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sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

autografia I, Cesariny




autografia I

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo     uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada
tenho um que deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro é moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais também, por passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica     irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha

E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama     no espaço duma pedra     em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem  sou  eu partido de manhã  encontrado perdido entre lagos  de incêndio e o teu retrato grande!

(CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2, p. 36-38. 1.ª edição: 1957)




[O poema como palco: o sujeito poético em transformação]

autografia I é o primeiro de cinco poemas publicados sob o título “AUTOGRAFIA” em Pena capital, em 1957. Nas edições seguintes do livro, as seções de I a V aparecem separadas e rearrumadas, assumindo, atualmente 24 , uma configuração bastante distinta daquela primeira publicação. Hoje, levam o título “autografia I” e “autografia II” as seções I e III da versão original. O poema II não consta no livro e as seções IV e V levam ambas o título de “poema”, cujos primeiros versos são “Reconheço este quarto impermeável”25 e “Faz-se luz pelo processo de eliminação das sombras”, respectivamente. Ainda que seja possível perceber ecos das outras seções ao longo deste trabalho, interessa-me, aqui, abordar a primeira parte do poema, uma vez que é construída como uma apresentação de “um poeta” transfigurado através do processo de escrita.
Quando comparado aos dois poemas analisados no capítulo anterior [“tal como catedrais” e “you are welcome to elsinore”], “autografia I” parece apostar em um caráter verborrágico, efeito produzido pelo excesso de imagens que são construídas e por certa progressão rítmica, sentida no alongamento dos versos e das frases do poema. Assim, se, na primeira estrofe, lemos “Sou um homem / um poeta”, definições simplórias do sujeito poético encerradas dentro de um único verso cada, a partir do terceiro verso, as descrições se tornam cada vez mais complexas, construindo imagens mais próprias do universo surrealista, criadas a partir da mistura de níveis de experiência e de certa literalização das metáforas processo percebido na transformação progressiva pela qual passa o sujeito poético. Os dois versos finais do poema, em oposição às definições curtas do início, formam uma única frase, configurando o ponto máximo da construção frenética de imagens no poema e de certo aceleramento provocado durante sua leitura: “e que o homem-expedição de que não notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias / sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!”.
Em cena, um sujeito que parece apresentar-se a uma segunda pessoa, em busca de uma definição total do seu ser: “E para dizer-te tudo / dir-te-ei que [...] estou em franca ascensão para ti”. O excesso de imagens e de tentativas de representação do sujeito que afirma constantemente um “eu sou”, ao contrário da coesão e do detalhamento esperados, leva ao constante apagamento desse enunciador. Para isto contribuem a repetição de artigos indefinidos e o uso do plural como forma de indefinição, fazendo com que as imagens construídas vacilem, num processo de construção e destruição constante, o qual se alia ao projeto poético do surrealismo de Cesariny. Segundo o poeta, “produzir um objecto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido, [...] é fixar, violentando a realidade ‘presente’, um novo real poético (uno)” (CESARINY, 1997, p. 89). Assim, as definições que conduzem ao aberto parecem convocar a simultaneidade de todas as transformações pelas quais passa o sujeito poético:

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido [...]
tenho um sol sobre a pleura
[...]
a terra onde eu milhares de anos vivo a parábola
[...]
Quanto ao de toda a gente tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião não foram poucos
[...]
é por isso que eu trago um certo peso extinto [...]
e que o homem-expedição de que não notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!
(CESARINY, 2004, p. 36-38).

Seguindo o pacto de leitura proposto por seu título e as repetições da expressão “eu sou” ao longo do poema, torna-se possível perceber um diálogo entre a composição de Cesariny e certa tradição moderna da poesia no que tange à crise da figuração do autor. Em sua leitura da “morte do autor” barthesiana, Manuel Gusmão afirma que a crítica do semiólogo francês sobre a representação do autor como pai e proprietário da obra, apesar de incontornável, ao apostar na “instituição do ‘anonimato transcendental’[,] dissolve sem resolver demasiados problemas” (GUSMÃO, 2000, p. 268). Nesse sentido, Gusmão propõe um recuo à poética rimbaudiana para abordar essa questão, introduzindo a noção de alterização que “permite, sim, figurar um acontecimento de linguagem, um acontecer da escrita ou da poesia: difere a fonte da voz, mas evita o anonimato transcendental” (GUSMÃO, 2000, p. 269). Identificando a poética do fingimento pessoana à alterização identificada na poesia de Rimbaud, o crítico português aponta que “a autoria em Fernando Pessoa exibe a forma de um diálogo múltiplo e descentrado, que cruza génese de escrita e construção retroactiva da imagem ou da figura autoral” (GUSMÃO, 2000, p. 272). Sugere, então, que a figura do “autor” na obra pessoana se dá, justamente, a partir da escrita e não existe a priori desta.

