Menina dos olhos tristes
o que tanto a faz chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
está mesmo quase a chegar
Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar
Zeca
Afonso: ``Menina dos Olhos Tristes'' Single Orfeu STAT-803 1969
Zeca
Afonso: ``De Capa e Batina'' CD Movieplay JA-8000 1996
A canção Menina dos Olhos Tristes foi escrita pelo poeta Reinaldo Ferreira84, musicada e interpretada por Zeca Afonso[85] e lançada em 1969. A canção é muito melódica, marcadamente sentimental, sendo acompanhada apenas pelo violão, e critica a Guerra Colonial, que ceifava a vida de milhares de jovens que lutaram em Angola, Guiné Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1974.
Do ponto
de vista formal, a composição obedece ao mesmo padrão da divisão silábica
poética tradicional, com poucas exceções: no último verso das quadras 1 a 4, não há
a junção das sílabas "do" e "outro" na frase "do outro lado do mar", para que a métrica permaneça
a mesma da dos versos anteriores, sendo todos eles caracterizados como redondilha
maior. O oposto ocorre na quinta estrofe, também no último verso: "está
quase mesmo a chegar'', em que a palavra "está" é contraída para igualar a quantidade de sílabas, formando
apenas uma sílaba com a palavra "stá". Todos os versos pares
terminam com a última sílaba sendo forte,
por serem verbos no infinitivo
(todos terminados em -AR) ou monossílabos tônicos (mar), sendo a única
rima recorrente no texto inteiro – que são classificadas como rima rica, visto
que há a rima de um substantivo com um verbo; outra rima encontrada nessa
canção ocorre nos substantivos 'soldadinho e pinho', no último verso. O aspeto
sonoro dessa canção é importante e merece atenção especial antes de proceder ao
comentário sobre a letra: a canção tem um ritmo lento, uma melodia sentimental,
melancólica, e até a quinta estrofe as notas obedecem a esse padrão que foi imposto
logo na primeira quadra. Ao término das estrofes 2, 4 e 6, na versão cantada
por Zeca Afonso, há um tom de lamentação ("huuum"), cantado
juntamente com o violão, instrumento bem marcado em todos os versos até a
penúltima estrofe.
As notas também seguem um
mesmo tom, não sendo tão agudas e nem tão graves, até
a chegada da última estrofe, quando se atinge o clímax com o final da narrativa
que há no poema e a melodia é alterada, mostrando uma "morbidez na vocalização de José
Afonso"86 ao anunciar: "O soldadinho já volta".
Assim, ao
fim da quinta estrofe a expectativa do ouvinte é quebrada de duas maneiras: a
primeira delas, em relação ao som, deixando de se ouvir o violão, que não é mais tocado entre os versos, como uma
alusão ao luto, e com a subida do tom da nota, que passa a ser mais aguda, nos versos "vem numa caixa de pinho,
desta vez o soldadinho'',
além de serem tocados numa
duração temporal maior que os versos das estrofes anteriores. A segunda quebra
de expectativa dá-se com relação ao conteúdo da letra, por não mais manter a
repetição ocorrida nas quadras anteriores, e pelo real significado de o
soldadinho "estar de volta do outro lado do mar'', agora morto, pois não era
esse o desfecho esperado pelo ouvinte e nem pela família.
Relativamente
à letra destaca-se em cada estrofe a presença da palavra soldadinho sendo o centro da
mensagem, e também, outras personagens que fazem parte da família do soldadinho enviado à guerra. Juntos
(a menina, o senhor, a senhora
e o amigo), todos enfrentam
a saudade e a dor de ter que conviver com a ausência do ente querido.
Em
relação à escolha das palavras da canção, ressalta-se a preferência do compositor
pelo uso do diminutivo em "soldadinho". Sabendo que muitos dos
soldados portugueses que iam à guerra estavam no auge da sua juventude, muitos
com dezassete ou dezoito anos, e inexperientes, eram obrigados a abdicar do
convívio familiar, de seus sonhos para lutar numa guerra que não lhes tinha
apoio, nem lhes fazia qualquer sentido. Além dos sonhos, os jovens deixavam
para trás seus pais, namoradas e amigos, e os que ficavam conviviam com a dor
de ver alguém partir. Ao utilizar o diminutivo "soldadinho", além de
enfatizar a juventude e a falta de experiência, ainda aumenta a compaixão por parte
de quem ouve a canção, atentando para uma das crueldades de se manter a guerra,
ao retirar do jovenzinho um futuro que lhes reservava. Ressalta-se que também o
compositor, Zeca Afonso, na altura do lançamento dessa canção, tinha em torno de quarenta
anos de idade, convivendo amigos bem mais jovens,
como José Letria e Francisco
Fanhais, e a partir deles via como seria partir tão cedo, com tanta vida e aspirações,
e sentia-se penalizado e envolvido no lamento dessas vidas desperdiçadas.
As
palavras escolhidas para caracterizar os entes dos soldadinhos que sofrem com a
ausência dele apontam que a situação não seria "temporária'', como nos
versos "menina dos
olhos tristes" e "senhora de olhos cansados" - e não "menina com
os olhos tristes" ou "senhora com os
olhos cansados". O uso da preposição "de'', traz a ideia
de algo permanente - com o sofrimento que
começou há tantos anos e se prolongará para o resto da vida - pois aos jovens que
morreram na guerra, a família carregará para sempre essa dor - para os sobreviventes,
com certeza, carregarão marcas físicas e psicológicas difíceis de serem
cicatrizadas.
