Poema dito por Miguel Rodeia (InVersos, Vimeo, 2012)
Sida
aqueles
que têm nome e nos telefonam
um
dia emagrecem – partem
deixam-nos
dobrados ao abandono
no
interior duma dor inútil muda
e voraz
arquivamos
o amor no abismo do tempo
e
para lá da pele negra do desgosto
pressentimos
vivo
o
passageiro ardente das areias - o viajante
que
irradia um cheiro a violetas noturnas
acendemos
então uma labareda nos dedos
acordamos
trêmulos confusos - a mão queimada
junto
ao coração
e
mais nada se move na centrifugação
dos
segundos - tudo nos falta
nem
a vida nem o que dela resta nos consola
a
ausência fulgura na aurora das manhãs
e
com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o
rumor do corpo a encher-se de mágoa
assim
guardamos as nuvens breves os gestos
os
invernos o repouso a sonolência
o
evento
arrastando
para longe as imagens difusas
daqueles
que amamos e não voltaram
a
telefonar.
Al Berto, Horto
de Incêndio. Lisboa, Assírio e Alvim, 1997
QUESTIONÁRIO:
a) Considerando o tema deste poema,
como se pode entender a frase “aqueles que têm nome”?
b) Na segunda estrofe, o poema fala
em arquivar o amor e em pressentir vivo o passageiro ardente. Analise essa aparente
contradição.
c) Na quarta estrofe, quando o poema
sugere a transformação da intensidade amorosa em carência (tudo nos falta), um verso
traduz com perfeição a conjugação entre a intensidade amorosa e seu
esvaziamento. Qual é esse verso?
RESPOSTAS ESPERADAS:
a) O efeito de significado dessa sequência
no contexto do poema é o de indicar que os indivíduos que contraem a “sida” (“aids”),
além de serem apenas dados de estatísticas e seres condenados ao anonimato por
conta de preconceito, têm existência concreta, são reais e fazem parte de nosso
quotidiano.
b) “Arquivar o amor” remete à perda
(morte) sugerida na primeira estrofe; significa, portanto, a impossibilidade do
amor por conta daquela perda. A contradição, aparente (formulável nos termos
“morte e vida”), está no facto de que a essa impossibilidade não anula a
persistência da imagem viva do ser amado. Ou seja, a impossibilidade
existencial de amar não “mata” a vitalidade do amor.
c) O verso em questão é “a ausência
fulgura na aurora das manhãs”.
COMENTÁRIOS:
Para
responder à pergunta do item
a, deveria o candidato identificar uma sequência de notável precisão
para os efeitos de sentido que o poema sugere. Deles, o do anonimato forçado
pelo estigma não só da doença, mas do tipo de amor a que a “sida” (“aids”) foi
inicialmente associada (o homossexual) é, sem dúvida, o sentido mais dramático.
A primeira estrofe toda “fala” dessa interdição sofrida por pessoas que nos são
próximas, que fazem parte de nosso dia-a-dia, e que apesar de tudo nos procuram
e se comunicam conosco. Como se vê, a perceção mínima dessa sequência abre
espaço para uma interpretação muito mais aguda do poema.
Quanto ao
item b, ao
contrário do que se pode depreender de uma primeira leitura e do significado
mais imediato de “arquivar o amor”, a estrofe toda sustenta uma eloquente
apologia do amor, mesmo que interditado pela doença e pela morte. A contradição
pressuposta, no caso, é apenas aparente, e serve para salientar a grande
afirmação de um tipo de amor que não sucumbe à morte e que se pronuncia com o
sofrimento. A questão visa a fazer com que o aluno perceba, sobretudo, essa
afirmação.
No item c, é
particularmente importante observar o efeito produzido pela justaposição de um
sujeito que significa, no caso, falta, negação, com um processo verbal que diz
exatamente o contrário: “fulgurar na aurora das manhãs”. Claro está que o sentido
mais imediato é aquele mesmo: a elevação da sensação da falta a seu extremo.
Mas o candidato terá observado que “fulgurar na aurora das manhãs”, conotando
brilho, ressurreição, retoma o sentido incandescente atribuído ao amor em
versos precedentes, e permite que o leitor associe ao caráter negativo da
ausência a força do amor que preside a relação entre o sujeito e o próprio
sujeito ausente. Na verdade, espera-se que o candidato procure sair da
interpretação mais óbvia e saiba conectar essa frase com o que se acha
enunciado sobretudo na segunda estrofe.