Em “autografia I”, Cesariny parece se aproximar da poética de Fernando Pessoa nesse ponto, uma vez que podemos perceber como o “autor” nega sua posição de anterioridade em relação à obra, indicando que sua identidade emerge como um efeito do próprio ato de escrita. Assim, na rasura sobre o título do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, Cesariny aponta a necessidade da apropriação dos textos alheios não apenas para o empreendimento do trabalho de escrita, mas para a construção do sujeito poético cesarinyano, estabelecendo, portanto, um jogo bio/biblio-gráfico desde o título do poema. Com a expressão “autografia”, o poeta parece definir uma escrita e uma inscrição de si, como se estas fossem responsáveis simultaneamente por um “autógrafo” e por uma “autobiografia”.
Com o apagamento do sintagma [bio-], constituem-se os termos que dão título às duas artes poéticas em questão autopsicografia e autografia. No título do poema de Pessoa, tal apagamento indicaria a cisão modernista entre a vida do autor e seu trabalho de escrita. Porém, se Pessoa substitui [-bio] por [-psico], Cesariny abole ambos, reforçando os significados dos dois afixos que se encontram nos extremos da palavra: [-auto] e [-grafia], permitindo um alargamento dos significados que cada um dos termos carrega26. A operação de supressão dos dois sintagmas anteriores mostra-se, assim, de fundamental importância para a compreensão da poética que Cesariny apresenta nesse poema e indica que a escrita é concebida como forma de constituição do sujeito, o qual assume simultaneamente os papéis de criador e criatura, autógrafo e autografado.
As três estrofes de “autografia I” parecem subverter a estrutura rígida de teorema de “Autopsicografia”, na qual, na primeira estrofe, apresenta-se uma proposição que será justificada ao longo das estrofes seguintes. Seguindo a leitura de Gusmão, o primeiro verso do
poema pessoano, “[o] poeta é um fingidor” (PESSOA, 1985, p. 164), funciona como um aforismo no qual a 1a pessoa sugerida pelo “auto” do título transforma-se em uma 3a pessoa, “o poeta”, o qual “designa a classe dos poetas” (GUSMÃO, 2000, p. 274). Como diversas vezes notado, o fingimento do poeta não deve ser tomado em uma dimensão moral, mas como uma manifestação “da ordem o artístico ou do estético, da ficção” (GUSMÃO, 2000, p. 275).
A identificação daquele que afirma “[eu sou] um poeta”, em “autografia I”, com “o poeta” que representa toda a classe de poetas em “Autopsicografia” é uma forma de deslocamento da lição de poética de Pessoa, levando-nos a crer que o “poeta” de Cesariny poderia ser, também, “um fingidor”. Nesse movimento, porém, a reiteração da 1a pessoa do singular expressa pelo título e as sucessivas definições que o sujeito reclama para si parecem indicar uma transformação radical do fingimento pessoano, mostrando um outro modo de estar em poesia, no qual a enunciação poética funciona como a fundação efetiva de um novo sujeito no mundo. Assim, a repetição do verbo “ser” ao longo de todo o poema de Cesariny, mesmo quando eclipsado, reforça a ideia de definição do sujeito como um corpo poético, configurado pelos encontros “no processo de escrita-e-leitura” (GUSMÃO, 2000, p. 275). Ao afirmar, ainda,

Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
(CESARINY, 2004, p. 37),

a falta de uma vírgula que separe o aposto “no sentido mais enérgico [...]” de “uma carruagem de propulsão [...]”, aponta que aquilo que se diz “no sentido mais enérgico da palavra” é a afirmação anterior à virgula: o “eu sou”. Na “propulsão por hálito”, percebemos como a identidade que se constrói ao longo do poema surge como resultado do encontro com o outro, reforçada, ainda, pela dimensão física de tal encontro.
Assim como nos poemas anteriores, o “eu” do poema de Cesariny pronuncia um “tu” ao longo do poema. Como o “tu” de “tal como catedrais” com o qual o “obreiro” teria consumado sua obra, aquele que é interpelado em “autografia I” parece ser um “tu” amante, profundamente implicado no processo de transformação do “eu-lírico”. Na primeira estrofe, vemos como esse outro figura no interior da cena da transformação do “poeta”:

um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
(CESARINY, 2004, p. 36).

O advérbio “agora”, nessa passagem, leva-nos a crer que se trata, justamente, do momento da leitura, daquele em que lemos esses versos. Nesse sentido, a interpelação de um “tu” indica uma mudança profunda na ligação entre o poeta e seus leitores em relação ao expresso no poema de Pessoa. Se, para o modernista, a primeira pessoa anunciada pelo título esconde-se num generalizante “o poeta” e a referência aos leitores se em termos de um distante “os que leem o que escreve”, para o surrealista, parece tratar-se de uma relação íntima entre aquele que diz “Eu sou” e chama-nos por “tu”. Afirma ainda

conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te eu te ia beijar a tua casa)
(CESARINY, 2004, p. 36).

A expressão “[e] assim”, com a qual se inicia a terceira e última quadra de “Autopsicografia”, forma de conclusão que pretende encerrar a tese apresentada nas duas estrofes anteriores, aparece transformada por Cesariny num pouco esclarecedor “[e] para dizer-te tudo”, outra maneira de concluir um percurso de apresentação e definição de uma poética. A explicação final, contudo, conduz a ainda outro processo de transformação do corpo poético cuja mais potente definição seria a do “homem-expedição”, possível encontro com o “não evoluo. VIAJO” (PESSOA, 1962, p. 209), de Pessoa.
No ensaio “Fernando Nogueira Pessoa Autoractor”, Cesariny acusa Pessoa de não ter vivido inteiramente sua poética, algo que seria totalmente avesso à concepção de poética do surrealista, identificado com o projeto vanguardista de dissolução das fronteiras entre arte e vida. Para o nosso poeta,

[o] “não evoluo, viajo” e a explicação do surgimento dos heterónimos, nas duas cartas a Casais Monteiro, são o naufrágio à vista do continente que os surrealistas haviam de desbravar, por operação inversa, mas de signo idêntico, à da poética fernandina. [...] Porém, a “loucura” de Pessoa não sai nunca da “linha de razão”. É metodológica (CESARINY, 1985, p. 72).

A crítica do “homem-expedição” ao viajante reside na tentativa de “explicação” racional do funcionamento da criação e no balizamento lógico da poesia de Pessoa, com os quais, de certa forma, é preservado o “insofrimento aristocrático do poeta” (GUSMÃO, 2000, p. 275).
em “autografia I”, o sujeito poético está em uma posição diametralmente oposta à do poeta modernista. Se Gusmão afirma que “a cena da escrita e da leitura figurada no poema [de Pessoa] é regida por uma assimetria iniludível, porque a dor lida não é nenhuma das que o poeta teve” (GUSMÃO, 2000, p. 277) e que “[e]ssa dissimetria diz o excesso e a determinação da escrita sobre a leitura”, o poeta em cena no poema de Cesariny parece identificar-se mais íntima e solidariamente com “os que leem” do que com “o poeta [que] é um fingidor”. Portanto, a “operação autobiográfica do leitor” (GUSMÃO, 2000, p. 277) desencadeada no ato da leitura parece ser aquela pela qual passa o “poeta” no poema de Cesariny. Assim, sofre, como um corpo único, uma contínua transfiguração ao longo do poema, ao passo que Pessoa se compartimentara para permitir as transformações do sujeito.
No texto “Para uma cronologia do surrealismo em português” (CESARINY, 1985, p. 261-282), Cesariny afirma que

[o] que em Fernando Pessoa interessou profundamente os surrealistas foi o desligar da corrente alterna que ligava séculos o discurso racionalista ao princípio de identidade, foi a destruição do conceito (válido) de “personalidade” (da “personalística contemporânea”, escrevi, em 1948), e não, nunca, o da sua divisão, compartimentação ou dispersão. A ‘operação cirúrgica’ levada por Pessoa ao motor central da psique moveu a gestação de quatro maravilhosos monstrozinhos que cantam todos juntos a morte do super-racionalista seu pai (CESARINY, 1985, p. 262-263).

