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sábado, 6 de novembro de 2021

recado, de Al Berto


 

recado

 

ouve-me

que o dia te seja limpo e

a cada esquina de luz possas recolher

alimento suficiente para a tua morte

 

vai até onde ninguém te possa falar

ou reconhecer — vai por esse campo

de crateras extintas — vai por essa porta

de água tão vasta quanto a noite

 

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te

e as loucas aveias que o ácido enferrujou

erguerem-se na vertigem do voo — deixa

que o outono traga os pássaros e as abelhas

para pernoitarem na doçura

do teu breve coração — ouve-me

 

que o dia te seja limpo

e para lá da pele constrói o arco de sal

a morada eterna — o mar por onde fugirá

o etéreo visitante desta noite

 

não esqueças o navio carregado de lumes

de desejos em poeira — não esqueças o ouro

o marfim — os sessenta comprimidos letais

ao pequeno-almoço

 

Al Berto, Horto de Incêndio (1997)




Al Berto e o fogo

 

Um dos medos do eu lírico al bertiano é o da morte, tanto que essa questão permeia também seu último livro. “O medo da morte me faz apreender - temer – uma realidade outra, irredutível aos objetos habituais do saber e aos organismos de poder. Mais do que o nada que ela anuncia, é a alteridade da morte” (POIRIÉ, 2007, p.34), aspecto esse, presente nos poemas de Al Berto.

Poemas que falam de incêndio, do relâmpago, do cigarro, da sarça ardente, designando uma poética da morte pelo fogo, para o fogo. De acordo com Massaud Moisés (2008) “[...] açulado pelos seus sentidos em brasa, o seu olhar alcança o mínimo e o máximo, o próximo e o longínquo...” (p. 494). Já António Ramos Rosa (1991) elucida que “tomar contato com o mundo não é para este poeta uma possessão da realidade, mas quase sempre significa uma perda irreparável, um grito de revolta e de medo” (p. 119). A seguir será feita a leitura de alguns de seus poemas apontando a imagem do fogo como sendo parte da imagem da morte, ou mesmo um anúncio da morte.

A obra de Al Berto reveste-se de fogo e queima-se para uma lírica da morte. O poema que abre o livro Horto de Incêndio tem por título recado, assim, escrito com letras minúsculas, como igualmente todo o poema e os poemas. Por estar em um horto de incêndio e a morte próxima, aproveita para anunciá-la para um interlocutor/alocutário, que pode ser o próprio Alberto Pidwell. Como se o poeta quisesse deixar a mensagem de um tempo breve, para aquele “breve coração”.

Al Berto pede ao interlocutor/ alocutário que o escute e deseja-lhe “que o dia te seja limpo”, como se de uma purificação se tratasse. Isso ganha intensidade quando o poeta diz “deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te”, isto é, uma constelação, porque está na escuridão, nas trevas. A imagem do fogo neste poema é representada pela luz, e pelo “navio carregado de lume”, entendendo-se esse processo como um rito de passagem que será iniciado com “os sessenta comprimidos letais ao pequeno-almoço”, anúncio da própria morte.

Por meio desse poema, nota-se o entrelaçamento da imagem do fogo com a imagem da morte, um prólogo ao livro que se constitui de outros poemas em que essa temática acentua-se, fechando com um longo em homenagem a Rimbaud, carregado de simbolismos e figuras da “morte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de lisboa a 20 de novembro de 1996”, levando-nos a pensar no que Anna Hartmann Cavalcanti (2005) fala: “A noção de símbolo permite explicitar que o conteúdo representado pela palavra não é a expressão das próprias coisas, mas um âmbito puramente fenomênico, e de nossas representações” (p. 146).

Portanto, entendemos a imagem calorífica em certos poemas al bertianos como sendo a representação da morte, já que a linguagem simboliza, deste modo, nosso mundo interior por meio das representações, “as imagens são produtos imaginários” (PAZ, 2009, p. 37) e são essas imagens que pretendemos enfatizar no presente estudo. António Ramos Rosa complementa a idéia de uma liberdade por meio da destruição dizendo:

 

Vemos assim que a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral, mas esta destruição não constitui uma supressão pura e simples da identidade do poeta. À violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital. E é também a expressão paroxística de um desejo da comunhão pura (ROSA, 1991, p. 119).

 

O poeta vê a fugacidade no “navio carregado de lume”, no qual há estreita ligação com liberdade, isto é, a morte como a libertação deste estar no mundo sem objetividade. Destarte, o que se espera não é simplesmente o “etéreo visitante desta noite”, mas o viver após a morte em uma “morada eterna”, a destruição para a renovação, para a purificação do ser para uma nova maneira de viver, não no esquecimento, mas nas lembranças daqueles que o leram e que o lerão, porque ele sabe que escreve para todos, contudo, nem todos lerão aquilo que escreve, entretanto, sua obra estará sempre viva, tornando-o inesquecível.

A união entre fogo e morte estabelece-se criando uma imagem do instante, um instante da passagem da vida para a morte e da morte para a eternidade porque “Em sua unicidade, o instante é em si mesmo solidão não apenas dos outros, mas inclusive de nós mesmos (PAIVA, 2005, p. 122)”. O estar na escuridão sozinho requer a busca da libertação na luz, mas esta luz para Al Berto designa a própria morte, a sua salvação, por isso ele deseja que “a cada esquina de luz possas recolher/ alimento suficiente para tua morte”.

 

Al Berto e a poética do fogo, Kenedi Azevedo. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013




A edição de Horto de Incêndio com que trabalhamos é a terceira e última, de dezembro de 2000, trazendo à capa o rosto em cena do próprio poeta. As cinzas que compõem este livro são emolduradas por uma apresentação negra, com luz insidiosa sobre o olho esquerdo do poeta que parece não tencionar mais “ver”. Podemos ler essa proposição aproveitando a repetição do tema da visão em sua obra, que se refere basicamente à idéia de que o que é visto já não se pode ser contado ou cantado. Os olhos semitampados de Al Berto parecem sugerir uma réstia de luminosidade e desejo de que esta sua visão sejam trazidos à tona por meio de uma chama lúcida. Do rosto que apresenta também algumas rugas, surgem suas mãos que impedem essa mesma luz de se transformar numa linguagem que luta contra a afasia, contra a doença, contra a morte. Tanto Rimbaud quanto Deleuze apontaram a importância da “visão” daqueles que “viram demais” e obtiveram a experiência em excesso. E como toda fotografia, a representação de Al Berto sugere uma nova tensão dialética de sombra e luz, jardins e cinzas. Esta visão recorrente em toda sua poesia parece querer dizer: é por meio desta réstia luminosa que enxergo o mundo e mantenho a lucidez e é esta mesma luz que incide sobre a minha pele, sobre o meu corpo, queimando-me a carne-viva.

 

Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006




CARREIRO, José. “recado, Al Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 06-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/recado-de-al-berto.html



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