Fonte: UNICAMP, Língua
Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, 2.ª fase. Caderno de Questões
2003. Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/2003/download/comentadas/LPortuguesa.pdf
Textos de apoio
“ARQUIVAMOS O AMOR NO ABISMO DO TEMPO”
“SIDA”
compõe o último livro de Al Berto, Horto de incêndio, publicado em 1997.
O título do livro indica haver uma estreita relação entre vida e morte, além de
um teor elegíaco, que é entrevisto por meio não apenas do título do livro, mas
também pelos títulos dos poemas. Marcando a passagem do corpo pelo mundo, “o
viajante/ que irradia um cheiro a violetas nocturnas”, horto e incêndio se
tornam apêndices entre corpo e mundo, na medida em que o corpo, matéria e
superfície em choque com outras matérias, como o fogo, a elas se amalgamam,
compondo-o e decompondo-o. No poema, a doença imprime no sujeito lírico a
consciência aguda do tempo na franca exposição da dor pela morte dos amigos.
Colada à morte daqueles que “não voltaram/ a telefonar”, a morte pressentida: o
arquivamento do amor e de um tempo, da “labareda nos dedos”, restando-lhes “a
mão queimada junto/ ao coração”.
No
pensamento paradoxal presente em Horto de incêndio, a imagem da mão
queimada no poema é condizente com a encenação de Al Berto na fotografia de
Paulo Nozolino, interpretada na subseção “Conheço o corpo que gera o seu
próprio fogo”, do capítulo “A queda brusca dos anjos”, mostrando que Al Berto
não se desvia de seu projeto literário e de tudo que o atravessa. O seu projeto
está todo em Horto de incêndio. Entretanto, não se pode negar a presença
de um fosso, algo interrompido que os verbos na primeira pessoa do plural, em
pretérito perfeito, sugerem: “arquivámos”, “acendemos”, “pressentimos”. A
melancólica constatação da perda, da degeneração dos corpos como uma via
crucis imposta a todos os que optaram viver os prazeres do corpo e aos
quais, agora, resta o “rumor do corpo a encher-se de mágoa”. Acatando a dor e a
impotência diante da morte anunciada pelo telefone que já não toca, termina por
não lamentar o motivo da morte, mas aqueles “que amamos e não voltaram a
telefonar”.
Preparo um desamor: as relações afetivo-conflituosas em Al
Berto e Caio Fernando Abreu, Mônica Anunciação. Salvador, UFBA, 2019
PARA ALÉM DOS JARDINS
Os poemas de Horto de Incêndio aproximam-se de uma reflexão sobre a
morte, uma vez que apresentam um discurso impregnado de uma contaminação
elegíaca, exatamente de reflexão sobre um luto de seres retirados de sua
essência para uma transformação, talvez as múltiplas “metamorfoses” das quais o
sujeito enunciador irrompe : “e cada um de nós metamorfoseou-se/ num cemitério
ambulante – cada um de nós/ sepultou na alma uma quantidade desumana/ de dor e
de mortos”. Podemos ainda localizar esta preocupação fúnebre do enunciador
lírico dos poemas, uma vez que temos dentro deste jardim incendiado uma busca por
tempos perdidos por exemplo no texto “O senhor da asma”.
Senhor
da asma
Deitado
há muito tempo – o cigarro luzindo
Com
um olho de tigre vindo da noite e
Lá
fora
Ainda
se apercebe a húmida incandescência das frésias
o
rumor surdo de vozes belas pelo jardim onde
a
florida macieira se recorta no intenso céu de verão
(...)
mas
nada é perfeito (...)
falta-me
o tempo para procurar o tempo perdido...
(AL BERTO, 2000. p.32-33)
Neste excerto de um
poema que dialoga não só com a figura, mas também com a obra de Marcel Proust,
que era acometido pela asma, temos exatamente uma situação de contingência, na
qual nem mesmo a ambientação idílica da natureza permite que o sujeito enunciador
seja tocado por ela. Parece que numa atmosfera de doença, na consciência de sua
finitude, o Eu confirma o seu ser-para-a-morte heideggeriano. O diálogo com a obra proustiana
nos remete a uma fixação de determinados acontecimentos, cujo registro é
marcado pela passagem do tempo e sua inexorável ação. A asma aí, tal qual a
Proust, limita, condiciona e provoca o aprofundamento da reflexão, enfatizando
uma atmosfera de sufocamento e ausência de faculdades mais primárias (respiração,
nomeadamente), o que podemos tornar diálogo juntamente com a pertinência da visão já mencionada anteriormente. De
qualquer maneira, é importante destacar aqui que também conforme aponta Deleuze
(1997), o escritor é levado a perverter a sua linguagem para não se perder na
afasia, por meio da intenção de criar uma nova língua dentro da língua, capaz
de reinventar formas de superar o desamparo do mundo através de sua superação
mais adâmica19.
