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domingo, 7 de novembro de 2021

SIDA, Al Berto

Poema dito por Miguel Rodeia (InVersos, Vimeo, 2012)


Sida

 

aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem – partem

deixam-nos dobrados ao abandono

no interior duma dor inútil muda

 e voraz

 

arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias - o viajante

que irradia um cheiro a violetas noturnas

 

acendemos então uma labareda nos dedos

acordamos trêmulos confusos - a mão queimada

junto ao coração

 

e mais nada se move na centrifugação

dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola

a ausência fulgura na aurora das manhãs

e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos

o rumor do corpo a encher-se de mágoa

 

assim guardamos as nuvens breves os gestos

os invernos o repouso a sonolência

o evento

arrastando para longe as imagens difusas

daqueles que amamos e não voltaram

a telefonar.

 

Al Berto, Horto de Incêndio. Lisboa, Assírio e Alvim, 1997

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

a) Considerando o tema deste poema, como se pode entender a frase “aqueles que têm nome”?

 

b) Na segunda estrofe, o poema fala em arquivar o amor e em pressentir vivo o passageiro ardente. Analise essa aparente contradição.

 

c) Na quarta estrofe, quando o poema sugere a transformação da intensidade amorosa em carência (tudo nos falta), um verso traduz com perfeição a conjugação entre a intensidade amorosa e seu esvaziamento. Qual é esse verso?

 

RESPOSTAS ESPERADAS:

a) O efeito de significado dessa sequência no contexto do poema é o de indicar que os indivíduos que contraem a “sida” (“aids”), além de serem apenas dados de estatísticas e seres condenados ao anonimato por conta de preconceito, têm existência concreta, são reais e fazem parte de nosso quotidiano.

 

b) “Arquivar o amor” remete à perda (morte) sugerida na primeira estrofe; significa, portanto, a impossibilidade do amor por conta daquela perda. A contradição, aparente (formulável nos termos “morte e vida”), está no facto de que a essa impossibilidade não anula a persistência da imagem viva do ser amado. Ou seja, a impossibilidade existencial de amar não “mata” a vitalidade do amor.

 

c) O verso em questão é “a ausência fulgura na aurora das manhãs”.

 

COMENTÁRIOS:

Para responder à pergunta do item a, deveria o candidato identificar uma sequência de notável precisão para os efeitos de sentido que o poema sugere. Deles, o do anonimato forçado pelo estigma não só da doença, mas do tipo de amor a que a “sida” (“aids”) foi inicialmente associada (o homossexual) é, sem dúvida, o sentido mais dramático. A primeira estrofe toda “fala” dessa interdição sofrida por pessoas que nos são próximas, que fazem parte de nosso dia-a-dia, e que apesar de tudo nos procuram e se comunicam conosco. Como se vê, a perceção mínima dessa sequência abre espaço para uma interpretação muito mais aguda do poema.

 

Quanto ao item b, ao contrário do que se pode depreender de uma primeira leitura e do significado mais imediato de “arquivar o amor”, a estrofe toda sustenta uma eloquente apologia do amor, mesmo que interditado pela doença e pela morte. A contradição pressuposta, no caso, é apenas aparente, e serve para salientar a grande afirmação de um tipo de amor que não sucumbe à morte e que se pronuncia com o sofrimento. A questão visa a fazer com que o aluno perceba, sobretudo, essa afirmação.

 

No item c, é particularmente importante observar o efeito produzido pela justaposição de um sujeito que significa, no caso, falta, negação, com um processo verbal que diz exatamente o contrário: “fulgurar na aurora das manhãs”. Claro está que o sentido mais imediato é aquele mesmo: a elevação da sensação da falta a seu extremo. Mas o candidato terá observado que “fulgurar na aurora das manhãs”, conotando brilho, ressurreição, retoma o sentido incandescente atribuído ao amor em versos precedentes, e permite que o leitor associe ao caráter negativo da ausência a força do amor que preside a relação entre o sujeito e o próprio sujeito ausente. Na verdade, espera-se que o candidato procure sair da interpretação mais óbvia e saiba conectar essa frase com o que se acha enunciado sobretudo na segunda estrofe.