Nesse fragmento, podemos perceber como Cesariny reconhece como valoroso o desenvolvimento de uma poética na qual se “desligava” o “discurso racionalista ao princípio de identidade”. Condena, entretanto, a “operação cirúrgica” de criação da heteronímia, a compartimentação de um em muitos, crítica que vemos desenvolvida em “autografia I”, onde a possibilidade de transformação de um mesmo sujeito é demonstrada em profusão. No “Prefácio” à Poesia de Teixeira de Pascoaes, Cesariny compara a obra dos dois poetas e afirma que, na poesia do saudosista, “o Poeta recusa o mero lirismo catalogante [...] e é enfim Vidente, ‘possuidor das forças das coisas superiores e das coisas inferiores que se dermos a volta à esfera trocam posições’” (CESARINY, 1972, p. 12), ao passo que, a respeito de um poema de Pessoa, Cesariny escreve: “muito belo. Dizer apenas ‘bonito’ seria ingratidão” (CESARINY, 1972, p. 11).

A temática da constituição da “autoridade” emerge não apenas em “autografia I” e nos poemas trabalhados nesta dissertação, mas é perceptível ao longo de toda a obra de Cesariny, notadamente em alguns ensaios publicados em As mãos na água, a cabeça no mar (1985), como no mencionado “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” e em “Razão e actualidade de Gérard de Nerval”27. No primeiro ensaio, publicado em maio de 1958, Cesariny pretende subverter o significado cristalizado de “autoridade”, atribuindo a essa palavra um novo sentido: “autoridade é do que é autor” (CESARINY, 1985, p. 75). O poeta se apropria de dois termos tabus em meados dos anos de 1950, no Portugal de Salazar, subvertendo a noção corrente segundo a qual “o português é convidado a imaginar que o fragmento de liberdade resulta do inchaço de autoridade; e, inversamente: que dum inchaço da liberdade resulta o fragmento da autoridade” (CESARINY, 1985, p. 74). Cesariny afirma crer ser seu “dever de cidadão e de autor [...] declarar as seguintes palavras fundamentais” (CESARINY, 1985, p. 75):

AUTORIDADE E LIBERDADE
SÃO UMA E A MESMA COISA

Autoridade é do que é autor.
a autoridade confere autoridade.
A autoridade não é uma quantidade.
Todo o homem é teatro de uma inexpugnável autoridade.
Aquele que julga ser possível autorizar ou desautorizar a autoridade de outrem não sabe no que se mete.
Liberdade.
A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só. Mas são mais reverbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moda corrente do libertino.
Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada, com cães.
Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver do homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro nunca sairá escravo.
Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa
(CESARINY, 1985, p. 75).

Nesse fragmento do ensaio-poema, Cesariny defende ser “dever” do cidadão e do autor uma atitude de resistência que se instancia no próprio ato de escrita, no qual a reivindicação e a conquista de sua autoridade são a própria liberdade, indicando a dimensão ética da poesia cesarinyana.
No outro ensaio, publicado pela primeira vez em 1956, Cesariny elenca citações de diversos poetas que tematizam a questão da autoridade em poesia. Afirmando que “Nerval antecipa-se a toda a modernidade” (CESARINY, 1985, p. 51), o português faz a seguinte lista:

“Eu sou o outro” (Gérard de Nerval). “Je, est un autre.” (Rimbaud). “Eu não sou eu / Eu não nasci ainda!” (Teixeira de Pascoaes). “Ah, poder ser tu, sendo eu!” (Fernando Pessoa em estado de labirinto, como se efectivamente tivesse conhecido o outro). “Eu não sou eu nem o outro” (Mário de Sá-Carneiro). “Não na terra um único ser humano capaz de se declarar, com toda a certeza, quem é. Ninguém sabe o que veio fazer a este mundo, a que correspondem os seus actos, os seus sentimentos, as suas ideias, nem qual é o seu nome verdadeiro.” (Léon Bloy, citado por Borges) (CESARINY, 1985, p. 51).

