recado
ouve-me
que
o dia te seja limpo e
a
cada esquina de luz possas recolher
alimento
suficiente para a tua morte
vai
até onde ninguém te possa falar
ou
reconhecer — vai por esse campo
de
crateras extintas — vai por essa porta
de
água tão vasta quanto a noite
deixa
a árvore das cassiopeias cobrir-te
e
as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se
na vertigem do voo — deixa
que
o outono traga os pássaros e as abelhas
para
pernoitarem na doçura
do
teu breve coração — ouve-me
que
o dia te seja limpo
e
para lá da pele constrói o arco de sal
a
morada eterna — o mar por onde fugirá
o
etéreo visitante desta noite
não
esqueças o navio carregado de lumes
de
desejos em poeira — não esqueças o ouro
o
marfim — os sessenta comprimidos letais
ao
pequeno-almoço
Al Berto, Horto
de Incêndio (1997)
Al Berto e o fogo
Um dos medos
do eu lírico al bertiano é o da morte, tanto que essa questão permeia também
seu último livro. “O medo da morte me faz apreender - temer – uma realidade outra,
irredutível aos objetos habituais do saber e aos organismos de poder. Mais
do que o nada que ela anuncia, é a alteridade da morte” (POIRIÉ, 2007, p.34),
aspecto esse, presente nos poemas de Al Berto.
Poemas
que falam de incêndio, do relâmpago, do cigarro, da sarça ardente, designando
uma poética da morte pelo fogo, para o fogo. De acordo com Massaud Moisés
(2008) “[...] açulado pelos seus sentidos em brasa, o seu olhar alcança o mínimo
e o máximo, o próximo e o longínquo...” (p. 494). Já António Ramos Rosa (1991)
elucida que “tomar contato com o mundo não é para este poeta uma possessão da
realidade, mas quase sempre significa uma perda irreparável, um grito de
revolta e de medo” (p. 119). A seguir será feita a leitura de alguns de seus poemas
apontando a imagem do fogo como sendo parte da imagem da morte, ou mesmo um
anúncio da morte.
A obra de
Al Berto reveste-se de fogo e queima-se para uma lírica da morte. O poema que
abre o livro Horto de Incêndio tem por título recado, assim,
escrito com letras minúsculas, como igualmente todo o poema e os poemas. Por
estar em um horto de incêndio e a morte próxima, aproveita para anunciá-la para
um interlocutor/alocutário, que pode ser o próprio Alberto Pidwell. Como se o
poeta quisesse deixar a mensagem de um tempo breve, para aquele “breve
coração”.
Al Berto
pede ao interlocutor/ alocutário que o escute e deseja-lhe “que o dia te seja
limpo”, como se de uma purificação se tratasse. Isso ganha intensidade quando o
poeta diz “deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te”, isto é, uma constelação,
porque está na escuridão, nas trevas. A imagem do fogo neste poema é
representada pela luz, e pelo “navio carregado de lume”, entendendo-se esse processo
como um rito de passagem que será iniciado com “os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço”, anúncio da própria morte.
Por meio
desse poema, nota-se o entrelaçamento da imagem do fogo com a imagem da morte,
um prólogo ao livro que se constitui de outros poemas em que essa temática
acentua-se, fechando com um longo em homenagem a Rimbaud, carregado de
simbolismos e figuras da “morte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de
lisboa a 20 de novembro de 1996”, levando-nos a pensar no que Anna Hartmann Cavalcanti
(2005) fala: “A noção de símbolo permite explicitar que o conteúdo representado
pela palavra não é a expressão das próprias coisas, mas um âmbito puramente
fenomênico, e de nossas representações” (p. 146).
Portanto,
entendemos a imagem calorífica em certos poemas al bertianos como sendo a
representação da morte, já que a linguagem simboliza, deste modo, nosso mundo
interior por meio das representações, “as imagens são produtos imaginários”
(PAZ, 2009, p. 37) e são essas imagens que pretendemos enfatizar no presente
estudo. António Ramos Rosa complementa a idéia de uma liberdade por meio da
destruição dizendo:
Vemos assim que a opacidade
do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um
desmoronamento geral, mas esta destruição não constitui uma supressão pura e
simples da identidade do poeta. À violência desta destruição responde o poeta
com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que
procura por todos os meios o seu espaço vital. E é também a expressão
paroxística de um desejo da comunhão pura (ROSA, 1991, p. 119).
O poeta
vê a fugacidade no “navio carregado de lume”, no qual há estreita ligação com
liberdade, isto é, a morte como a libertação deste estar no mundo sem objetividade.
Destarte, o que se espera não é simplesmente o “etéreo visitante desta noite”,
mas o viver após a morte em uma “morada eterna”, a destruição para a renovação,
para a purificação do ser para uma nova maneira de viver, não no esquecimento,
mas nas lembranças daqueles que o leram e que o lerão, porque ele sabe que
escreve para todos, contudo, nem todos lerão aquilo que escreve, entretanto,
sua obra estará sempre viva, tornando-o inesquecível.
A união
entre fogo e morte estabelece-se criando uma imagem do instante, um instante da
passagem da vida para a morte e da morte para a eternidade porque “Em sua unicidade,
o instante é em si mesmo solidão não apenas dos outros, mas inclusive de nós
mesmos (PAIVA, 2005, p. 122)”. O estar na escuridão sozinho requer a busca da
libertação na luz, mas esta luz para Al Berto designa a própria morte, a sua
salvação, por isso ele deseja que “a cada esquina de luz possas recolher/
alimento suficiente para tua morte”.
Al Berto e a poética do fogo, Kenedi Azevedo.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013
A edição de Horto de Incêndio com que trabalhamos é a terceira e
última, de dezembro de 2000, trazendo à capa o rosto em cena do próprio poeta. As cinzas que compõem
este livro são emolduradas por uma apresentação negra, com luz insidiosa sobre
o olho esquerdo do poeta que parece não tencionar mais “ver”. Podemos ler essa
proposição aproveitando a repetição do tema da visão em sua obra, que se refere
basicamente à idéia de que o que é visto já não se pode ser contado ou cantado.
Os olhos semitampados de Al Berto parecem sugerir uma réstia de luminosidade e
desejo de que esta sua visão sejam trazidos à tona por meio de uma chama
lúcida. Do rosto que apresenta também algumas rugas, surgem suas mãos que impedem
essa mesma luz de se transformar numa linguagem que luta contra a afasia,
contra a doença, contra a morte. Tanto Rimbaud quanto Deleuze apontaram a
importância da “visão” daqueles que “viram demais” e obtiveram a experiência em
excesso. E como toda fotografia, a representação de Al Berto sugere uma nova
tensão dialética de sombra e luz, jardins e cinzas. Esta visão recorrente em
toda sua poesia parece querer dizer: é por meio desta réstia luminosa que
enxergo o mundo e mantenho a lucidez e é esta mesma luz que incide sobre a minha
pele, sobre o meu corpo, queimando-me a carne-viva.
Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade
de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006
CARREIRO, José. “recado,
Al Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 06-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/recado-de-al-berto.html
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