 

Fonte: UNICAMP, Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, 2.ª fase. Caderno de Questões 2003. Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/2003/download/comentadas/LPortuguesa.pdf





Textos de apoio

 

“ARQUIVAMOS O AMOR NO ABISMO DO TEMPO”

 

“SIDA” compõe o último livro de Al Berto, Horto de incêndio, publicado em 1997. O título do livro indica haver uma estreita relação entre vida e morte, além de um teor elegíaco, que é entrevisto por meio não apenas do título do livro, mas também pelos títulos dos poemas. Marcando a passagem do corpo pelo mundo, “o viajante/ que irradia um cheiro a violetas nocturnas”, horto e incêndio se tornam apêndices entre corpo e mundo, na medida em que o corpo, matéria e superfície em choque com outras matérias, como o fogo, a elas se amalgamam, compondo-o e decompondo-o. No poema, a doença imprime no sujeito lírico a consciência aguda do tempo na franca exposição da dor pela morte dos amigos. Colada à morte daqueles que “não voltaram/ a telefonar”, a morte pressentida: o arquivamento do amor e de um tempo, da “labareda nos dedos”, restando-lhes “a mão queimada junto/ ao coração”.

No pensamento paradoxal presente em Horto de incêndio, a imagem da mão queimada no poema é condizente com a encenação de Al Berto na fotografia de Paulo Nozolino, interpretada na subseção “Conheço o corpo que gera o seu próprio fogo”, do capítulo “A queda brusca dos anjos”, mostrando que Al Berto não se desvia de seu projeto literário e de tudo que o atravessa. O seu projeto está todo em Horto de incêndio. Entretanto, não se pode negar a presença de um fosso, algo interrompido que os verbos na primeira pessoa do plural, em pretérito perfeito, sugerem: “arquivámos”, “acendemos”, “pressentimos”. A melancólica constatação da perda, da degeneração dos corpos como uma via crucis imposta a todos os que optaram viver os prazeres do corpo e aos quais, agora, resta o “rumor do corpo a encher-se de mágoa”. Acatando a dor e a impotência diante da morte anunciada pelo telefone que já não toca, termina por não lamentar o motivo da morte, mas aqueles “que amamos e não voltaram a telefonar”.

 

Preparo um desamor: as relações afetivo-conflituosas em Al Berto e Caio Fernando Abreu, Mônica Anunciação. Salvador, UFBA, 2019

 

PARA ALÉM DOS JARDINS

 

Os poemas de Horto de Incêndio aproximam-se de uma reflexão sobre a morte, uma vez que apresentam um discurso impregnado de uma contaminação elegíaca, exatamente de reflexão sobre um luto de seres retirados de sua essência para uma transformação, talvez as múltiplas “metamorfoses” das quais o sujeito enunciador irrompe : “e cada um de nós metamorfoseou-se/ num cemitério ambulante – cada um de nós/ sepultou na alma uma quantidade desumana/ de dor e de mortos”. Podemos ainda localizar esta preocupação fúnebre do enunciador lírico dos poemas, uma vez que temos dentro deste jardim incendiado uma busca por tempos perdidos por exemplo no texto “O senhor da asma”.

 

Senhor da asma

 

Deitado há muito tempo – o cigarro luzindo

Com um olho de tigre vindo da noite e

Lá fora

Ainda se apercebe a húmida incandescência das frésias

o rumor surdo de vozes belas pelo jardim onde

a florida macieira se recorta no intenso céu de verão

(...)

mas nada é perfeito (...)

falta-me o tempo para procurar o tempo perdido...

(AL BERTO, 2000. p.32-33)

 

Neste excerto de um poema que dialoga não só com a figura, mas também com a obra de Marcel Proust, que era acometido pela asma, temos exatamente uma situação de contingência, na qual nem mesmo a ambientação idílica da natureza permite que o sujeito enunciador seja tocado por ela. Parece que numa atmosfera de doença, na consciência de sua finitude, o Eu confirma o seu ser-para-a-morte heideggeriano. O diálogo com a obra proustiana nos remete a uma fixação de determinados acontecimentos, cujo registro é marcado pela passagem do tempo e sua inexorável ação. A asma aí, tal qual a Proust, limita, condiciona e provoca o aprofundamento da reflexão, enfatizando uma atmosfera de sufocamento e ausência de faculdades mais primárias (respiração, nomeadamente), o que podemos tornar diálogo juntamente com a pertinência da visão já mencionada anteriormente. De qualquer maneira, é importante destacar aqui que também conforme aponta Deleuze (1997), o escritor é levado a perverter a sua linguagem para não se perder na afasia, por meio da intenção de criar uma nova língua dentro da língua, capaz de reinventar formas de superar o desamparo do mundo através de sua superação mais adâmica19.