A essa sequência, poderíamos incluir o “eu sou, no sentido mais enérgico da palavra” que lemos em “autografia I”.
Aceitando a complementaridade dos dois ensaios, podemos ver como a “autoridade” de Cesariny é constituída por uma complexa relação entre arte e vida, na qual se observa um compromisso ético que instaura o franqueamento das fronteiras entre ambas. Esta parece ser um desdobramento da primeira crítica de Cesariny à poesia de Fernando Pessoa e a ressalva fundamental  que  a  ela  fazem  os  poetas  contemporâneos  do  surrealista 28 :  a  aparente inexistência de um compromisso ético na poética pessoana. Rosa Maria Martelo, em “Cenas de escrita” (2010), afirma que “a representação do poeta [Cesariny] se situa nos antípodas (surrealistas) da cisão modernista entre escrita e vida, ou seja, muito longe das poéticas cujo empenhamento é essencialmente textual ou textualista” (MARTELO, 2010, p. 329). Nesse sentido, a “autografia” que se consuma nesse poema é, de fato, inscrição e construção de um corpo/corpus dependente do trabalho de escrita para sobrevivência e como exercício de conquista da liberdade29. Apesar de se aproximar dos poetas do Orpheu, para os quais, “[é] o poema mesmo que cria a realidade que nós tocamos depois de o ter lido. Não é descrição, nem comentário, nem alusão, nem símbolo, nem mesmo sugestão. [...] O mundo que é esse que o poema faz existir ou inexistir” (LOURENÇO, 1987, p. 145), confirme anotou Eduardo Lourenço, a poesia de Cesariny parece mais comprometida com a luta “contra o que nos oprime” (CESARINY, 1985, p. 75). Dessa forma, a emergência de um autor no ato da escrita é, também, a emergência de um sujeito no mundo que, apesar se esconder atrás de sua “gabardina”, pode “ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita”. Para Martelo, “[o] que vemos na cena de escrita representada por Cesariny é a própria implicação surrealista da escrita numa aventura que é, antes de mais, vivencial, quotidianamente vivida” (MARTELO, 2010, p. 329). Assim, se a dor sobre a qual o poeta pessoano finge/elabora/esculpe para poder transpor ao poema e, assim, fazer com que os leitores conheçam uma nova dor é uma dor não localizada dentro de uma experiência de mundo, no poema de Cesariny, a “dor” é circunstanciada: são “os dias e os anos deste século [que] têm gritado tanto no meu peito”.
No filme documentário que lhe é dedicado, Autografia30, Cesariny afirma: “nunca escrevi um poema em casa”, mostrando que concebe sua escrita como uma atividade que só poderia ser feita a partir do contato com o mundo, com o cotidiano. Não escrevia em casa, pois via como necessários o estar na rua e o encontro com as pessoas nos cafés, era preciso ver e ser visto. Reforça, assim, o caráter “engajado” de sua obra: não se pode dar as costas ao mundo, uma vez que o poeta com ele se encontra para a escrita do poema. Quando lemos “autografia I”, portanto, vemos que não se trata da inserção de marcas de sua vida pessoal, ou civil31, na poesia, mas da criação de um corpo poético apenas existente porque criado pela poesia. Trata-se, assim, do movimento inverso: da invasão da arte na vida.
A metamorfose do sujeito poético, múltiplo à medida que o poema não apenas o configura, mas é capaz de o transfigurar continuamente, dá-se a partir de uma apropriação do mundo que se inscreve no próprio corpo do poeta, o qual, como vemos no fim da segunda estrofe, afirma que “é por isso que eu trago um certo peso extinto / nas costas / a servir de combustível”. Portanto, a criação do corpo pela poesia não se somente como efeito do que o  próprio  Cesariny  escreve,  uma  vez  que  percebemos  uma  herança  artístico-literária fortemente representada em sua obra, como temos visto ao longo deste estudo. Dessa maneira, o encontro do poeta com sua herança cultural é também definidor da relação que estabelece com o mundo à sua volta.
Talvez este seja o mesmo movimento que observamos no capítulo anterior, quando trabalhamos com o poema “tal como catedrais”. Como vimos, foi na condição de leitor de poesia que o “obreiro” pôde construir sua nova “Obra”. No poema desta seção, o suposto “eu- lírico” de Cesariny também se apropria de outras poéticas para se transformar em “homem- expedição”, naquele que busca uma “outra espécie de fim, para as coisas que são”, ou que acha “que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas / para não termos de atirá-las semi-mortas à linha”. Assim, a posição de leitor que assume Cesariny é o que o distingue profundamente do poeta “fingidor” pessoano. Na condição de leitor, é trans/con-figurado pelo poder da linguagem poética e pode reivindicar sua autoridade e um lugar de poeta em seu tempo. Novamente, seu texto parece depender do encontro com o outro: corpo ou texto amante.