É possível, a partir
disso, tentar entender a trajetória da poesia al bertiana por meio de um sólido
e contínuo paradoxo entre hortos e incêndios; entre o prazer da experiência e o
recolhimento daquilo que esta gerou através de uma profunda reflexão a que os
sujeitos poéticos de Al Berto se propõem a pensar. A dimensão existencial da
obra al bertiana consiste, portanto, nessa dialética tensão entre a
dramatização empírica, levada às últimas conseqüências e o pensamento acerca
dessa própria teatralização erigida sobre a multiplicidade de vozes existentes
em sua obra. Maurice Blanchot parece concordar com o que já foi aqui apontado
de Deleuze em relação à experiência:
E aquele que escreve é igualmente aquele que “ouviu” o
interminável e o incessante, que o ouviu como fala, ingressou no seu
entendimento, manteve-se na sua exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por
tê-la sustentado corretamente, fê-la cessar, tornou-a compreensível nessa
intermitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, dominou-a
ao medi-la.
(BLANCHOT, 1987, p.29)
Em todas as obras de Al
Berto podemos verificar uma espécie de fixação obsessiva por uma juventude,
mormente ilustrada em seus poemas por diálogos entre um sujeito enunciador
suficientemente adulto com um adolescente. Em Horto
de Incêndio, temos exatamente
o ápice dessa dialética, numa perspectiva piorada, na medida em que este último
sujeito lírico do poeta encontra-se definitivamente esgotado e definhado
conforme aponta, por exemplo João Barrento (2000) ao referir-se a este livro
como uma metáfora da morte e da doença, seguindo a linha da pensadora Susan
Sontag (A doença como
metáfora). Considerando a Aids
como uma das maiores “epidemias” que acometeram a humanidade, é possível relacionar
o conceito sontagiano com algumas observações aqui já propostas (SCLIAR, 2003) no
que diz respeito à atividade da melancolia em estrangeiros, migrantes, e
sobretudo indivíduos que compunham sociedades e contextos com grandes doenças
ou padecimentos físicos maiores. Acreditamos, com isso, que o poema “Sida”
sintetiza também um discurso melancólico posto que registra a gravidade de uma
doença que ataca dialeticamente, uma vez que operacionaliza um deterioramento
físico e também afunila e fustiga o Homem na sua mais perene condição: a
certeza de estar muito próximo de sua finitude.
Delicadamente, Al Berto
nos apresenta um poema denso da dor do luto, mas lúcido diante do perecimento
implacável a que estamos subordinados. Com um campo semântico voltado para a
idéia de dor e de perda, o texto se apresenta através de uma aguda tentativa de
superação, que no entanto não parece ser possível contornar:“ nem a vida, nem o
que dela resta nos consola”. No poema, cuja voz enunciadora é a de quem
permanece, sofrendo a ausência “daqueles que um dia emagrecem –partem”, a corrosão se dá em nome da solidão
de quem deve acostumar-se com o vazio e com a consciência de uma igual
finitude. O tempo funciona como aliado, na tentativa do esquecimento e da
superação do luto em função da morte próxima em função da Aids que o título
submete : “ o vento arrastando para longe as imagens difusas daqueles que
amamos”. Não obstante, a doença, metáfora social, funciona para além de uma
fissura, cancro que atinge a coletividade, apontando a falência dos tempos, a decadência
recorrente a que a História invariavelmente retorna.
Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade
de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006
_______
19 Estas observações podem ser verificadas também no meu texto
intitulado Al Berto: (entre) o horto e o incêndio
publicado nos Anais do XX Encontro da
ABRAPLIP (2005).
DESLOCAMENTOS
A partir dos anos 1970, a experiência da linguagem levada às
últimas consequências por artistas nos anos 1950-1960 começa a dividir lugar
com uma linguagem que pretende testemunhar experiências, comunicar uma troca de
vivências e construir alegorias referencializáveis do mundo cotidiano. Haveria
vida antes e depois do poema, que passa a funcionar como um tipo de dobradiça
para determinado discurso. Em Portugal, Al Berto, por exemplo, não opera mais
movido por uma forte experimentação, sua literatura se recusa a isso, mas por
uma consciência da discursividade da escrita propondo um “pacto novo” (cf.