 

É possível, a partir disso, tentar entender a trajetória da poesia al bertiana por meio de um sólido e contínuo paradoxo entre hortos e incêndios; entre o prazer da experiência e o recolhimento daquilo que esta gerou através de uma profunda reflexão a que os sujeitos poéticos de Al Berto se propõem a pensar. A dimensão existencial da obra al bertiana consiste, portanto, nessa dialética tensão entre a dramatização empírica, levada às últimas conseqüências e o pensamento acerca dessa própria teatralização erigida sobre a multiplicidade de vozes existentes em sua obra. Maurice Blanchot parece concordar com o que já foi aqui apontado de Deleuze em relação à experiência:

 

E aquele que escreve é igualmente aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado corretamente, fê-la cessar, tornou-a compreensível nessa intermitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, dominou-a ao medi-la.

(BLANCHOT, 1987, p.29)

 

Em todas as obras de Al Berto podemos verificar uma espécie de fixação obsessiva por uma juventude, mormente ilustrada em seus poemas por diálogos entre um sujeito enunciador suficientemente adulto com um adolescente. Em Horto de Incêndio, temos exatamente o ápice dessa dialética, numa perspectiva piorada, na medida em que este último sujeito lírico do poeta encontra-se definitivamente esgotado e definhado conforme aponta, por exemplo João Barrento (2000) ao referir-se a este livro como uma metáfora da morte e da doença, seguindo a linha da pensadora Susan Sontag (A doença como metáfora). Considerando a Aids como uma das maiores “epidemias” que acometeram a humanidade, é possível relacionar o conceito sontagiano com algumas observações aqui já propostas (SCLIAR, 2003) no que diz respeito à atividade da melancolia em estrangeiros, migrantes, e sobretudo indivíduos que compunham sociedades e contextos com grandes doenças ou padecimentos físicos maiores. Acreditamos, com isso, que o poema “Sida” sintetiza também um discurso melancólico posto que registra a gravidade de uma doença que ataca dialeticamente, uma vez que operacionaliza um deterioramento físico e também afunila e fustiga o Homem na sua mais perene condição: a certeza de estar muito próximo de sua finitude.

Delicadamente, Al Berto nos apresenta um poema denso da dor do luto, mas lúcido diante do perecimento implacável a que estamos subordinados. Com um campo semântico voltado para a idéia de dor e de perda, o texto se apresenta através de uma aguda tentativa de superação, que no entanto não parece ser possível contornar:“ nem a vida, nem o que dela resta nos consola”. No poema, cuja voz enunciadora é a de quem permanece, sofrendo a ausência daqueles que um dia emagrecem –partem, a corrosão se dá em nome da solidão de quem deve acostumar-se com o vazio e com a consciência de uma igual finitude. O tempo funciona como aliado, na tentativa do esquecimento e da superação do luto em função da morte próxima em função da Aids que o título submete : “ o vento arrastando para longe as imagens difusas daqueles que amamos”. Não obstante, a doença, metáfora social, funciona para além de uma fissura, cancro que atinge a coletividade, apontando a falência dos tempos, a decadência recorrente a que a História invariavelmente retorna.

 

Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006

 

_______

19 Estas observações podem ser verificadas também no meu texto intitulado Al Berto: (entre) o horto e o incêndio publicado nos Anais do XX Encontro da ABRAPLIP (2005).

 

 

 

DESLOCAMENTOS

 

A partir dos anos 1970, a experiência da linguagem levada às últimas consequências por artistas nos anos 1950-1960 começa a dividir lugar com uma linguagem que pretende testemunhar experiências, comunicar uma troca de vivências e construir alegorias referencializáveis do mundo cotidiano. Haveria vida antes e depois do poema, que passa a funcionar como um tipo de dobradiça para determinado discurso. Em Portugal, Al Berto, por exemplo, não opera mais movido por uma forte experimentação, sua literatura se recusa a isso, mas por uma consciência da discursividade da escrita propondo um “pacto novo” (cf. MAGALHÃES, 1981) com os leitores. É assim que entendemos a inescapável narratividade de seus primeiros livros, com enredos e personagens, a forte presença da cidade como cenário quase natural para a vida subjetiva, assim como o sentido de seu último livro, Horto de incêndio, de 1997, em que ele canta a aproximação da morte com que se defrontava, através de um câncer linfático, bem como seu desejo homoerótico, justapondo-os. É justamente num poema intitulado “Sida” que podemos entender um pouco como funciona esse “pacto novo” a que chamamos discursividade.