Nas
estrofes 1 a 4, nos dois últimos versos, o
poema trabalha com uma repetição que é reforçada pela negação: "O soldadinho não volta,
do outro lado do mar". Essa repetição comunica uma história que não tem
fim, e que se repete ano após ano (ao todo, a Guerra Colonial durou treze
anos). Além disso, a repetição também revela a longa espera, por parte dos
familiares, de notícias que nunca chegavam. A ausência dessas informações podia
ser para o bem, ou para o mal, pois a chegada de uma carta, por exemplo, seria
sinónimo de que a notícia poderia acabar com a esperança de qualquer um. Já no
penúltimo verso, em vez da repetição com a negação, no lugar no "não" há uma ênfase no advérbio
"já", desvendando o incomum - confirmado pelo verso seguinte: "desta vez o soldadinho",
mostrando a triste diferença em relação à rotina relatada nos versos
anteriores.
Esses
dois últimos versos admitem múltiplas leituras: a) pode dar a ideia de uma situação
corriqueira, todos já sabem que o soldadinho "não volta", e, por isso, as primeiras estrofes já
mostram o luto, pois expondo nas palavras utilizadas nos dois primeiros versos de
cada estrofe a tristeza e o choro dos familiares. Talvez por já saberem do
desfecho e esperarem a chegada do corpo do soldado - que podia voltar, ou não.
Mas essa espera, demonstrada nas estrofes, se refere à espera do corpo - talvez
a certeza de que o soldadinho realmente morreu em combate - e poder enterrar no
seu país, de maneira digna; b) As estrofes também podem revelar que a falta de
notícias é angustiante para os familiares - eles não sabem do desfecho, mas
aguardam ansiosamente por notícias. Era como se a família estivesse à espera
todos os dias perto do mar, vendo os barcos que iam e vinham das províncias
ultramarinas, mas o soldadinho que tanto esperavam, não estava no meio deles.
Assim, com a última estrofe, indicando a volta do soldadinho, para as duas interpretações
há a quebra de expectativa: na primeira, o corpo realmente voltou e a angustiante
espera da família também acaba, podendo finalmente certificar de que o que já
sabiam, era a dura realidade. Na segunda hipótese, o desfecho se revela ainda
mais trágico, visto que havia uma esperança de que o soldado voltasse vivo da
guerra, e não em um "caixão".
O termo
"caixa de pinho" é utilizado como um "eufemismo", no lugar da palavra "caixão", sendo uma maneira mais suave para "minimizar" a real
expressão. Essa expressão ainda colabora com a duração do verso da canção e ao
mesmo tempo, com a rima para "soldadinho'', sendo a única palavra da
canção com essa terminação, mostrando uma relação muito próxima entre eles.
Por meio
do esquema abaixo, pode-se ver o destaque de cada estrofe e a razão da tristeza
de cada uma das pessoas. Em todas elas, o motivo é a ausência do soldadinho:
Temos na
penúltima estrofe uma prosopopeia, com a personificação da "lua'',
assumindo o papel de "viajante", "mensageira" e
"informante". Essa escolha pode ser justificada pelo fato de ela ser
um elemento único e onipresente e sendo viajante, fazendo-se presente em vários
lugares ao mesmo tempo, poderia ser a única que soubesse do desfecho, ao
acompanhar (mais ainda: ao guiar) os soldadinhos no triste regresso. Simbolicamente, a lua, possuidora de quatro
fases, assume ritmos biológicos: ao nascer, crescer, decrescer e desaparecer,
representando os ciclos da vida, do nascimento à morte (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2006).
A escolha
da lua no poema indica em que momento a ação se passa, pois, sendo à noite, pode
trazer a ideia de um tom sombrio, como se isso trouxesse desesperança, tristeza
e melancolia, confirmando os sentimentos demonstrados ao longo do poema.
A canção
se encerra com outra negação, contida no advérbio "nunca'', também relativo
ao 'soldadinho', que tanto se refere ao tom de negação presente na canção
inteira, quanto à noção de temporalidade (em tempo algum, jamais): o soldadinho
que "não volta do outro lado do mar" também "nunca mais voltará
ao mar".
Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais
ordena",
Ludmila Arruda.
São
Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016
_______________
Notas:
84 Reinaldo Ferreira nasceu
em 1922, em Barcelona (Espanha) e viveu em Moçambique. Sua poesia só ficou
conhecida após a sua morte, ocorrida em 1959.
85 O cantor Adriano Correia
de Oliveira também interpretou a canção em 1964, antes, portanto de Zeca Afonso, podendo ser considerada a
primeira versão. Como foi primeiramente musicada por Zeca Afonso, Adriano Correia de
Oliveira teria pedido ao cantor a permissão para gravá-la.
86 http://www.aja.pt/verso-dos-versos/
CARREIRO, José. “Menina
dos olhos tristes, Zeca Afonso”. Portugal, Folha de Poesia, 18-10-2021.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/menina-dos-olhos-tristes-zeca-afonso.html
Sem comentários:
Enviar um comentário