__________________
24 A edição mais recente e a última revisada por Mário Cesariny, aquela que podemos chamar de “definitiva”: CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
25 Este poema recebeu uma ótima análise no ensaio “O Corpo-Cesariny-surrealista”, de Ana Cristina Joaquim.
Revista Convergência Lusíada, nº 33. Rio de Janeiro, janeiro – junho, 2015.
26 Dessa forma, a expressão de Cesariny parece guardar ainda outro sentido: a escrita (grafia) automática. Um dos pilares da prática do Surrealismo, a escrita automática consistia em burlar a racionalidade, a lógica, através de uma escrita que emergia num estado de “desatenção” (BRETON, s/d, p. 195).
27 É interessante notar que ambos os ensaios foram publicados originalmente em datas muito próximas à do lançamento de Pena capital, em 1957, levando a crer que este era um tema relevante para Cesariny durante esse período. A ordem cronológica das publicações é “Razão e actualidade de Gérard de Nerval” (1956), Pena capital (1957) e “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (1958).
28 Uma reação poética muito conhecida e abordada pela crítica à “poética do fingimento” de Pessoa é a “poética do testemunho” fundada por Jorge de Sena, especialmente defendida em seu Prefácio à Poesia I (1961). Neste, Sena afirma que “[t]ambém para mim, a poesia não é de facto um fingimento. [...] repugnou-me sempre a parte de artifício, no mais elevado sentido de técnica de apreensão das mais virtualidades, que um tal ‘fingimento’ implica. [...] muito de orgulho desmedido nesse ‘fingimento’, que contrasta, quanto a mim, com a humildade expectante, a atenção discreta, a disponibilidade vigilante, com que, dando de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca, como do mundo que, vivendo-o, nós próprios cercamos do nosso material cuidado. É que à poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender o mundo, transformá-lo. [...] Se o ‘fingimento’ é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito enquanto educador de si próprio e dos outros, o ‘testemunho’ é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos” (SENA, 1961, p. 11).
29 Muitas são as definições de liberdade que encontramos nos escritos de Cesariny. Todas elas, no entanto, parecem insistir em um ponto comum: “a liberdade não é uma coisa que se dá, ou se recebe, como um presente de Natal! A liberdade é algo que se arranca a quem, homem, coisa, ou ideia, traz o hábito do carrasco. Não existe homem livre senão na conquista da liberdade” (CESARINY, 1985, p. 97, grifo meu)
30 Autografia. Direção de Miguel Gonçalves Mendes, produzido por JumpCut. Lisboa: Atlanta Filmes, 2004.
31 Cf. António Carlos Cortez “Mário Cesariny ou os caminhos de uma poética”, Relâmpago, 26, abril de 2010: “No cerne da poesia de Cesariny, o que encontramos é a expressão de uma vida assumidamente poética, como se entre a esfera civil e a esfera ‘literária’ não houvesse qualquer distinção” (op. cit., p. 58).

Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de Janeiro, 2017.



Poderá gostar de ler algumas cenas da escrita de Mário Cesariny:





CARREIRO, José. “autografia I, Cesariny”. Portugal, Folha de Poesia, 03-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/autografia-i-cesariny.html



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