Malgrado o texto do poema abordar a tópica tradicional do sentimento melancólico pela passagem do tempo (tempus fugit) e suas consequências, como a distância, a perda, o silêncio e a morte, é o título que recorta, restringe e, digamos assim, torna presente o sentido do poema, criando territórios comunicativos muito bem definidos com os leitores. A força da literatura pós-autônoma em um livro como Horto de incêndio está, dentre outros motivos, no gesto de intitular um poema com o nome de AIDS, sem qualquer truque de conotação, muito mais do que um simples uso jornalístico e informativo, isto é, referencial, de um tema contemporâneo, por mais que isso também se dê. O discurso da doença, presente ao longo de todo o livro, assim como em livros anteriores – “já não necessito de ti / tenho a companhia nocturna dos animais e a peste”, diz ele em “Ofício de amar”, do livro Trabalhos do olhar, de 1982 (BERTO, 2000, p. 184) –, inscreve um sujeito autoral gay e em vias de morrer e lhe dá sentido público, político, implica-o e o compromete, a ele e aos outros, leitores ou não, estimulando a “imaginação pública” da qual Ludmer afirma: “nesse lugar não há realidade oposta à ficção, não há autor e tampouco há demasiado sentido (2010, p. 04). Esse texto implica, na verdade, mais de uma geração, para além das diferenças de classe, gênero, nacionalidade e orientação sexual, mesmo que marcando também estas. Essa é a discursividade que se impõe na produção do seu sentido, não mais apenas a densa textualidade de matriz autônoma e experimental e com raízes na ideia mallarmeana de uma poesia em permanente estado de crise – “crise de versos”, versos em crise –, como discute Marcos Siscar (cf. 2010, p. 113-6).

Al Berto é um herdeiro de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, como os poetas anteriores no argumento de Lourenço; diríamos, todavia, que é um herdeiro ilegítimo, pois – intercalado historicamente pelas densas experiências de linguagem ao longo do século XX – opta por trair a linhagem dos que valorizaram a noção de autonomia da linguagem poética. Essa geração emergente nos anos 1970 parece repetir um certo Campos cuja voz pergunta: “Símbolos? Estou farto de símbolos... / Uns dizem-me que tudo é símbolo. / Todos me dizem nada.” (PESSOA, 2007, p. 475); geração contra a espessura simbólica da linguagem da geração anterior. O cansaço finissecular do heterônimo modernista de Pessoa pode ser divisado em inúmeros poemas de Al Berto, menos no décor da linguagem e mais na longa narratividade de seus poemas em prosa, e mesmo nos versos, nos ambientes urbanos de comportamentos transgressores e diferença sexual, na subjetividade neurastênica, nos personagens marginais, na flânerie por alegorias realistas ou lisérgicas de uma Europa crepuscular do último quarto do século XX. Quando contrapomos tudo isso à entrada de Portugal na Comunidade Econômica Europeia na década de 1980, assim como ao neoliberalismo que avançou predador sobre as regras do capitalismo financeiro, também nos anos 1980, e à Guerra Fria que se estendia há décadas, verifica-se que os poemas de Al Berto dizem menos respeito à emulação autônoma do texto decadentista de Campos e mais respeito ao flagrante desconforto das subjetividades implicadas no cenário europeu da década de 1980, como lemos em O medo:

 

22 de junho

bebo para que as remotas cicatrizes doutros corpos não desatem a doer. bato o pé ao ritmo frenético dum rock, abandono o olhar pelos bilhares, pelos flippers silencio o desejo neste copo de vinho. ouço-me latejar, ao cair do dia, sentado, bebo, perdido a um canto duma sala de jogos na província.

e o inferno está aqui, no verde dos panos dos bilhares onde a agonia e a solidão têm forma de bolas. bebo mais e mais, para que as noites felizes não voltem sem ti, nunca mais. (BERTO, 2000, p.229).

 

Da autonomia à pós-autonomia: poesia como crítica do presente (notas de pesquisa)”, Sandro Ornellas. Revista landa, vol. 1, n.° 2 (2013)

 



CARREIRO, José. “SIDA, Al Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 07-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/sida-al-berto.html


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