décadas depois.
Na capital, a mãe começa por dar aulas
numa escola pública (mais tarde, fundaria um colégio, o Lusitano), Cármen vai
estudar para o Liceu Maria Amália e ela para o Dona Filipa de Lencastre, então
no rés do chão de um prédio no bairro da Estrela. Passa muito tempo sozinha,
autossegrega-se. Torna-se a “versão macambúzia” da criança açoriana.
Revela novamente uma maturidade invulgar,
sublinha Filipa Martins, contando como foi ela quem escreveu, aos 11 anos, um
requerimento a pedir à direção da escola a isenção de propinas. “Evoca a sua
condição de órfã, por o pai estar ‘ausente em parte incerta na América do Sul’
como razão cimeira.” Maria José ganhava 700 escudos por mês, e só o exame do
curso geral (5ª classe) custava 200.
A isenção é-lhe concedida, apesar dos
resultados modestos nos estudos, que a própria atribuirá a um temperamento indomável.
Nos anos 80, há de contar ter sido expulsa da escola, facto que a biógrafa não
conseguiu confirmar (“a memória é barro domável...”). Cármen, ela sim, foi
suspensa e afastada por excesso de faltas.
Depois do Filipa, Natália segue para a
Escola Industrial Machado de Castro, escapando-se, assim, às aulas de lavores, culinária
ou artes domésticas. Nunca saberia estrelar um ovo, chorava para fazer um chá,
era incapaz de acender o fogão e contava com Alfredo Machado, o terceiro
marido, com quem viveu mais de 30 anos, para lhe comprar até as meias de nylon. “Não sei tratar de nada, na ordem das coisas
práticas, não sei assinar um cheque, sou perfeitamente desastrada. Só sei
escrever”, confessava.
O BOM SENSO DO CURA
Quando nasceu a Mocidade Portuguesa Feminina,
em dezembro de 1938, Natália saiu da Machado de Castro porque Maria José não
aceitava que as filhas pertencessem àquela “detestável organização”. Tinha 15
anos, estaria a meio do 3º ciclo e não se sabe se terminou esse ano letivo. “É
nessa altura que começa a escolher os seus mestres”, conta Filipa Martins.
São eles alguns amigos da família, como
o escritor e professor Manuel Cardoso Marta, que há de mostrar os primeiros
poemas de Natália ao escritor José Campos de Figueiredo, e muitos poetas
clássicos. Pouco depois, devora as leituras subversivas recomendadas pela mãe,
“que a definiram numa altura em que qualquer apertão deixa marca à flor da
pele”.
Será desse tempo o exemplar “manuseado com
o cuidado dos amantes” de Le Bon Sens du Curé J. Meslier, obra póstuma do sacerdote francês, apontado por
alguns historiadores como precursor da doutrina socialista, que a biógrafa
encontrou na biblioteca da escritora, agora em Ponta Delgada.
Por altura da guerra civil de Espanha, ouve
clandestinamente a BBC com a mãe, “horrorizada pelo espectro nazi”. É também
pela mão da mãe que começa a frequentar tertúlias políticas e literárias, “numa
antecâmara daquilo em que se viria a transformar a sua casa dos anos 50 e 60”.
Já preferia a companhia dos mais velhos, porque eles lhe traziam conhecimento.
Ao mesmo tempo, Natália-adolescente tornou-se
uma “exímia patinadora”, segundo as próprias palavras. “Era uma menina
bonitinha com um estilo diferenciado” das restantes, “que remédio senão ser
namoradeira”.
Logo em 1942, a mãe autoriza o seu
casamento com Álvaro dos Santos Dias Ferreira, um escrivão do Tribunal da Boa
Hora, mais velho 11 anos. Casa a 2 de setembro, a dias de perfazer 19 anos,
pelo civil. Fica, assim, em aberto a hipótese do divórcio.
“Ela casa, e a sua liberdade transita das
mãos do pai ausente para as do marido”, sublinha a biógrafa, que vê neste seu
primeiro enlace sobretudo a vontade de se emancipar.
“CÉLIA” E O CASAMENTO INFELIZ
Os primeiros meses de casamento deixam-na
acabrunhada. Já tinha a convicção de que não queria ser mãe – queria trabalhar.
Sente-se “desasada mas decidida”, confirma a biógrafa num diário inédito da
escritora.
Natália estreia-se, então, a cantar músicas
românticas na Emissora Nacional, sob pseudónimo, porque as cantoras da rádio
tinham fama de levianas. Escolhe apresentar-se como Célia Navarro, consta que
lhe aplaudem a voz, mas conhece um curto êxito.
Um dia, vai ao Rádio Club Português dizer
versos num programa açoriano, descobrem-lhe o timbre declamatório, e de
cançonetista passa a locutora, apresentando-se aos microfones com o seu nome de
casada: Natália Dias Ferreira. Em ainda menos tempo, torna-se residente no
espaço literário noturno, onde rapidamente está a ler poemas da sua autoria.
O casamento também não dura muito. Seja
pelos serões passados fora de casa, pelo cansaço dela, pelo facto de ser vítima
de violência doméstica (“Mais tarde, confidencia a amigos que Álvaro a
violava”, conta-nos a biógrafa), certo é que Natália protagoniza um dos 9 125
divórcios em Portugal da década de 1940. Um divórcio com direito a ação em
tribunal e fundamentado na admissão de adultério da mulher e de sevícias por
parte do marido.
Tinha sido, entretanto, afastada da
rádio, talvez por razões políticas, supõe Filipa Martins. A sua família era
vigiada pela PIDE desde março de 1944, e, dois anos depois, ela iria ingressar
no MUD (Movimento de Unidade Democrática). Havia agentes da polícia política à
porta do colégio da mãe e da sua própria casa.
Meses mais tarde, está a escrever no
jornal Portugal,
Madeira e Açores, cujo
chefe de redação era Artur Geraldo Soares, que se diria apaixonado “até ao
delírio” por ela. E, até ao final da década de 1980, nunca deixará de escrever
em jornais e revistas.
Começa, então, a olhar para a condição feminina,
tema que passa a interessar-lhe como nenhum outro. Não estando ainda
divorciada, insurge-se publicamente quando Salazar retira o direito de voto às
casadas. “Será que o matrimónio marca uma fase de apatia mental na futura mãe
de família?”, escreve, com ironia, em março de 1946. […]
Ler mais em: “Natália Correia - a história da poetisa Indomável”, Rosa Ruela. Visão n.º 1657, 16-03-2023
“O Dever de Deslumbrar - Biografia de Natália Correia” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 18-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/o-dever-de-deslumbrar-biografia-de.html
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