MAGALHÃES, 1981) com os leitores. É assim que entendemos a inescapável
narratividade de seus primeiros livros, com enredos e personagens, a forte
presença da cidade como cenário quase natural para a vida subjetiva, assim como
o sentido de seu último livro, Horto de incêndio, de 1997, em que ele
canta a aproximação da morte com que se defrontava, através de um câncer
linfático, bem como seu desejo homoerótico, justapondo-os. É justamente num
poema intitulado “Sida” que podemos entender um pouco como funciona esse “pacto
novo” a que chamamos discursividade.
Malgrado o texto do poema abordar a tópica tradicional do
sentimento melancólico pela passagem do tempo (tempus fugit) e suas
consequências, como a distância, a perda, o silêncio e a morte, é o título que
recorta, restringe e, digamos assim, torna presente o sentido do poema, criando
territórios comunicativos muito bem definidos com os leitores. A força da
literatura pós-autônoma em um livro como Horto de incêndio está, dentre
outros motivos, no gesto de intitular um poema com o nome de AIDS, sem qualquer
truque de conotação, muito mais do que um simples uso jornalístico e
informativo, isto é, referencial, de um tema contemporâneo, por mais que isso
também se dê. O discurso da doença, presente ao longo de todo o livro, assim
como em livros anteriores – “já não necessito de ti / tenho a companhia
nocturna dos animais e a peste”, diz ele em “Ofício de amar”, do livro Trabalhos
do olhar, de 1982 (BERTO, 2000, p. 184) –, inscreve um sujeito autoral gay
e em vias de morrer e lhe dá sentido público, político, implica-o e o compromete,
a ele e aos outros, leitores ou não, estimulando a “imaginação pública” da qual
Ludmer afirma: “nesse lugar não há realidade oposta à ficção, não há autor e
tampouco há demasiado sentido (2010, p. 04). Esse texto implica, na verdade,
mais de uma geração, para além das diferenças de classe, gênero, nacionalidade
e orientação sexual, mesmo que marcando também estas. Essa é a discursividade
que se impõe na produção do seu sentido, não mais apenas a densa textualidade
de matriz autônoma e experimental e com raízes na ideia mallarmeana de uma
poesia em permanente estado de crise – “crise de versos”, versos em crise –,
como discute Marcos Siscar (cf. 2010, p. 113-6).
Al Berto é um herdeiro de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa,
como os poetas anteriores no argumento de Lourenço; diríamos, todavia, que é um
herdeiro ilegítimo, pois – intercalado historicamente pelas densas experiências
de linguagem ao longo do século XX – opta por trair a linhagem dos que
valorizaram a noção de autonomia da linguagem poética. Essa geração emergente
nos anos 1970 parece repetir um certo Campos cuja voz pergunta: “Símbolos?
Estou farto de símbolos... / Uns dizem-me que tudo é símbolo. / Todos me dizem
nada.” (PESSOA, 2007, p. 475); geração contra a espessura simbólica da linguagem
da geração anterior. O cansaço finissecular do heterônimo modernista de Pessoa
pode ser divisado em inúmeros poemas de Al Berto, menos no décor da
linguagem e mais na longa narratividade de seus poemas em prosa, e mesmo nos
versos, nos ambientes urbanos de comportamentos transgressores e diferença
sexual, na subjetividade neurastênica, nos personagens marginais, na flânerie
por alegorias realistas ou lisérgicas de uma Europa crepuscular do último
quarto do século XX. Quando contrapomos tudo isso à entrada de Portugal na
Comunidade Econômica Europeia na década de 1980, assim como ao neoliberalismo
que avançou predador sobre as regras do capitalismo financeiro, também nos anos
1980, e à Guerra Fria que se estendia há décadas, verifica-se que os poemas de
Al Berto dizem menos respeito à emulação autônoma do texto decadentista de
Campos e mais respeito ao flagrante desconforto das subjetividades implicadas
no cenário europeu da década de 1980, como lemos em O medo:
22 de junho
bebo para que as remotas cicatrizes doutros corpos
não desatem a doer. bato o pé ao ritmo frenético dum rock, abandono o olhar
pelos bilhares, pelos flippers silencio o desejo neste copo de vinho. ouço-me
latejar, ao cair do dia, sentado, bebo, perdido a um canto duma sala de jogos
na província.
e o inferno está aqui, no verde dos panos dos
bilhares onde a agonia e a solidão têm forma de bolas. bebo mais e mais, para
que as noites felizes não voltem sem ti, nunca mais. (BERTO, 2000, p.229).
“Da autonomia à pós-autonomia: poesia como crítica do presente
(notas de pesquisa)”, Sandro Ornellas. Revista landa, vol. 1, n.° 2 (2013)
CARREIRO, José. “SIDA, Al
Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 07-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/sida-al-berto.html
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